[Leia a sexta parte do livro]
b.
Apesar de ter lançado mais três coletâneas de poesia entre as publicações dos dois romances que lançou na década de 60, Leonard Cohen sempre se considerou um ficcionista, não um poeta. A brincadeira favorita (The favourite game, 1963), seu primeiro romance, veio à luz entre The spice-box of the earth (1962) e Flowers for Hitler (1965); e Beautiful Losers (1966), o segundo romance, surgiu entre Parasites of Heaven (1967) e The Energy of Slaves (1969).
É o seu período mais criativo, se contarmos que, na mesma época, ele também lançaria os primeiros álbuns, Songs of Leonard Cohen (1967) e Songs from a room (1969). Mas é também a época em que a sua criatividade parece dar sinais de desaparecer da maneira mais dramática.
Isto começa a ficar evidente em A brincadeira favorita. Estruturado como um “romance de formação” (bildungsroman), o livro tem justamente como epígrafe o poema “As the mist leaves no scar”, já exibido anteriormente neste livro. Não é uma autorreferência aleatória: o romance dramatiza os fatos que originaram os poemas os quais Cohen escreveria no futuro. Essa nova perspectiva dos versos, que antes pareciam um tanto obscuros, abre a possibilidade para o leitor entrar em comunhão com a experiência original que levou o poeta a recriar os lampejos de algo permanente em um mundo repleto de perda e destruição.
O drama gira ao redor de Lawrence Breavman, o alter-ego de Cohen, construído como uma espécie de Stephen Dedalus canadense. Ambos tentam ser artistas em lugares paralisados pelo provincianismo local, ofendendo a tudo e a todos, em especial os amigos, as namoradas e os antepassados (judaicos e irlandeses, respectivamente), na revolta ao ambiente onde vivem usando da arrogância e de um certo satanismo manqué. Entretanto, se o Dedalus de Joyce consegue escapar da prisão que criou para si próprio, não ocorre o mesmo com Breavman. Nas páginas finais, que lembram muito mais o Albert Camus de O estrangeiro (1948) e o J. D. Salinger de O apanhador no campo de centeio (1952) do que propriamente o romance do dublinense, o jovem artista se vê impedido de tentar o mínimo de comunicação com seus semelhantes. Está completamente isolado – e a salvação, se assim podemos chamá-la, surge quando enfim percebe que a tal brincadeira favorita que percorre o livro como um leitmotiv – e que acreditávamos ser apenas mais uma das perversões sexuais que Breavman realizava com uma colega de infância – é a mesma epifania retratada nos versos de “As a mist”.
Breavman é o artista que tenta recuperar o que perdeu nas marcas passageiras do seu corpo marcado na neve. Depois disto, ninguém mais sabe o que pode acontecer com ele. Conseguirá sair de seu isolamento? Escreverá mais poemas? Assim como Stephen Dedalus se transformou anos depois em James Joyce, tornar-se-á o escritor chamado Leonard Cohen?
O que aconteceu de fato é que ele escreveu um segundo romance e assim estava prestes a se tornar o James Joyce canadense. Falamos aqui de Beautiful Losers (1966), uma das mais experiências mais radicais já feitas na literatura de língua inglesa. Mas o leitor deve tomar cuidado: não é um livro fácil, daqueles que você se orgulhará de dizer que leu no jantar descolado da sua turma. É indigesto, de leitura morosa, exigente, cerrada em duzentas e cinquenta páginas trabalhadas à exaustão. A trama não antecipa nada do que vem pela frente: um narrador incógnito relembra o triângulo amoroso bissexual que teve com seu amigo, F., e sua esposa, Edith, que se matou ao se jogar no poço de um elevador. As memórias são interrompidas por delírios homoeróticos (narrados com uma precisão que chocará quem conhece Cohen apenas como um ladies man exclusivamente heterossexual) e por reflexões a respeito de Catherine Tekakwitha, uma índia Mohawk convertida ao catolicismo, que se autoflagelava em busca da santidade e que alegam ser a responsável por uma série de curas miraculosas ocorridas logo após seu falecimento. Entre os extremos da danação e da salvação, Beautiful Losers parece ser mais um exercício fútil de virtuosismo literário até o momento em que Cohen volta ao seu velho e bom tema: a corrupção das coisas terrenas.
E ele não hesita em ir ao coração das trevas quando aborda novamente este tópico. Além das orgias panssexuais – com direito a participação especial de Adolf Hitler disfarçado de garçom argentino e estrelando um Vibrador Dinamarquês que ganha vida própria –, temos descrições de fluídos e dejetos humanos, decomposição de corpos, cicatrizes que não param de expelir pus, e outros sintomas indicadores de que não, a coisa não vai nada bem. Como se isto não fosse suficiente para o estômago do leitor, Cohen expõe os opostos em um tamanho choque estético que não sabemos mais se estamos lendo uma alegoria da decadência do Canadá, uma autópsia do mundo ocidental ou uma comédia pastelão influenciada por Henry Miller e Marquês de Sade.
Pode ser tudo isso e muito mais. Ao dar forma a algo que só existe porque não pode ter forma nenhuma – a perda que nos rodeia a cada momento –, Beautiful Losers é também o testamento do romancista e do poeta que julgávamos conhecer nos anos anteriores. Ao virarmos a última página, temos a nítida sensação de que se trata de um livro que registra o impasse existencial de seu próprio autor. Leonard Cohen deu tudo de si neste romance – usou todo o arsenal disponível, abusou dos truques que tinha na manga.
Só havia uma solução: reinventar-se novamente. Como fazer isso? Ou melhor: como fazer isso aos trinta e três anos, quando se tinha uma carreira promissora pela frente?
***
A resposta foi literalmente soprada pelo vento. No caso, veio de quem criou esse verso, um dos mais batidos do rock. Leonard Cohen estava com uma amiga em um show de ninguém menos que Bob Dylan quando pensou: “Hum, que coisa interessante, acho que posso fazer isso também”. Anos depois, ao perguntarem por que desistiu da literatura para ser cantor, respondeu candidamente: “Fiz isso pelo simples motivo que cheguei à conclusão de que escrever canções dava mais dinheiro e me ajudava a ir para a cama com as garotas”.
Não é o que parece quando escutamos os primeiros acordes de Songs of Leonard Cohen (1967). Quando ouvimos a voz grave cantar Suzanne takes you down to her place near the river [Suzanne te leva até o seu lugar perto do rio], sabemos que temos ali uma personalidade completa, profunda, com nada a acrescentar, muito menos a tirar. Estruturado como um livro de poemas – característica que será constante por toda a sua discografia –, Songs desenvolve com mais lirismo o mesmo tema que já existia na poesia e na ficção, com a diferença de que agora vem embrulhado em acordes doces e suaves, um coro feminino que ecoa alguma nostalgia lá longe e, principalmente, um humor agridoce o qual desconhecíamos existir no jovem Cohen.
O álbum ficou conhecido por faixas como Suzanne e Sisters of Mercy, mas guarda outras pérolas, como The Master Song, The Stranger Song e Teachers, que podem ser lidas como continuações cifradas do triângulo amoroso narrado em Beautiful Losers. Todavia, a impermanência volta com força total na dilacerante Hey, that´s no way to say goodbye, em que o eu-lírico não encontra forças para se separar da mulher amada:
I'm not looking for another as I wander in my time,
walk me to the corner, our steps will always rhyme
you know my love goes with you as your love stays with me,
it's just the way it changes, like the shoreline and the sea,
but let's not talk of love or chains and things we can't untie,
your eyes are soft with sorrow,
Hey, that's no way to say goodbye.
(Não procuro por outra enquanto perco meu tempo,
Ande comigo até a esquina, nossos passos rimarão,
Você sabe que o meu amor vai com o seu até o seu ficar com o meu,
É sempre assim que as coisas mudam, como a maré e o mar,
Mas não vamos falar de amores ou correntes ou do que não podemos unir,
Seus olhos estão suaves com a tristeza,
Ei, isto não é como se deve dizer adeus.)
Em contraponto a toda a sensação de perda, Cohen começa a questionar o que seria uma religiosidade adequada para suportar uma experiência tão dolorida. Começamos a perceber os primeiros indícios em Suzanne (And Jesus was a sailor/ When he walked upon the water/ And he spent a long time watching / From his lonely wooden tower/ And when he knew for certain / Only drowning men could see him [E Jesus era um marinheiro/ quando ele andou sobre as águas/ E ele passou um bom tempo observando/ de sua solitária torre de madeira/ E então soube com certeza/ que apenas os náufragos podiam vê-lo]); Sisters of Mercy (Yes you who must leave everything that you cannot control./ It begins with your family, but soon it comes around to your soul. [Sim, você deve abandonar tudo o que não possa controlar/ Começa com a sua família, mas logo terminará com a sua alma]); e The Stranger Song (He was just some Joseph looking for a manger [Ele era apenas mais um José em busca de uma manjedoura]).
Isto continuaria no álbum seguinte, Songs from a room (1969), em especial com a canção Story of Isaac, em que novamente ele aborda a questão judaica que parecia ter sumido do seu trabalho. Ao personificar o ponto de vista de Isaac, o filho de Abraão que seria imolado em sacrifício agradável ao Deus israelense, Cohen resume todas as suas preocupações que o guiaram desde que seguiu a trilha de ser um membro do “povo escolhido”:
You who build these altars now
to sacrifice these children,
you must not do it anymore.
A scheme is not a vision
and you never have been tempted
by a demon or a god.
You who stand above them now,
your hatchets blunt and bloody,
you were not there before,
when I lay upon a mountain
and my father's hand was trembling
with the beauty of the word.
(Você que constrói esses altares
Para sacrificar nossas crianças,
Não deve mais fazer isso.
Um sistema não é uma visão
E você jamais foi tentado
Por um demônio ou por um deus.
Você que se ergue sobre eles,
Com seus machados repletos de sangue,
Não esteve aqui antes,
Quando eu me deitei sobre a montanha
E a mão de meu pai tremia
Com a beleza da Palavra.)
A questão judaica não é apenas um problema que envolve raça ou predestinação. Envolve, sobretudo, o fato de que todos são Isaacs em potencial, todos podem ser sacrificados nos seus respectivos altares históricos e que todos estão tentados a ouvir a voz de um deus ou de um demônio. O que permanece é a beleza da palavra, mesmo que ela seja proferida com o temor e o tremor de um pai que matará o próprio filho para que sua descendência perdure na eternidade.
Cohen se vê como um exilado dentro de um mundo inóspito para o que ele acredita que realmente vale a pena. É também o partisan que vaga pela Europa e escuta o uivo do vento avisando a todos que em breve a liberdade chegará para quem quiser tê-la; ou então a pobre Nancy, que, por não suportar o fato de que existe a Casa do Mistério, resolve dar na cabeça um tiro de espingarda sem avisar ninguém; e a única vitória é quando ele confronta a Dama da Meia-Noite, uma mulher sombria que nos remete à morte e se rende ao ouvir dos lábios do poeta a sua verdadeira natureza – "Oh, Lady Midnight, I fear that you grow old,/ the stars eat your body/ and the wind makes you cold." [Dama da Meia-Noite, temo que você cresça velha,/ as estrelas devoram o seu corpo/ e o vento a faz ficar fria]
Ainda assim, a vitória é também passageira. A desolação chega às raias do insuportável no terceiro álbum, Songs of Love and Hate (1971), um disco tão sombrio que o próprio Cohen disse jocosamente que ele deveria ser vendido pela gravadora junto com um par de giletes. Ele não estava brincando: a primeira canção que ouvimos é a hipnótica Avalanche, que, entre dedilhados circulares de um violão flamenco e os acordes graves de um naipe de violinos e cellos, escutamos o seguinte –
Well I stepped into an avalanche,
it covered up my soul;
when I am not this hunchback that you see,
I sleep beneath the golden hill.
You who wish to conquer pain,
you must learn, learn to serve me well.
(Bem, adentrei em uma avalanche,
Cobriu a minha alma;
Quando não sou este corcunda que você vê,
Durmo sob um monte dourado.
Você que quer conquistar a dor,
Deve aprender a me servir bem.)
Muitos afirmam que Avalanche pode ser decifrada como a ars poetica do Cohen cantor. A partir de agora, tudo se resume a isto: Como conquistar a dor. De certa forma, Songs of Love and Hate é um manual para atingir tal meta. Assim como Beautiful Losers tinha na figura de Catherine Tekakwitha uma possível representante da salvação que poucos conseguem, Songs tem Joana D´Arc como a pedra angular desta nova fase. Entre a passagem da avalanche do desespero para o fogo que queima, mas liberta o corpo da santa, o ouvinte constata, entre toques esparsos de humor negro, que ninguém mais o procura, nem para enviar uma carta de cobrança (Diamonds in the mine), sequer consegue cometer um suicídio decente (Dress Rehersal Rag); confirma novamente as dores de estar apaixonado (as assustadoras Famous Blue Raincoat e Love calls you by your name) e só no fim ele se lembrará que deve cantar uma nova canção porque a que existia já está velha e gasta (Sing another song, boys), para, enfim, celebrar as chamas que purificam a Donzela de Orléans (Joan of Arc).
O uso de imagens de santas católicas que conquistam a dor por meio de um sofrimento atroz – Tekakwitha através de autoflagelação; Joana tendo uma morte terrível na fogueira, condenada como “herética” pela própria Igreja que depois a canonizaria – mostra como as preocupações de Cohen chegavam novamente a um impasse. É o sentimento que predomina quando escutamos uma faixa como A singer must die, sétima faixa do álbum seguinte, New skin for old ceremony (1974) –
Now the courtroom is quiet, but who will confess.
Is it true you betrayed us? The answer is Yes.
Then read me the list of the crimes that are mine,
I will ask for the mercy that you love to decline.
And all the ladies go moist, and the judge has no choice,
a singer must die for the lie in his voice.
And I thank you, I thank you for doing your duty,
you keepers of truth, you guardians of beauty.
Your vision is right, my vision is wrong,
I'm sorry for smudging the air with my song.
(Agora a corte está quieta, mas quem confessará?
É verdade que você nos traiu? A resposta é Sim.
Então leia a minha lista de crimes,
Pedirei pela clemência que você ama me negar.
E todas as damas choram, e o juiz não tem escolha,
Um cantor deve morrer por causa da mentira na sua voz.
E eu agradeço-te por fazer o teu trabalho,
Protetores da verdade, guardiães da beleza.
Seu ponto de vista está certo, o meu está errado,
Desculpem-me por sujar o ar com a minha canção.)
Esta percepção irônica de que Cohen se vê como um traidor da “causa” (e que jamais saberemos se política ou estética) continua no cruel autoretrato Field Commander Cohen, em que se descreve como o “santo patrono da inveja e o merceeiro do desespero” (the patron saint of envy and the grocer of despair), mesmo que isso implique ter algumas vantagens em relação a outros pobres mortais, como ganhar um blowjob de Janis Joplin no famoso Hotel Chelsea de Nova York (uma indiscrição que ele depois se arrependeria, talvez por reconhecer que não havia vantagem alguma nisso).
A traição a si mesmo é mais séria do que a traição a um país ou até mesmo a uma pessoa, parece nos dizer Cohen. Afinal, há uma guerra se aproximando e ninguém sabe quando o fogo consumirá a todos nós (como canta nas apocalípticas There is a war e Who by a fire, inspiradas em glosas do Talmud). E o seu velho companheiro, eros? Ele continua a atiçá-lo, mas agora reconhece que tudo a envolver a beleza da amada era apenas mais um disfarce da perda –
You're faithful to the better man,
I'm afraid that he left.
So let me judge your love affair
in this very room where I have sentenced
mine to death.
I'll even wear these old laurel leaves
that he's shaken from his head.
Just take this longing from my tongue,
all the useless things my hands have done,
let me see your beauty broken down,
like you would do for one you love.
(“Take this longing”)
(Você é fiel a um homem melhor,
Temo que ele tenha ido embora.
Então deixe-me julgar o seu caso de amor
Neste mesmo quarto onde decidi
O meu à morte.
Até uso essas velhas folhas de louro
Que ele derrubou de sua cabeça.
Apenas retire esse desejo da minha língua,
Todas as coisas inúteis que as minhas mãos fizeram,
Deixe-me ver a sua beleza destruída,
Como você faria com aquele que amou.)
(“Leve embora este desejo”)
O desejo é fútil e tem uma lógica de destruição muito peculiar. Será esta a nova pele para uma antiga cerimônia? E quem seria sacrificado nela? A capa de New skin é um desenho famoso do livro Rosarium philosophorum, do século XVI, que mostra a união das almas em uma celebração alquímica. Mas Cohen demoraria a encontrar a sua pedra filosofal. Ele teria que provar algo que ninguém supôs que poderia ser: pop.
[Continua no próximo mês]