Sei que me acusam de perversidades, de coisas inimagináveis e talvez até de ser o próprio demônio. Tais alegações (que não serão resolvidas a tempo) não me causam espanto. Sou o que sou. Pouco saio da minha casa, simplesmente pelo fato de que as portas estão sempre abertas — já que são infinitas — para o resto do mundo, para os homens, para os animais, para as mulheres — especialmente as mulheres. Se forem meninas, tanto melhor. Ninguém encontrará aqui a não ser o necessário para sobreviver. A solidão e o silêncio são apenas disfarces deste lugar — que não há outro semelhante na face da Terra e onde, por mais que os meus detratores neguem, sou também um ridículo prisioneiro. Não, não há cadeados, câmeras de vigilância, guardas — nada que me detenha. Apenas fico aqui, à espera deles. Às vezes eu saio, mas é para somente dar uma volta na praça, ir ao mercado e lá eu vejo se chegou alguma carne nova. Nunca há. Quem me avisa das novidades é Gisele, que me diz que fui reconhecido por uma moça ou um garoto, ambos com olhos lacrimejantes. Parece também que o povo me teme. Eles olham para minha casa como se fosse um santuário, um altar. Deve ser mesmo. Não posso fazer nada sobre isso. Sou o que sou.
Afinal de contas, sou único — e insubstituível. Nada me interessa mais do que posso transmitir à raça humana, exceto a minha singularidade. Ocorre que, quando faço isto, ela se transforma em algo um tanto desagradável, mas ao mesmo tempo banal, se for visto dentro do longo curso da história humana. É verdade também que a minha impaciência, ao praticar esses atos, não me permite ser visto como o sujeito generoso que sou. Às vezes eu lamento isso porque, apesar de todos os contatos que arranjo fora desta casa, estendidos em um mapa que só eu posso ver, esta façanha não me impede de sentir os longos vazios a intercalarem as noites e os dias.
Para resolver esse tédio, crio distrações. Com a ajuda de Gisele, espero por alguém em alguma sala desta casa onde suporto a luz do sol por algumas horas. Evito correr pelas galerias para não desperdiçar a energia no momento de praticar o ato. Quando sozinho, rolo pelo chão, como uma criança. Na madrugada, finjo que durmo, para não ter de chamar Gisele, que dorme em outra galeria, no lado oposto da casa. E, assim, quando finjo que acordo, a luz do sol já ilumina por cima das minhas pálpebras — e vejo que há um outro eu, simétrico a mim, também habitante no meu quarto e na minha casa. Para permanecer na brincadeira — e para impedir que o vazio continue a se impregnar dentro de mim — dou-lhe um nome. Abadon. Recebo-o sempre com reverência: “O que tu queres?”. E ele sempre me pede que chame Gisele. O que eu faço com muito gosto porque sei o que meu hóspede pretende.
A minha casa, de fato, tem muitas moradas. E elas se repetem, não só na minha mente, mas sobretudo se repetem no mundo. Eu gostaria muito que ela não fosse somente do tamanho do mundo e sim que fosse o próprio mundo. Contudo, sei também que isso é impossível. Há limites em tudo que me cerca. O que me sobra é a visão da noite, na qual eu vejo a minha casa se estendendo por todo o globo terrestre, transformando os mares e os templos em extensões da minha propriedade, a possuir cada habitante seu, e sempre com o sol acima de nós e, embaixo, Abadon, a imaginar que foi ele, junto comigo, que criou as estrelas e o resto do cosmos.
Lembro-me disso apenas em fragmentos. São esses mesmos estilhaços da memória que me fazem ver cada moça que Gisele entrega aqui em casa, todas vindo delicadamente, sempre com as pequeninas mãos suadas. Ouço seus passos logo na entrada da galeria principal e fico todo alegre. O ato dura alguns minutos e geralmente não há ferida alguma. Pagá-las com dinheiro em espécie e pedi-las, na próxima vez, para chamarem alguém parecida é uma forma de ignorá-las por completo. Não há despedidas, pois sou o que sou. Toda vez que vão embora, escuto Abadon em meu ouvido, a sussurrar: “Um dia, seu redentor chegará, sem aviso, um ladrão no meio da noite”. E por isso espero aqui, no centro da casa, escutando todos os ruídos do mundo, na esperança de que esse redentor seja mais como eu e que não tenha nenhuma semelhança com o anjo de asas deformadas a suspirar dentro de mim.
A luz da manhã veio e o acordou. Estava afogado no seu próprio sangue.
— Acredita? — disse o legista para si mesmo, na hora de escrever o relatório para a polícia — O desgraçado olhava somente para o céu.