FADE OUT:
1. INT — SAGUÃO DE UM AEROPORTO — DIA.
Vemos um HOMEM, cerca de 50 anos, sentado em uma cadeira de plástico, em um desses saguões de espera de aeroporto. O dia está claro, o céu está límpido. Atrás do HOMEM, temos uma grande janela, que mostra um avião que se prepara para decolar a qualquer momento.
O HOMEM mede aproximadamente 1,75 m., tem um aspecto corpulento; suas roupas são as de um sujeito normal, de classe-média: uma calça jeans com aparência de surrada, uma camisa branca, um casaco de poliéster de cor preta, sapatos marrom-escuro, sem gravata ou qualquer adereço mais sofisticado; qualquer um poderia usá-las em qualquer situação cotidiana, se não fosse por um detalhe: elas estão claramente amassadas, camadas de pó e de barro seco envolvem os seus sapatos e nota-se que ele está irritado pelo fato de não ter feito a barba. Ao seu lado, jogada numa outra cadeira, do seu lado esquerdo, uma mochila de cor verde, que pode ter sido comprada em um brechó do exército, com poucos pertences dentro dela.
Ele passa várias vezes a mão pelo rosto e olha constantemente para a ponta de seus sapatos sujos. Está sentado de pernas cruzadas e balança a perna direita (da qual observa o seu sapato) em um ritmo constante e, para ser mais preciso, próximo do neurótico.
Ele olha tanto para o lado direito como para o lado esquerdo do saguão. Observa atentamente as jovens aeromoças, as comissárias de bordo e também os pilotos; escuta-se nos alto-falantes do aeroporto não só as chamadas confusas para os próximos voos, como também canções pop em versões açucaradas que são interrompidas com frequência e, ao que parece, para grande alívio do HOMEM. Neste exato momento, a canção que se escuta é uma versão de ACROSS THE UNIVERSE, dos BEATLES, em que o refrão é identificado por um coral de notas irritantes e decididamente kitsch.
O HOMEM olha para o relógio digital gigante que há no saguão: 11h15. Sacode rapidamente uma manga de seu casaco e observa o relógio que há em seu pulso direito. CLOSE no relógio: 11h14.
Passa a mão pelos cabelos e novamente pelo rosto. Faz uma pequena careta, como se um espelho estivesse à sua frente, quando percebe a aspereza da barba por fazer. Olha para os sapatos. Suspira.
Finalmente se levanta. Pega a mochila, coloca-a nas costas. Parece que ela está leve e deve haver um propósito nisso.
Caminha pelo saguão pelo lado direito. Acompanhamos o caminhar do homem até chegar a um orelhão que está na parede. Pega no telefone, coloca-o entre o ouvido e o ombro, digita uma série de números. Espera. Seu rosto continua tenso por instantes até que parece escutar uma voz no outro lado da linha — e só então sua expressão relaxa um pouco. Começa a conversar, em ritmo lento, bem lento, e bem baixinho, como se não quisesse ser ouvido em hipótese nenhuma. Jamais escutaremos com quem ele está conversando.
HOMEM (tom pausado e baixo)
Oi… Está tudo bem aí?… Por aqui? Bem, por aqui vai indo… Ainda estou esperando… Não sei…Eles me disseram que o vôo sai dentro de alguns minutos, mas ainda não chamaram… Não sei o que acontece… Fique calma… Eu sei… Eu vou conseguir, você vai ver… Tenha calma, viu? Sou eu que deveria estar nervoso, não você…
Vemos ao mesmo tempo em que o HOMEM conversa ao telefone o que ele também observa pelo saguão. As mesmas aeromoças, as mesmas comissárias, os mesmos pilotos. Alguns passageiros sentados, esperando o embarque. Outros caminhando, com suas malas, uns com pressa, outros com calma. O relógio que marca o horário (e o HOMEM sempre verifica se o horário bate com o seu relógio de pulso). Agora, desta vez, vemos uma banca de jornais e revistas à sua frente. Dentro dela, um outro homem, chinês, bem gordo, cerca de 50 anos.
HOMEM
(ainda no telefone, em tom pausado e baixo)
Vou conseguir, calma, viu?…Eles vão me chamar daqui a pouco…E eu vou embora… Eu sei…Também vou sentir sua falta…Tenho de desligar… Não posso ficar muito tempo no telefone senão vão rastrear… Até mais, até mais… A gente vai se ver logo, não se preocupe… Até mais…
O HOMEM desliga o telefone. O rosto se mantém um pouco contraído. Vemos que observa a banca de revistas. Caminha até ela. O chinês balofo o olha curiosamente; o HOMEM também o olha curiosamente. Ele se aproxima ainda mais e pega uma espécie de revista semanal, estilo Veja. Neste momento, ACROSS THE UNIVERSE é trocada por uma outra versão kitsch de SAMBA DE ORLY, de Chico Buarque e Vinicius de Moraes, em um arranjo tão irreconhecível que se parece mais com um jazz de motel, com direito a teclados, saxofones e uma tosca bateria eletrônica. Enquanto lê a revista, olha para o relógio do saguão: 11h18. Nem olha para o seu próprio relógio de pulso — é como se já soubesse que estaria atrasado de qualquer maneira.
Folheia a revista. Em segundo plano, vemos as manchetes dos jornais do dia e também as capas de algumas revistas. Os jornais estampam o seguinte: PRESO LÍDER DA OPOSIÇÃO DO GOVERNO; GOVERNO FAZ RETALIAÇÃO; ATAQUE GOVERNISTA; PRESIDENTE DIZ QUE NÃO TOLERARÁ ABUSOS.
O HOMEM sequer se preocupa em pegar um dos jornais. Continua a folhear a revista. Agora vemos a sua capa; uma cruz sendo queimada: A DESPEDIDA DAS RELIGIÕES. Também olhamos o que o HOMEM lê: matérias coloridas e vibrantes, repletas de fotos; uma delas é sobre um padre que abandonou a Igreja e tornou-se guerrilheiro.
O HOMEM para de ler a revista. Olha para o chinês balofo. Ambos trocam olhares. O HOMEM pega a carteira; tira uma nota; entrega-a ao chinês. Este olha como se estivesse dizendo: “Boa escolha”. O HOMEM também retorna o mesmo olhar, desta indicando algo como “Você acha?”, e logo depois abre a sua boca enquanto entrega a nota.
HOMEM (tom bem baixinho, quase inaudível)
De nada.
Ele volta a se sentar na mesma cadeira onde estava antes, coloca a mochila novamente na cadeira do lado esquerdo; à sua direita, desta vez, vemos uma MULHER, também com cerca de 40 anos, vestida de modo executiva. Ela tem cabelos lisos, com luzes; os olhos são escuros; seu nariz, quando visto de perfil, parece ser um pouco torto; seu corpo parece ter sido bonito quando jovem, mas agora existem apenas resquícios desta época. Na sua mão direita há uma cicatriz que vai da palma até o mindinho.
HOMEM continua a folhear a revista, primeiro em um ritmo lento, depois acelera, até chegar às últimas páginas com impaciência e jogá-la na cadeira no seu lado esquerdo. Passa a mão pelo rosto. Olha o relógio do saguão: 11h21. Novamente, não olha para o seu próprio relógio. Observa a ponta de seus sapatos, salpicados de lama e pó. Ficamos focados no rosto do HOMEM quando escutamos uma voz — a da MULHER ao seu lado.
MULHER (off)
Com licença?
Agora vemos o HOMEM e a MULHER no mesmo campo de visão. Ele dirige-se a ela.
HOMEM
Sim?
A música que toca no aeroporto é uma outra versão muzak de SOPHISTICATED LADY, de Duke Ellington, um pouco mais elegante e reconhecível do que as outras.
MULHER
Você está lendo a sua revista?
HOMEM percebe que a revista está jogada ao seu lado esquerdo, completamente esquecida. Ele sorri, meio abobalhado.
HOMEM
Não, não estou.
MULHER
Poderia me emprestar um pouco? Está muito chato ficar esperando aqui sem ter nada pra ler.
HOMEM
Claro, claro. Fique à vontade.
Ele entrega a revista, meio dobrada.
MULHER
Obrigada.
Ele olha demoradamente para o rosto da MULHER. Há algo em seu olhar. Parece que ela lhe é conhecida de algum lugar.
MULHER pega a revista. Começa a folheá-la. Suas mãos têm dedos pontiagudos, têm-se a impressão de serem leves e rápidas. Ela vira as páginas e lambe a ponta do indicador na língua para lê-la rapidamente. Só agora que o HOMEM percebe a cicatriz em sua mão. Continua a olhá-la, desta vez com mais apuro.
HOMEM
Sabe… seu rosto não me é estranho.
MULHER começa a folhear as páginas da revista com mais vagar. Olha para o HOMEM. Este se sente um pouco intimidado com os olhos negros, mas isto logo acaba quando ela esboça um sorriso. Ao mesmo tempo, percebe-se pendurado no pescoço dela um crucifixo dourado.
HOMEM (com olhar vago)
Especialmente o seu perfil. Sim, o seu perfil. Ele me parece familiar.
MULHER
É verdade? Então lhe faço lembrar de alguém? Uma mulher?
HOMEM
Certamente uma mulher.
MULHER
Uma mulher bonita?
Ela volta a ler a revista — parece que lê as mesmas páginas que já tinha folheado. Seu olhar não se encontra com o do HOMEM.
MULHER
Vai para aonde?
HOMEM (confuso)
Como?
MULHER
VOCÊ vai para aonde?
HOMEM
Ah, sim… Vou… Vou para Londres.
MULHER
Não gosta daqui?
HOMEM (novamente confuso)
Como?
MULHER
Para ir a Londres você não deve gostar muito daqui.
HOMEM
Não, não… gosto sim… (faz uma pequena pausa) Gosto, gosto tanto que já sinto saudades. Tenho saudades de um bom banho e de uma boa gilete.
Os dois ficam em silêncio por alguns segundos.
HOMEM
(tentando recuperar um pouco de sua confiança)
E você? Também vai para Londres?
MULHER (tom simpático)
Não, não. Vou para a Alemanha.
HOMEM
Fazer o quê?
MULHER
Vender alguns produtos…
HOMEM
Ah, então você é vendedora. Vende o quê?
MULHER
Produtos de Natal. Sabe como é, temos de nos apressar. A época logo logo está aí.
HOMEM
Acho que você está um pouco atrasada. Faltam só duas semanas para o Natal.
MULHER para imediatamente de ler a revista. Olha diretamente para o HOMEM.
MULHER
Sim, é verdade. Mas é agora que as vendas aumentam.
HOMEM
Só se forem as vendas de última hora.
MULHER (volta a sorrir)
É claro, é claro. As vendas de última hora. Mas não estamos todos na última hora?
HOMEM
Talvez.
MULHER
Ainda assim, sou a responsável…
HOMEM
Pelo quê?
MULHER
Pelas vendas.
HOMEM
Ah, sim. (outra pausa) É claro.
MULHER fecha a revista. Entrega ao HOMEM:
MULHER (seca)
Obrigada.
HOMEM (tom cordial)
Pode ficar com ela. Nem sei por que comprei.
MULHER
Não achou boa?
HOMEM (tom de desabafo)
É uma porcaria. Sei disso tudo de cor e salteado.
Muda novamente a música que toca no saguão. Desta vez, é uma versão à la Ray Conniff de YESTERDAY, dos BEATLES.
HOMEM dá uma leve espiada no relógio do aeroporto. CLOSE: 11h29.
MULHER continua com a revista em mãos. Olha para o HOMEM.
MULHER
Quem era ela?
HOMEM (novamente confuso)
Como?
MULHER
A mulher que lhe faço lembrar.
HOMEM
Ah, isto…
MULHER
Uma namorada? Uma amiga?
HOMEM
Não. Não sei… Para ser sincero, mal me lembro dela.
MULHER (insistente)
Mas você se lembrou dela agora.
HOMEM
Sim, agora. E de novo me esqueci.
MULHER guarda a revista no fundo de sua bolsa. Começa a remexer em algumas coisas lá dentro.
MULHER
Como você pode se esquecer disso?
HOMEM
Do quê?
MULHER
Das pessoas.
HOMEM
Isso acontece o tempo todo.
MULHER
Comigo não… Não me esqueço de ninguém que passou pela minha vida.
Neste exato momento, escuta-se o chamado para o embarque de um voo.
CHAMADA DE VOZ
Voo para Londres, Sete Três Sete. Voo para Londres, Sete Três Sete. Último aviso.
MULHER
É o seu voo?
HOMEM
Não, não. O meu é o Oito Meia Cinco.
MULHER
O que você faz?
HOMEM
Eu? Sou pintor.
MULHER
Pintor de retratos ou de paredes?
HOMEM (sorrindo)
Não, outro tipo de pintura.
MULHER
Ah, é? Qual?
HOMEM
Já ouviu falar em silhuetas?
MULHER
Um tanto antiquado isso, não?
HOMEM
Creio que sim. Hoje em dia não queremos mais saber de coisas antiquadas.
MULHER (tom de menina curiosa)
Me diga uma coisa: é verdade que o rosto humano não tem simetria?
HOMEM
Dizem que sim. Mas não acredito nisso.
MULHER (tom de galhofa)
Como você não acredita nisso?! Você é um pintor! Deveria saber disso…
HOMEM
Eu SEI disso. Mas saber não significa a mesma coisa que acredito. Além disso…
MULHER
Além disso o quê?
HOMEM
Além disso eu desenho silhuetas. E a grande vantagem delas é que eu posso ver só uma parte do rosto.
MULHER
No caso, a parte que você quer.
HOMEM
(aponta com o polegar para si mesmo, com um riso irônico)
Sim, a parte que EU quero.
A MULHER continua a remexer na sua bolsa.
MULHER
Não sei muita coisa sobre pintura (pausa), mas gostaria de saber…
Ela tira da bolsa um kit de maquiagem e começa a se retocar.
MULHER
Você poderia me ensinar?
HOMEM (novamente surpreso)
Ensinar o quê?
MULHER
O que você sabe.
HOMEM
Em menos de uma hora? Em um aeroporto? Impossível. Meu avião logo logo vai partir.
MULHER (interrompendo a maquiagem, olhando firme para o homem)
E, nesse caso, o que é possível?
HOMEM
Não se pode fazer muito…
MULHER (mudando de assunto rapidamente)
Você é católico?
HOMEM
Não. Não, não sou. Você é?
MULHER (ri com o canto da boca)
Já fui. Mas quem é alguma coisa hoje em dia?
HOMEM
Mas você usa um crucifixo…
MULHER
Ah, isso. É mais um amuleto. Para dar sorte.
HOMEM
Só isso?
MULHER
Por que perguntou isso?
HOMEM (sarcástico)
Você acha que só você pode fazer as perguntas?
MULHER (sorrindo)
É verdade… Estou te importunando… Me desculpe…
HOMEM
Não, você não está me importunando…
MULHER para de retocar a maquiagem. Volta a guardar o kit no fundo da bolsa. Ainda assim, continua a procurar alguma coisa nela.
MULHER
Já sei…
HOMEM olha-a desconfiado.
MULHER
Você não quer me desenhar.
HOMEM
Nada disso. Você está errada.
MULHER
Não quer me desenhar. É isso. Certeza absoluta.
HOMEM (tom desafiador)
Como posso desenhar você? Não tenho papel, nem caneta.
MULHER (procurando no fundo da bolsa)
Isso não é um problema. Tenho caneta e o papel…
Ela continua a procurar na bolsa até seu olhar indicar que encontrou alguma coisa.
MULHER (os olhos brilhando, como uma criança)
Achei! (aparece uma pequena folha de papel em suas mãos) Tome aqui. Estava escrito, hein?
HOMEM (pega a folha, a caneta, rende-se finalmente ao apelo)
Mas temos pouco tempo… O avião…
MULHER (nem percebe o que o HOMEM falou)
Como você vai me desenhar?
HOMEM (com a caneta em mãos, olha rapidamente para a MULHER e já começa a desenhar alguma coisa no papel, apoiado em sua própria mochila)
Vou desenhar a sua sombra.
MULHER (desta vez, é ela quem se apresenta confusa)
Como?
HOMEM
A sua silhueta. Vou fazer a sua silhueta.
MULHER
E isso é possível?
HOMEM
Agora, neste exato momento, é a única coisa possível.
MULHER (dando uma risadinha)
Sabe?… Quero ver…
HOMEM (um pouco irritado pela ansiedade feminina)
Quero ver o quê?…
MULHER
Quero ver como você vai consertar o meu nariz torto.
Neste exato momento, toca no aeroporto uma versão kitsch de I´VE GOT YOU UNDER MY SKIN, de COLE PORTER.
HOMEM
Você vai ver.
CORTA PARA:
2. INT — ATELIÊ — NOITE.
Seguem-se cortes rápidos, flashes de uma cena que o espectador tem de decifrar enquanto vê o que acontece na tela e também escuta o que o HOMEM diz em voice over enquanto desenha a MULHER no aeroporto.
O primeiro take é um close do HOMEM, muito mais jovem, agora por volta de 20 anos de idade. Enquanto o vemos, escutamos uma voz feminina infantil.
VOZ FEMININA INFANTIL (V.O.)
Com licença? (pausa rápida) Você pode me desenhar?
O segundo take é do rosto de um homem muito mais velho. Seu nome é, por enquanto, PROFESSOR, tem cerca de 70 anos e tem a aparência de um sujeito excêntrico, cheio de manias e neuroses.
O terceiro take é do HOMEM e do PROFESSOR pegando uma jovem menina, de uns 13 anos, pelas mãos, como se estivessem indo a um passeio. Neste momento, escutamos a voz da MULHER conversando com o HOMEM, no aeroporto, em voice over.
MULHER (V.O.)
Como você aprendeu fazer isso tão depressa?
CORTA PARA:
3. INT — SÁGUÃO DO AEROPORTO — DIA.
HOMEM continua sentado, sem olhar para a MULHER, empenhado em desenhar a silhueta dela no papel, fazendo tudo isso com uma facilidade impressionante.
HOMEM (tom meditativo, como se estivesse lembrando de algo muito distante no tempo)
Tive um homem que me ensinou muito… Um excelente professor…Ele me ensinou tudo o que sei agora…Tudo sobre sombras e silhuetas, como desenhá-las… registrá-las… não deixá-las que caiam no esquecimento…
CORTA PARA:
4. INT — ATELIÊ — NOITE.
Continuamos a ver os flashes da cena que terá de ser desvendada pelo espectador.
O próximo take é um close da MENINA de treze anos. Podemos perceber seu nariz perfeitamente delineado, seu perfil simétrico.
MULHER (V.O)
Qual era o nome dele?
HOMEM (V.O)
Seu nome era Anton. Era um imigrante europeu — não sei se veio da Alemanha…
Take do rosto do PROFESSOR sorrindo para MENINA. O HOMEM, mais jovem, também faz o mesmo.
HOMEM (V.O)
…ou da Rússia, não sei, também não importa mais. O que importa é que ele me ensinou tudo o que sei…
Take do HOMEM, mais jovem, e de ANTON, desenhando juntos a silhueta da MENINA de treze anos, que está nua e, ao que parece, não se preocupa com a situação inusitada.
MULHER (V.O)
Foi ele quem te ensinou a arte de desenhar silhuetas?
HOMEM (V.O)
Não foi só isso…
Take de ANTON mordendo a orelha da MENINA, agarrando-a por trás.
MULHER (V.O)
O que mais ele te ensinou?
HOMEM (V.O)
Ele me ensinou que você nunca…
Take do HOMEM, mais jovem, esmurrando a cara da MENINA.
Take do rosto da MENINA com o nariz sangrando e quebrado. Ela chora, tenta se debater, tenta escapar. Corre.
Take de uma faca que está perto do acontecimento.
HOMEM (V.O)
… pode tornar um rosto perfeito. Todo rosto guarda segredos, dores, cicatrizes…
Take da MENINA tentando atacar ANTON e o HOMEM, mais jovem, mas este se aproxima violentamente, agarra a faca e corta a mão direita da MENINA, da palma até o dedo mindinho.
HOMEM (V.O)
… em que o pus já se cristalizou no fundo da epiderme. Ele me ensinou que, se você deseja a perfeição, deve escolher as sombras, as silhuetas. Desenhá-las para conseguir o que somente VOCÊ quer ver…
Take de três silhuetas que, juntas, parecem formar uma única sombra: a de ANTON e do HOMEM, mais jovem, estuprando a MENINA.
CORTA PARA:
5. INT — SÁGUÃO DE AEROPORTO — DIA.
Close do rosto da MULHER, os olhos fixos no HOMEM enquanto este a desenha.
HOMEM (off)
…foi assim que viveu a vida inteira, no meio das sombras, das silhuetas.
Agora vemos a MULHER e o HOMEM.
MULHER
E o que aconteceu com ele?
HOMEM
Com Anton?
MULHER
Sim.
HOMEM
Morreu há algum tempo. Encontram-no morto num banco de um parquinho para crianças. Um tiro na têmpora. Dizem que foi suicídio.
MULHER
Dizem? Por quê? Não acredita nisso?
HOMEM
Não acredito em muitas coisas hoje em dia…
Desta vez é a MULHER quem olha para o relógio do saguão. CLOSE: 11h39.
MULHER (tenta disfarçar que não está impaciente)
Você vai demorar muito? Não se esqueça que temos de pegar um avião…
HOMEM (pela primeira vez mostra-se completamente relaxado)
Não se preocupe… Vou fazer tudo com muito cuidado…
MULHER
Espero que sim, espero que sim.
Vemos o HOMEM dando os últimos retoques em seu desenho no papel. Notamos que a MULHER continua a olhá-lo de modo fixo, quase obsessivo.
O HOMEM faz uma assinatura toda floreada.
HOMEM (alegre, como se tivesse feito uma boa ação)
Pronto!
MULHER (fingindo ansiedade em ver o que foi feito)
Deixa ver…
Ele entrega o papel à MULHER. Ela olha demoradamente.
MULHER (finge que está contente)
Está perfeito. Nem parece que sou eu.
Neste momento, escutamos a chamada de embarque.
CHAMADA DE VOZ (off)
Embarque para o voo Oito Meia Cinco. Dentro de quinze minutos. Embarque para o voo Oito Meia Cinco. Dentro de quinze minutos. Embarque para…
O HOMEM levanta-se, pega a sua mochila, prepara-se para embarcar. A MULHER também se levanta. Neste instante, começa a tocar no saguão uma outra versão kitsch de SOMEONE TO WATCH OVER ME, de GEORGE e IRA GERSHWIN.
HOMEM (estende a mão)
Foi um prazer conhecê-la.
MULHER (também estende a mão, força um sorriso)
O prazer foi meu.
O HOMEM começa a andar, mas a MULHER o pega com força pelo braço esquerdo. Ele estranha.
MULHER (firme)
Mas antes de ir embora gostaria de lhe fazer uma pergunta.
HOMEM (nervoso)
Fica para a próxima. Estou indo embora, lembra-se?
MULHER
Por que você está fugindo?
HOMEM (nervoso)
Não estou fugindo. Por que deveria?
MULHER (firme)
Você está fugindo, Felipe.
CHAMADA DE VOZ (off)
Embarque dentro de dez minutos. Embarque dentro de dez minutos.
HOMEM (nervoso, começa a se lembrar de alguma coisa muito grave)
Todos nós estamos fugindo. Sempre fugindo de alguma coisa: de nós mesmos, do mundo, da vida.
MULHER
Nunca precisei fugir, Felipe. Mas isso pouco importa: vocês nunca me deram uma chance para isso acontecer. Abusaram da MINHA confiança. Me deixaram aprisionada pelo resto da vida.
FELIPE deixa a mochila cair no chão. Dá dois passos para trás. Observamos, no fundo, a aproximação de dois soldados do exército caminhando em sua direção.
Close do rosto de FELIPE, assustado, com o olhar de quem teve uma revelação repentina de sua memória.
FELIPE (assustado)
Clarice.
Close do rosto de CLARICE. Seu olhar é fixo para FELIPE e demonstra uma satisfação única. Ela faz um meneio com a cabeça. É para os soldados do exército, que se aproximam cautelosamente de FELIPE.
FELIPE (assustado, começa a caminhar para trás)
Calma, Clarice, calma, muita calma. Faz muito tempo. MUITO tempo.
CHAMADA DE VOZ (off)
Embarque dentro de cinco minutos. Embarque dentro de cinco minutos.
Os soldados se aproximam de FELIPE, que continua andar de costas, prestes a fugir. Ele olha para trás. Vê os soldados. Ao fundo, o relógio do saguão. Close: 11h55. Sem saber a razão, ele resolve olhar para o seu próprio relógio de pulso. Outro close: 11h54.
É neste instante que, repentinamente, CLARICE se aproxima com rapidez e agarra com força os ombros de FELIPE. Eles se entreolham; FELIPE não consegue olhá-la de frente. Ela estende a mão, a mesma mão direita na qual podemos ver nitidamente a cicatriz que vai da palma até o mindinho.
CLARICE (nervosa, controlando a sua cólera)
Se eu, sim, EU, lhe estendo esta mão, você poderia muito bem apertá-la.
Ela força o aperto das mãos. Close nas mãos, com o polegar de FELIPE tocando a cicatriz na mão de CLARICE.
FELIPE (seus lábios tremem)
Mas você não vai..? não vai me…?
CLARICE (seus lábios também tremem)
Não. Não vou.
Soltam as mãos. FELIPE para de andar. Ele sabe que não adianta mais fugir.
CHAMADA DE VOZ (off)
Última chamada para o embarque do voo Oito Meia Cinco. Última chamada para o embarque do voo Oito Meia Cinco. Última chamada…
FELIPE observa CLARICE pegar a bolsa, guardar delicadamente o papel onde está desenhada a sua silhueta e ir embora lentamente, dentro de um corredor estreito que dá passagem para um outro saguão.
Escutamos as últimas notas da versão kitsch de SOMEONE TO WATCH OVER ME, enquanto os dois soldados se aproximam de FELIPE. Vemos ele aceitar o seu destino, as costas curvadas, a cabeça baixa, até a imagem dissolver-se lentamente em um
FADE-IN.
FIM.