[Leia a sétima parte do livro]
III
1.
Essa pedra filosofal não surgirá em lugar nenhum, exceto no espírito. O ser humano, contudo, não vive sem que esteja localizado no tempo e no espaço – duas correntes que o aprisionam, mas que ele também deve aprender a tratar com carinho. Então, qual seria esse lugar do espírito? O próprio Reino dos Céus? Sim, mas por enquanto ainda estamos vivos, e suportamos como podemos a nossa cruz. Qual seria um substituto para um lugar que possibilite, se isso for possível, a prática de uma verdadeira política, dentro da realidade onde impera a permanência da perda?
A única resposta razoável é o exílio. Mas então aparece uma nova pergunta: O que seria isto, o exílio? Será um país que não é a nossa terra natal, onde nos sentimos estrangeiros por desconhecermos seus costumes locais? Será um modo de vida, no qual o sujeito se sente deslocado, por estar ele em total descompasso com a sua época? Ou então o sentimento de uma solidão fria, que congela cada um de seus movimentos e ações e que permite, no convívio com o outro, o início de um fenômeno que se chama incomunicabilidade?
Talvez o exílio não seja nenhuma destas alternativas. O motivo é simples: elas parecem ser muito distantes da condição humana, como se fossem perversões de estados do espírito ou, no mínimo, situações esdrúxulas nas quais ninguém deveria viver. Mas o fato é que o exílio é a própria condição humana e quem não aceitar essa dor justa, que se crava na alma como um prego na palma presa ao lenho, evita não só a viver a vida com a intensidade que lhe é peculiar, mas também a cometer o maior dos pecados: a recusa de enfrentar a aventura heroica da fé.
Pois para suportar o exílio é preciso ter três armas: a fé, a esperança e a caridade. E aqui poderíamos tocar nestes registros do exílio que são as epístolas paulinas, mas devemos voltar ao eixo de nossa investigação, o poeta florentino Dante Alighieri – um homem que sabia muito bem o que significava ser um exilado. Expulso de sua querida Florença, em meados de 1300, por causa da rixa entre o grupo conservador dos gibelinos e o grupo revolucionário dos guelfos, participando ele deste último, Dante se opunha à política papal, que queria unir o poder temporal ao poder espiritual dentro da própria Igreja. Sua pena por tamanha oposição foi o banimento, que significava, na sua alma, o Inferno que depois descreveria com detalhes em sua Comédia. Heinrich Heine imaginou precisamente o que deveria ser o sentimento que perseguia Dante: “Quando Dante atravessava Verona, o povo apontava-o com o dedo e segredava: ‘Ele está no Inferno’. E como poderia ele, de fato, sem aí viver, descrever-lhe todos os tormentos? Ele não os tirara da sua imaginação, ele os vivera, experimentara, vira e sentira. Ele estava de verdade no Inferno, na cidade dos condenados: ele estava no exílio”.
O florentino não deixaria de evidenciar de que sua condenação era uma sina divina a ser cumprida, como mostra nas melancólicas “Rimas Várias no Tempo do Exílio”:
“E eu que ora escuto em seu falar divino
consolo e sofrimento
que tem no banimento
gente tão nobre, em meu exílio cresço:
que se o Juízo ou força do destino
quer que um mundo cinzento
turve a flor num momento,
morro entre os bons e logo me engrandeço.
Se ao meu olhar o bem de que careço
pela distância me fugir à vista,
aquele que me atrista,
acharei de leve o que hoje sinto grave.
Chama nada suave,
já consumiu em mim a carne e os ossos
e a Morte já me encosta ao peito a chave.
Se fui culpado, posso
dizer: - foi muita lua ao sol servida
depois de morta a culpa e arrependida”.
Somente os bons e os agraciados por Deus entram no reino do exílio, diz Dante. Sua política, em querer uma monarquia separada do poder espiritual da Igreja, tinha como finalidade a preservação da pureza do transcendente no mundo. Logicamente, houve um impasse, já que o Poder sempre quer justamente devorar o espírito, como vimos. Apesar de ser um discípulo de Aristóteles, Dante não conseguiu seguir o mestre num dos pontos mais importantes de sua filosofia: o de que o spoudaios deve viver a vida teorética – a bios theoretikos.
E o que seria essa vida teorética (também conhecida como “vida contemplativa”)? Mesmo sendo um homem maduro no sentido aristotélico desta condição que apenas poucos conseguem atingir, Dante nunca aceitou a degradação moral pela qual seu mundo estava passando. Sua obra é a síntese de uma alma que une as pontas quebradas da Idade Média e de um Renascimento que, embora ainda incipiente, já mostrava seus perigos com as teorias escatológicas de Joaquim de Flora, de quem Dante tomou várias ideias de renovação política, em especial a do Veltro e a do dux. Por isso, sua reação apaixonada, de querer ir até o fim, não importando se isto acontecia em assuntos políticos, poéticos ou morais. “Serenidade” nunca foi um termo adequado para descrever Dante Alighieri porque, para ele, era impossível ser sereno enquanto o seu mundo se desmoronava embaixo dos seus olhos.
Quando Aristóteles afirmou que o spoudaios pratica a bios theoretikos, ele criou um novo tipo de exílio, talvez menos doloroso, mas igualmente relacionado com a desordem ao seu redor. Foi a única forma que o Estagirita encontrou para resolver o impasse platônico que, se fosse implantado na realidade, criaria uma tirania do espírito a terminar no diabólico. O bios theoretikos é a vida em que o spoudaios aceita, com nobre resignação, o caos que o envolve e, sobretudo, não pretende resolvê-lo, mas apenas estudá-lo porque, segundo as experiências de sua vida, a degradação do espírito e das suas virtudes é inerente ao ser humano. Como a vida política, ao mesmo tempo em que é a concretização das virtudes da alma, é também um território em que elas podem se perder a qualquer instante, Aristóteles sabia que o spoudaios não deve se dedicar somente à vida ativa – a vida dedicada à polis –, mas a uma espécie de recuo, que possibilite a análise das situações sempre por cima, utilizando-se de um senso de simultaneidade que não o faça perder a importância do fato na proporção de cada momento e também na proporção de toda a sua existência.
Descrito dessa maneira, a bios theoretikos parece uma forma mais amena de exílio, quando sabemos que o exilado é incapaz de ter alguma serenidade em sua natureza. Contudo, tanto Dante quanto Aristóteles sabiam que o exílio e a bios theoretikos eram ligados por uma espécie de luta espiritual que os aproximava de algum contato com algo maior do que a simples realidade terrena. Na verdade, as duas formas de vida seriam as mais adequadas – se podemos falar isso no caso do exílio – para que a consciência humana possa suportar o metaxo, a tensão entre o campo divino e o campo mundano. Mas, hoje em dia, sabemos que é impossível realizar a bios theoretikos neste mundo. Primeiro, porque não há condições materiais, uma vez que a sociedade não possibilita ao indivíduo o desenvolvimento integral de suas potencialidades, devido à falta de responsabilidade, ao jogar suas funções nas mãos do Estado-Leviatã, que quer acabar com a individualidade do ser humano para dominá-lo por completo. Segundo, porque a perda de noções e valores morais eternos e nunca relativos provocou uma fraqueza de caráter que impossibilita a existência de spoudaios – ou seja, de homens que podem atuar na vida política orientados sempre por uma ordem transcendente que está dentro de suas almas. Enfim, resta apenas a segunda alternativa, a do exílio. E assim voltamos à pergunta feita no início deste capítulo: o que seria o exílio?
O problema é que não há como definir o exílio. Se o Poder era mutável em suas conceituações e o espírito tem o mistério como essência, o exílio é um território do transcendente, um território que, paradoxalmente, não existe em lugar algum deste mundo. Ele existe, mas está além – é um paradigma, um horizonte a ser encontrado algum dia. Em certo sentido, quem está no exílio não deixa de ter fé e esperança porque sempre espera voltar a algum lugar onde já esteve e de onde se lembrou de muitas coisas boas. Há um inevitável sentimento de melancolia, de nostalgia, de perda constante e, sobretudo, de uma busca de um tempo perdido que nem a memória pode recuperar. Mas há também a esperança de ter alguma coisa novamente, alguma fagulha do divino que se dissipe no efêmero da nossa existência e que, por mais estranho que pareça, nos torne mais humanos. E, conforme a nossa humanidade cresce, a caridade também ressurge, como um novo elo. Assim, com a fé, a esperança e a caridade, o exílio se torna uma nova pátria e também uma espécie de pantera, que nos persegue constantemente. Pois o que é o exílio senão este sentimento que acompanha o seu escolhido durante a vida toda, dentro de seu país ou fora dele, com sua família ou sem ela, sozinho ou acompanhado? Para o exilado, uma prisão é apenas uma outra representação do mundo onde ele vive. Ninguém persegue o exilado (porque ele está sozinho) e, ao mesmo tempo, todos o perseguem (por seguir um caminho insólito no qual aplicará seu espírito a artes desconhecidas). Ele escolheu o seu próprio caminho à medida que seu destino foi ficando claro – o destino da solidão, da procura, mesmo que a procura tivesse um fim inútil. É a partir daí que o exílio em si se torna uma pátria onde as raízes são fixadas somente na vida do espírito, onde os únicos hinos possíveis são o silêncio e a espera. Isso pode parecer um contrassenso numa vida ativa como a da política; mas veremos que ele sopra para onde quer e sabe muito bem para onde vai, mesmo que os obstáculos nos pareçam intransponíveis.
2.
Se Dante viu realmente o inferno porque estava no exílio, então temos de nos perguntar como ele voltou do reino dos mortos para contar a sua viagem para nós, leitores do século XXI. A razão é muito simples: todos nós teremos que realizar, algum dia, mais cedo ou mais tarde, a mesma viagem. O fato de que homens como Platão, Aristóteles e Dante, prefigurando ou imitando a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, terem atravessado a escuridão da alma e retirado alguma luz de dentro dela é um dos acontecimentos mais significativos da história humana. E qualquer um que queira saber como realizar a verdadeira política terá não só de enfrentar a pedra da alma que pode petrificar a existência, mas também solidificá-la em bases morais virtuosas. Mas a verdadeira justiça é aquela que só vemos com a morte, quando somos levados ao definitivo julgamento de nossa consciência perante a consciência do próprio Deus.
A viagem ao reino dos mortos e sua posterior ascensão rumo à redenção da alma foi antevista por Homero na Odisseia e por Platão no final de A República, mas atingiu a perfeição em termos de elaboração de linguagem humana (descontando-se os Evangelhos, em especial o de João, que são revelações) com A Divina Comédia de Dante Alighieri.
O adjetivo “divina” foi uma cortesia de Botticelli, dado quase cem anos depois de seu término, com um Dante exausto por ter levado às últimas consequências a travessia espiritual da humanidade. Mas isto não é um estudo literário e sim uma investigação sobre o conflito entre o Espírito e o Poder na alma do ser humano. Ainda assim, uma rápida análise de três cantos da “Comédia” pode nos ajudar – e muito – nesta nossa interrogação perpétua sobre o exílio.
O primeiro canto a ser analisado é o de número XXV, localizado na primeira parte do poema, o famoso “Inferno”. Vejamos o trecho que nos interessa:
“Se a acreditar, leitor, tu serás lento,
no que eu direi, não me será surpresa,
pois eu, que o vi, a custo inda sustento.
Enquanto eu neles tinha a vista presa,
Uma serpente de seis pés se aventa
Num deles, e seu corpo todo apresa:
As duas patas do meio ela lhe assenta
No ventre, co’as da frente os braços prende
E, em seguida uma e outra face adenta
Co’as traseiras as coxas lhe apreende
E delas de permeio a causa passa
Que, por trás, pelos rins então estende.
Nunca tão firmemente a hera abraça
Uma árvore, como essa horrível fera
Co’os membros todos do outro se entrelaça.
E os dois se colam como fossem cera
Quente, que as formas perca e as cores borre:
Nem um nem o outro já exibia o que era,
Como com o papel queimando ocorre
Já não ter colorido certo algum:
Que preto ainda não é, e o branco morre.
Os outros dois o olhavam; deles, um
Gritava: “Agnel, como mudou tua cara!
Olha, que já não és nem dois nem um!”.
Das duas cabeças já uma só restara;
Surgiam agora os dois semblantes mistos
Num rosto só, que os outros anulara.
Fez-se dois braços dos quatro malquistos;
Coxas co’as pernas, barriga co’o peito,
Transformaram-se em membros nunca vistos.
Cada aspecto primeiro foi desfeito;
Dois e nenhum, e a imagem deturpada
Assim se foi, num passo desafeito”.[Tradução de Ítalo Eugenio Mauro]
Os versos se passam na sétima vala do oitavo círculo do Inferno, onde ficam os ladrões, e Dante encontra com dois que se transformam em outros dois e depois em mais quatro corpos, por causa de uma serpente que os atravessa constantemente. É uma cena que, graças ao seu poder narrativo e plástico, não sai da cabeça do leitor, mas também impressiona porque mexe com uma das preocupações mais importantes da alma humana: a questão de sua unidade e de sua identidade – temas aliás essenciais ao nosso estudo, já que na ação política é fundamental que se tenha, como já dissemos, a unidade do sujeito se relacionando com a unidade da consciência, para depois se refletir na unidade da própria realidade, aceitando dessa forma a permanência da perda na Terra.
Um dos truques estilísticos de Dante em A Divina Comédia – percebido por um de seus maiores estudiosos, Erich Auerbach – é que cada personagem que o florentino encontra em sua peregrinação é também um espelho do estado de seu espírito conforme o estágio de sua iniciação. Todos os envolvidos – exceto no caso de Virgílio e Beatriz, que simbolizam a fé e a razão – são figuras de Dante, isto é, representam momentos de sua vida em que ele também passou por situações semelhantes.
No caso do Canto XXV citado, a cisão de corpos e personalidades por causa de uma serpente diabólica não é uma mera cena de horror espetacular; Dante a inseriu no Inferno porque é justamente isso o que acontece quando se está no inferno dos infernos, que é o exílio – a completa anulação da unidade entre corpo, alma e espírito. Este é um dos maiores perigos do desterro, mesmo que este seja abençoado por uma vontade divina: o exilado não tem mais para onde se segurar, nem na terra, muito menos no seu coração, porque tudo é de uma incerteza lancinante em que a alma se separa, se divide em inúmeros fragmentos e provoca uma doença no espírito que é justamente o fim de qualquer individualidade.
Robert Frost escreveu em seu poema “The Road Not Taken” que, das duas estradas que encontrou numa floresta, ele escolheu a menos movimentada e a mais longa – e isso fez toda a diferença. Esta estrada é o exílio. Ela não somente se impõe – ela também se escolhe. Para ser exato, quem vive no exílio já vivia há muito tempo nele, mas só depois percebeu que não tinha outro meio exceto escolhê-lo, suportando-o como a loucura da cruz de que fala Paulo em suas epístolas. Mas os perigos do reino do exílio são os mais variados possíveis: é um mundo em que a fé, a caridade e a esperança podem se tornar mais afiadas do que nunca – naquele conjunto de possibilidades infinitas a que chamamos Amor, do qual Dante Alighieri era um fiel servo. Assim, o exílio coloca o ser humano num impasse cuja única solução, para muitos, é se entregar às tentações do mundo e cair finalmente num outro tipo de inferno, o inferno da danação, onde a alma nunca mais terá a chance de um contato com Deus.
No exílio – o inferno aqui na terra –, essa possibilidade de que a redenção e a graça divina sejam negadas é iminente. Aliás, é um fato que a luz que nos envolve no exílio o qual é a nossa existência pode tanto nos iluminar, permitindo uma reviravolta frente ao nosso posicionamento na vida, quanto também cegar. Este é o centro do dilema que envolve o coração humano, como explica Virgílio a Dante, no canto XVII do Purgatório, ao explicar que
“Nem criador jamais, nem criatura,
meu filho”, começou, “foi sem amor
natural ou o que o ânimo procura.
O natural nunca erra, enquanto por
Mau objeto aqueloutro pode errar,
Ou por excesso ou falta de vigor.
Enquanto ao primo bem se for voltar,
E aos secundários com mente segura,
Não haverá motivo de pecar.
Mas, quando ao mal se volve, ou com mais cura
Ou menos do que deve, ao bem amigo,
Contra o Feitor emprega a sua feitura.
Podes considerar, pelo que eu digo,
O amor semente de toda a virtude
E de todo ato que clame castigo.
Ora, por nunca poder, da saúde
Do objeto seu, o amor por torcer o rosto,
O ódio a si próprio qualquer um elude,
E, se existir não pode ser suposto,
Cindindo do Primeiro um outro ser;
Não pode ser ódio por este ser-lhe oposto.
Resta ao próximo vosso o malquerer
- sem vosso barro a prosperar, daninho -
que em três modos divide, em meu entender.
Há quem do declinar do seu vizinho
Seu ganho espera, e só por isso almeja
Ver o seu fausto se tornar mesquinho.
Há quem poder, e fama, que o bafeja
Teme perder caso o outro progrida,
Pelo que só o contrário lhe deseja.
E enfim há quem, por injúria sofrida,
Torna-se vingança desejoso;
Co´o mal do outro então seu mal revida.
Daqui para baixo esse querer maldoso
Viste expiar, ora tu o outro entende,
Que busca o bem , mas de modo faltoso.
Cada um confusamente um bem compreende
Que contente o seu ânimo, e o deseja;
Logo, para alcançá-lo ele contende.
Se lento amor vos leva, que fraqueja
Ao chegar-lhe, este giro vos condiz;
Que, após justa expiação, a vós o enseja.
Outro bem há que ninguém faz feliz;
Não é da essência boa, que proporciona
De todo bem o fruto e a raiz.
O amor que a este excesso se abandona
Daqui para cima expia-se em três cordões,
Mas como tripartido se intenciona,
Calo, para que lhe encontres tu as razões”.
[Tradução de Ítalo Eugenio Mauro]
Esta ambiguidade do Amor – que Dante já expressara nas Rime Petrosi – é a marca do fogo no reino do exílio, já que, como também podemos incluir a ação política, muitas vezes as virtudes do espírito podem se transformar nos vícios do Poder. Talvez o que mantenha o exílio, mesmo com todo o seu sofrimento, como uma experiência que todo ser humano deveria enfrentar (se é que já não a enfrenta no dia-a-dia), é aquela qualidade da consciência que só pode ser estimulada pelo mesmo Amor que fere e conforta: a memória. O ato de lembrar para não esquecer do seu passado e encontrar assim um fio comum que possa dar sentido aos fatos aparentemente aleatórios que se compõem a nossa vida, é uma exigência do poder sintetizador do espírito, para que as futuras gerações, graças a este milagre chamado linguagem, aprendam sobre os acertos e erros de seus antecessores.
Assim, quem passa pelo exílio não deve esconder em nenhuma hipótese o que viu e quem encontrou, para que aqueles os quais viveram a mesma experiência saibam exatamente o que fazer e não se deixem vender às seduções de um amor incompleto, que escapou ao Primo Bem e que apenas vive do medo de perder tudo, inclusive de perder-se na morte. Afinal de contas, a vida no exílio é também uma vida de morte, porque a permanência da perda domina as coisas deste mundo, uma vez que não sabemos se as veremos novamente, por mais que tenhamos afeição por elas. Dessa maneira, quem desceu ao mundo dos mortos tem o dever de contar o que viu aos vivos – até para dar testemunho deste fato misterioso que acontece sempre, mas nunca está devidamente iluminado: o da ressurreição. Este chamado ao dever é dado a Dante por seu avô, Cacciaguida, no canto XVII do Paraíso:
“Consciência impura,
seja da própria ou de alheia vergonha,
certo achará a tua palavra dura;
mas, que a qualquer falsidade se oponha
a tua disposição faz manifesta;
e deixa cada qual roçar sua ronha.
Que, se a tua voz se afigurar molesta
À prima prova, vital nutrimento
Poderá fornecer quando digesta.
Esse teu grito será como o vento,
Que aos sumos cimos alça os lanhos seus,
O que à tua honra traz bom argumento.
Por isso te é mostrado nesses céus,
Como no Monte e na vala sofrida,
Só os que a fama elevara aos olhos teus;
Que do ouvinte a razão sempre trepida,
Nem sela fé em modelo procedente
De raiz duvidosa e escondida,
Nem em prova qualquer tão evidente”.
[Tradução de Ítalo Eugenio Mauro]
Certos homens devem viver no exílio e para o exílio porque Deus quis que eles contassem aos outros o que é o mistério da existência. Dante aceitou o seu destino de banido como poucos, mesmo tendo ouvido de seu avô a triste profecia de que “dos teus mais caros bens a aventurança/ tu perderás, e essa é a flecha fatal/ que, de primeiro, o arco do exílio lança./ Tu provarás como tem gosto a sal/ o pão alheio e, descer e subir/ a alheia escada é caminho crucial”.
Esta “alheia escada” é a vida dos vivos que não aceitaram o reino do exílio e que, no fim das contas, é o reino de todos nós. Os três cantos analisados brevemente aqui mostram quais são as condições que permeiam essa tragédia chamada exílio – mas sugerem que ela também pode ser uma benção muito estranha. Esta indefinição é própria da consciência que – como é o caso de Dante – aceitou a vida, a morte e a ressurreição de Cristo como a história que reflete todas as outras histórias. Para nos certificar se o exílio é ou não é uma benção, temos de voltar ao tempo e abordar os grandes profetas de Israel, além, obviamente, da saga de Jesus e seus apóstolos.
[Continua no próximo mês]