High water risin’, six inches ’bove my head
Coffins droppin’ in the street
Like balloons made out of lead
Water pourin’ into Vicksburg, don’t know what I’m goin’ to do
“Don’t reach out for me,” she said
“Can’t you see I’m drownin’ too?”
It’s rough out there
High water everywhere.
Bob Dylan, “High Water (for Charley Patton)”
1.
Logo em seu primeiro livro, Pré-História & História — as instituições e as ideias em seus fundamentos religiosos (2017), o historiador Maurício G. Righi nos apresentou a uma forma inusitada de ver o percurso da condição humana. Inspirado na teoria mimética de René Girard (1923–2015) e na reconstrução histórica do galês Christopher Dawson (1889–1970), entre outros, ele argumenta que o ser humano realiza uma peregrinação civilizacional. Começa com o homo urbanus, habitante das cidades construídas sobre sacrifícios repletos de mortes hediondas, vai ao homo necans, o caçador que precisa matar para sobreviver neste mundo cruel, e termina com o homo spiritualis, o sujeito que controla o Mal dentro de si porque decide imitar algum Deus o qual o faça superar os seus vícios e conquistar a virtude que ainda habita no seu coração. Righi tem pontos em comum com o escritor Claudio Magris, o qual, no ensaio The Fair of Tolerance, escreve que, para manter a unidade social, a tolerância só será justa se for observada a existência de princípios não negociáveis. São as leis não escritas dos deuses meditadas por Sófocles na Antígona, aquilo que não se pode negar a existência de forma nenhuma porque formam a base da realidade objetiva, na qual o ser humano vive. Quem negar isso, cairá naquele alçapão da loucura que Dostoiévski descreveu tão bem como “tudo é permitido”, no qual o caos torna-se uma instituição. Para Magris, essas “leis não escritas” são compreendidas sempre à luz da razão humana e consistem nesse centro de experiência comum que compõe e solidifica a cultura ocidental. É justamente essa experiência permanente para todos que o ensaísta triestino identifica como a verdadeira “laicidade”. Ser “laico” não significa ser contra a religião; significa respeitá-la como uma experiência factual que molda outras culturas; significa usar a luz da razão humana para compreender que existem outras coisas além da nossa vã filosofia; significa que, para a religião cristã, que moldou o continente, deve-se respeitar qualquer outra religião, e esta não pode desrespeitar os princípios não-negociáveis (e vice-versa). Ora, o que o autor de The Fair of Tolerance defende é o contrário do que afirma, por exemplo, um iluminista como Voltaire. Para o francês, a tolerância só pode existir se a religião for vista como uma mera superstição. Já tanto para Righi quanto para Magris, o fenômeno religioso é justamente o fundamento da verdadeira tolerância — a que obriga o ser humano a dominar a si mesmo, sob quaisquer circunstâncias extremas. Portanto, jamais pode se negar que a única igualdade democrática dos nossos tempos é a prática do Mal, a existência do mysterium iniquitatis, do berço ao túmulo.
2.
O leitmotiv do percurso é constante na obra de Righi e na de seu inspirador maior, René Girard. Isso se evidencia no segundo livro do historiador brasileiro, Sou o Primeiro e o Último — estudo em teoria mimética e apocalipse (2019). No caso de Girard, vivenciamos este percurso no próprio pensamento desse autor instigante, que elaborou uma grande obra e que praticamente beira à monomania, na qual ele explica que jamais desejamos por nós mesmos e sim porque imitamos os desejos dos outros — ou seja, quem admiramos, invejamos, nos apaixonamos, etc. É o famoso desejo triangular, cujo conceito seminal foi desenvolvido na estreia como crítico literário de primeira categoria (em Mentira romântica e verdade romanesca, de 1962), depois foi além com os estudos antropológicos no assustador A violência e o sagrado (1972) e, ao sintetizar as duas linhas de trabalho, adentrou também na densa selva da hermenêutica bíblica, em especial a do Novo Testamento, com descobertas surpreendentes sobre como a vinda de Cristo seria a revelação do Deus encarnado na Terra e de toda a matriz de violência da cultura humana — as tais “coisas ocultas desde a fundação do mundo”, título de um famoso livro seu de entrevistas publicado em 1978 e que o transformou em personalidade fora do mundo acadêmico. O ponto de virada, em todos esses escritos, é a noção de que o mimetismo deixa de ser triangular a partir de um momento que podemos chamar de “salto civilizacional”, transformando-se em algo ainda mais trágico: o desejo metafísico, no qual um sujeito de temperamento possessivo pode sufocar qualquer tipo de individualidade, quando passa a querer ser cada um dos seus alvos, como se estivessem presos em uma coleira invisível. Como bem descreveu Robert Hamerton-Kelly em Violência Sagrada — Paulo e a hermenêutica da Cruz (2012), um livro essencial para entender a escola de pensamento da qual Righi faz parte, “o desejo é imitativo e apropriativo”. Ele só existe se for mediado por alguém que também possa ser um modelo para outra pessoa; mas se a mediação se estreita entre dois sujeitos que, direta ou indiretamente, desejam a mesma coisa, a tensão aumenta de intensidade e, assim, temos três estágios. O primeiro é quando o desejo imita o desejo do outro pelo objeto. O segundo é o self do indivíduo que passa a substituir o objeto pelo desejo do outro; e o terceiro ocorre ao notarmos que, ao substituir o objeto, “o self busca não apenas possuir o desejo do outro, mas seu próprio desejo, na medida em que o encontra mimeticamente no outro, uma vez que o self e o outro se tornam duplos”. Deste ponto em diante, a tensão se torna crescentemente intolerável, os duplos se aceleram na sua indiferenciação, assemelhando-se cada vez mais em uma espiral descendente “à medida que as diferenças entre eles começam a progressivamente a desaparecer”. A imitação de mão única revela ser uma imitação de mão dupla que, posteriormente, alcançará seu estado crítico — e então, com as distinções borradas, “as identidades humanas se aglutinam e os monstros aparecem”, com a chegada da inevitável “crise sacrificial”, na qual alguém será punido pela avalanche diabólica dos desejos. Aqui reside, portanto, a raiz de um comportamento que, se ampliarmos na trajetória da história humana, devemos chamá-lo de “apocalíptico.” Em Sou o Primeiro e o Último, Righi parte da tese de que a obra de René Girard anseia por ser decifrada numa chave não só apocalíptica em si, mas sobretudo num conteúdo com este mesmo tom que, ao fim e ao cabo, seria uma releitura da revelação cristã, a qual recebemos desde a vinda e a ressurreição de Jesus de Nazaré. Por meio de uma leitura cerrada não só dos livros girardianos mais famosos como também de outras pérolas pouco lidas — como o ensaio sobre Dostoievski lançado em 1971, o fundamental Eu Via Satanás Cair do Céu Como um Raio (1997) e a última magnum opus, Rematar Clausewitz (2011) — , o brasileiro prova que há uma “inteligência bíblica” na análise de Girard sobre o comportamento humano, uma inteligência que resume uma “caminhada silenciosa” cujo principal insight, ainda que em alguns momentos bastante subterrâneo, foi “usar os Evangelhos para fazer ciência”. Isto implicou ver, sob um novo prisma (e aqui Righi teve inspiração imediata de uma declaração informal feita por Hamerton-Kelly), que o conjunto total dos escritos de René Girard seria indissociável do homem, indissociável de sua existência concreta e dramas pessoais, do fato de ter sido um acadêmico e da relação que isto teve com sua produção intelectual. Para Righi, percebê-lo foi semelhante a sentir “o sopro que Elias escutou após a tormenta”, algo que foi “abrindo espaços” na vida interior de Girard, especialmente “no transcorrer de um momento particularmente difícil de sua existência, até que florescesse, finalmente, numa espécie de ‘conversão’”. E é então que o historiador brasileiro tem o seu próprio insight — e o eixo do seu novo livro: para ele, “houve um processo contínuo de assimilação apocalíptica que invadiu o pensamento do teórico francês, processo iniciado desde o final dos anos 1950, conduzindo-o rumo a uma escatologia progressivamente conectada ao apocalipse dos Evangelhos e ao Apocalipse de João, elementos estes reconhecidamente ligados às admoestações de Jesus sobre a fundação mentirosa do mundo, justamente as coisas ocultas fundadas no ‘reino de Satanás’”.
3.
Uma das características principais da modernidade é a apropriação que o “reino de Satanás” fez daquilo que foi classificado por Righi de “inteligência bíblica”. Aqui, o elemento essencial é a inversão de sentido rumo a uma imaginação apocalíptica, que vê tudo a convergir para uma catástrofe inevitável, em vez de ir para outra espécie de apocalipse — um apocalipse moldado pelo summum bonum [Bem Supremo], cuja principal intenção é nada mais nada menos que garantir a salvação da alma dos verdadeiros cristãos, os quais prevaleceram enquanto viviam neste “vale de lágrimas”. Para Righi, o que a obra de Girard faz é restaurar essa derradeira Soberania do Bem, se usarmos a expressão de Iris Murdoch. Contudo, nem sempre foi assim, em especial entre os scholars da “república invisível”, que comanda o verdadeiro mundo das ideias. Tomemos o caso de Eric Voegelin e seus discípulos, entre eles o mais brilhante de todos, Ellis Sandoz, especialmente no seu grande livro Political Apocalypse: a study of Dostoievsky´s Great Inquisitor (2008). Na sua acepção, um “apocalipse político” é a experiência histórica que tem seu conteúdo de significado retirado daquilo que chamamos de “Livros da Revelação” na Bíblia. No Antigo Testamento, temos o de Daniel; no Novo, temos o livro que deu o nome ao gênero literário hoje chamado de “apocalíptica” — e que lida com o desvelamento das primeiras e das últimas coisas que estruturam a nossa realidade objetiva, em especial nas suas perspectivas metafísica e escatológica. A literatura deste tipo é abundante no curso da História — e foi uma das correntes principais de pensamento entre a Idade Média e o Renascimento, especialmente entre as polêmicas ocorridas por causa da Reforma Protestante. Um dos pensadores mais célebres desse período foi o teólogo Joaquim de Fiore (1131–1202), cujas preocupações apocalípticas permearam a sua interpretação de que a História teria um sentido definido. Este tipo de comportamento coincidiu com a imanência da escatologia cristã e também com a ascensão radical do secularismo na Civilização Ocidental. Dessa maneira, o apocalipse político encontrou expressões notáveis da sua perspectiva idiossincrática nos vários movimentos gnósticos que surgiram nos anos posteriores, chegando ao seu clímax após a Revolução Francesa, com sua obsessão pelas ideologias do progressismo, utopianismo e ativismo revolucionário, todas incorporadas nos ensinamentos dos séculos XIX e XX. O detalhe sinuoso de como o “reino de Satanás” infectou essa perspectiva é que, para ser identificado como tal, o apocalipse deve ter os seguintes elementos. Em primeiro lugar, ele é geralmente percebido e articulado em tempos de extrema angústia e tensão nervosa; é repleto de avisos de sofrimentos e maldades sem precedentes, e sempre encoraja os seus leitores a perseverarem na fé e justiça divinas. Em segundo, ele cria uma especulação histórica que divide o curso dos eventos em uma sequência de períodos temporais, representando-os como se fossem polos em um campo de batalha, onde as forças agudas e duais do bem e do mal — entre Deus e Belial e seus demônios — atuam simultaneamente no presente e no futuro. Em terceiro, é igualmente profético e escatológico em seu conteúdo; no contexto bíblico, pode ser distinguido de outros relatos proféticos e escatológicos pelos seguintes fatores: (a) a profecia apocalíptica é dada em um alcance temporal que é extremamente amplo, com uma duração de séculos, em vez de se estender no futuro imediato, além de ocorrer num escopo espacial que transcende as preocupações cotidianas, para enfim atingir proporções cósmicas; (b) a escatologia apocalíptica não se preocupa somente com o fim derradeiro da História, mas, já que foi concebida com um senso mortal de que o curso das coisas chegará ao seu término, lida em especial com os eventos e as evidencias de que, em breve, teremos um acontecimento esclarecedor. E, finalmente, (c) o apocalipse representa a dinâmica da História tanto como algo que permite ao ser humano exercer a sua liberdade plena como a possibilidade do homem de se render à vontade de Deus, em um processo histórico que culminará na intervenção direta do Messias para alcançarmos a eternidade no Reino dos Céus.
4.
Outro exemplo de apocalipse com perspectiva negativa, um apocalipse orientado não pelo summum bonum, mas sim pelo summum malum [Mal Supremo], é o que encontramos nos minuciosos estudos do scholar americano Richard Landes, desta vez com outro nome: expectativa apocalíptica. Trata-se de um tipo de discurso que sempre começa com o nosso modo de percebermos o tempo — que, no caso, ainda guarda uma forte influência da chamada “filosofia da História” de Santo Agostinho, descrita especificamente em seu tratado A Cidade de Deus. Apesar da sua reflexão ser a resposta mais responsável já feita sobre o fato de que ninguém sabe o que acontecerá quando o Fim dos Tempos finalmente chegar (pois ele pode ocorrer a qualquer momento, sem nenhum aviso), ainda assim Agostinho moldou a nossa consciência — e, em especial, a consciência daqueles que se autodenominam “intelectuais” — de uma maneira tão paradoxal que, ao contrário do que o bispo de Hipona pretendia, aprendemos a suspender nossos juízos morais e a evitar decisões que envolvam uma distinção nítida entre o Bem e o Mal. De acordo com o autor de Confissões, vivemos no saeculum, o mundo do tempo-espaço, da história e seus sofrimentos, onde vivemos a existência humana encarnada. Este saeculum é um corpus permixtum, um mundo extremamente confuso e permissivo, onde o Bem e o Mal estão misturados, no qual até mesmo uma instituição como a Igreja Católica compartilha da confusão entre esses dois, incapaz de atender à sua vocação escatológica. O peso deste mundo é evidente quando nos deparamos com a inveja, a libido dominandi (vontade de poder) e a traição dos nossos semelhantes, o que parece nos condenar a uma vida de decepções constantes. Apesar de nunca afirmar quando exatamente testemunharemos o Fim dos Tempos, Agostinho diz que isso acontecerá algum dia, e com absoluta certeza, uma vez que, ora, as Escrituras previram-no no Apocalipse de São João. Até lá, somos obrigados a viver com o Mal, representado sobretudo pela violência sagrada e pela injustiça. Agostinho também acreditava na providência divina — ou seja, Deus poderia intervir quando quisesse para impedir o crescimento do Mal. Mesmo assim, com a passagem do mundo medieval para o moderno, a crença numa providência divina perdeu força na psique do homem, e a teodiceia — a justificativa na existência de um Deus bom e caridoso em um cosmos dominado pelo mysterium iniquitatis — foi sendo devidamente questionada, até chegarmos num momento em que nada mais sobrou, exceto o “desencantamento” que soçobrou em nossos corações. Isso não impediu que a expectativa apocalíptica continuasse nas mentes modernas por um bom tempo, transformando-se assim numa espécie de “transcrição oculta” [hidden transcript] no comportamento cotidiano, em especial nas áreas da cultura, política e tecnologia. Nesta percepção dividida entre o “tempo normal” que pensamos viver e o “tempo apocalíptico”, que tomou conta do nosso inconsciente, também descobrimos que a maioria das pessoas opera entre uma transcrição pública e outra oculta. A primeira seria aquele tipo de atitude em que tentamos aceitar a predominância da ordem social e a segunda seriam as narrativas jamais articuladas de forma explícita, em que nós apenas falamos de modo sussurrado e anônimo, igual ao seguinte ditado etíope — “Quando o grande senhor passa por nós, a mulher do camponês acena com a cabeça em respeito e peida silenciosamente”. Pois bem: a expectativa apocalíptica é uma “transcrição oculta”, é esse “peido silencioso”. Não queremos admiti-la, mas lá está ela, viva, forte e cada vez mais resiliente. É uma liturgia cíclica que não queremos acreditar que ainda comanda nossas ações mais banais. A diferença essencial entre ter esse tipo de expectativa na época de Agostinho e neste século XXI é o fato de que, com a ausência de uma percepção ativa da presença de Deus nas coisas deste mundo, passamos a acreditar que o Mal só pode ser vencido se um evento definitivo resolver esse desequilíbrio, numa revelação final da justiça divina que, por falta de alguém que faça o trabalho corretamente, substitua o papel divino. A partir daí, seguir-se-á um período maravilhoso, os mil anos que trarão paz, harmonia e doçura entre os seres humanos, algo que Agostinho jamais imaginou quando escrevia sobre o saeculum em A Cidade de Deus. A força dessa transcrição oculta é tamanha que, como o evento milenar nunca aconteceu (e, ao que parece, jamais acontecerá), a noção apocalíptica do tempo acentuou-se cada vez mais entre nós, contagiando toda a sociedade, indo de suas franjas — com os desajustados e excluídos — até atingir o topo da hierarquia — como é o caso da elite política que hoje domina o globo terrestre. É então que surge, aqui, um problema grave: enquanto a expectativa e o discurso apocalípticos se mantiverem na periferia da sociedade, serão perfeitamente administráveis. Todavia, quando se transformam numa epidemia, aquilo que julgávamos conhecer como a esfera pública, a coisa será rompida sem nenhum aviso. E assim os seguintes comportamentos, descritos abaixo por Richard Landes em Heaven On Earth: The Varieties of Millennial Experience (2012), antes estritamente marginais, passam a se tornar dominantes, sem que o resto da população possa fazer nada a respeito, uma vez que também está completamente mergulhada no contágio dessa transcrição oculta. A ordem dos eventos ocorre da seguinte maneira: em primeiro lugar, há a perda de uma comunidade geral, mais orgânica, que acompanha a entrada a uma comunidade mais íntima, mais particular, fechada em si mesma. Seus integrantes passam a ter um sentimento de conexão espiritual, de um propósito em comum, de um compromisso cósmico — e assim tornam-se crentes num grupo que continuará inalterado, mesmo quando ficar evidente que o evento derradeiro não aconteceu. Depois, o crente apocalíptico passa a viver em constante ato de individualismo radical, rompendo com o passado e, ao mesmo tempo, submetendo-se da mesma forma ao novo grupo, em particular ao líder do movimento, completamente inspirado na transcrição oculta. Isso cria, entre eles, uma vulnerabilidade psicológica — em especial, quando se põe a mais completa confiança nas mãos desses líderes — que, paradoxalmente, permite aos outros membros do grupo apocalíptico ter a certeza de que podem guiar os que estão fora da comunidade e os quais, se insistirem nesse tipo de atitude, certamente se apresentarão como fracos ou como vítimas de uma “lavagem cerebral”. Em terceiro lugar, quanto menor for o horizonte temporal desses grupos, muito mais intensa se torna a expectativa apocalíptica. Cada episódio deste tipo é algo semelhante ao do porco que passa a ser bem alimentado para depois ser levado ao abatedouro — sua morte é o ponto final que enfim revelará a sua função neste planeta. A tensão psíquica resultante deste tipo de atitude é entre a cautela e a paixão e, para quem é de fora, tudo o que parece ser irracional e insano é, para quem está dentro da comunidade, pleno de ardor e propósito — e assim a intransigência do crente cresce cada vez mais, conforme a decepção surge como fato inevitável. E, em quarto lugar, a proximidade do momento apocalíptico induz a um comportamento exaltado e extremo, que vai do ascetismo radical à generosidade extravagante, passando por atos violentos (como licenciosidade sexual, quebra de tabus, consumo de alucinógenos e até mesmo assassinato). Eis um pêndulo psicológico que também observamos nas estruturas sociais dominadas pela expectativa apocalíptica — e que guarda semelhanças assustadoras com a violência sagrada do mimetismo descrito por René Girard. São estruturas que, de uma maneira ou outra, profundamente antiautoritárias (pelo menos a respeito de onde existem as velhas autoridades), geralmente começam como igualitárias radicais (na ode contra a propriedade privada e a favor da propriedade coletiva) e, imersas no desconhecimento de que não há liberdade sem um mínimo de ordem, acabam por se tornarem, conforme as circunstâncias, em sociedades ainda mais autoritárias e repleta de desigualdades ainda mais extremas entre os seus membros.
5.
Para superar o apocalipse do summum malum e, enfim, começar a contemplar o apocalipse do summum bonum, torna-se fundamental passar por outro percurso — o da conversão. Aqui estamos falando de um dos conceitos mais caros à obra de Girard — algo pelo qual o próprio teórico francês atravessou para que suas ideias não ficassem petrificadas numa espécie de racionalismo estéril, imune à realidade concreta. E é nesse ponto que a inteligência bíblica do apocalipse começa a ser vista como se fosse uma invasão do eterno em nosso cotidiano dominado pelo “reino de Satanás”. Sem essa entrada do mundo invisível no visível, em nossa percepção, não teríamos como entender que a conversão é viver a “virtude do risco” — ou seja, colocar-se diante da obra a ser escrita não como observador imparcial, mas sim como um pesquisador ativo. A própria tese de Girard passou pelo teste, ao percebermos que o apocalipse começa a se manifestar no final de Mentira Romântica e Verdade Romanesca, alcançando seu desvelamento derradeiro nas páginas sobre o poeta Friedrich Hölderlin, em Rematar Clausewitz. O fundamento desta conversão girardiana está em outro insight revelador (e completamente incorporado por Righi em seu livro): o de que é verdade que o Logos está, sim, desmoronando-se no mundo, apesar de tudo o que foi feito nas belas construções culturais, mas há também um equívoco enorme ao não percebermos que essa mesma evidência “se encontra distorcida e perturbada por uma enorme ilusão, e essa é a mais estranha e durável ilusão de todo o pensamento ocidental”. Com sua habitual (e dolorosa) lucidez, Girard explica esse devaneio civilizacional da seguinte maneira (a ser encontrada no ensaio “A subversão do mito pelos Evangelhos”, disponível na antologia Política e Apocalipse): “A ilusão segundo a qual o Logos grego de Heráclito e o Logos judaico-cristão são a única e a mesma coisa. Essa ilusão já está presente no pensamento medieval, o qual vê o Logos de Heráclito como uma antecipação do Logos de João. Está presente na escola histórica da modernidade, que vê o Logos joanino como cópia e usurpação do Logos grego. Está, ainda, presente em Heidegger, o primeiro que tentou separar o Logos grego do judaico-cristão, mas que não teve êxito ao ver a mesma violência em ambos. Essa assimilação do Logos judaico-cristão em função do grego é muito mais do que um simples equívoco, certamente, pois é um fato da nossa história; é, na verdade, o fato intelectual capital da nossa história.”.
6.
O fato de que os dois Logoi não podem ser o mesmo Logos fica evidente quando Girard confirma sua conversão dentro de sua obra, quando assume seu erro em relação ao uso equivocado do conceito de sacrifício. Essa “distração invencível” se mantém diante dos nossos olhos cheios de escamas, porque não queremos perceber que “o Logos judaico-cristão, o Cristo como Logos, é realmente a verdade que não está aqui”; ele é “a verdade que é sempre expulsa, negada e rejeitada” e que “constitui a formulação mais direta de tudo que está agora em jogo em nossa crise cultural, na desintegração do Logos grego e cultural. Esse Logos grego é o Logos construído sobre a violência e o mal-entendido gerado por essa violência humana, é o Logos da expulsão, ao passo que o Logos judaico-cristão é a verdade expelida, ou, ainda melhor, a própria verdade, mas que ainda é expulsa e rejeitada”. Enfim, no mundo dominado pelo Reino de Satanás, nem mesmo o apocalipse consegue ter um sentido objetivo e benéfico e, portanto, sua essência real será igualmente expelida do debate público e da consciência individual, por mais talentoso que seja o estudioso do assunto. E não se trata apenas da pureza da “expectativa apocalíptica” que está em risco. Trata-se do summum bonum, o Bem Supremo, que foi sacrificado da própria realidade tal como a conhecemos. E, nesse ponto, nem Girard passou imune a esse delírio; contudo, o tempo lhe deu a “inteligência bíblica” para corrigir-se. Em Coisas Ocultas Desde a Fundação do Mundo, por exemplo, o francês afirma, sem hesitar, que a vinda do Cristo denuncia o mecanismo mimético do mundo da violência (o nosso próprio mundo), e o resolve por meio da renúncia a qualquer espécie de ação que interfira na vontade de Deus — no caso, a de se mostrar como um poder que recusa a manutenção do desejo violento, que não é responsável por qualquer ato que o homem possa cometer contra si mesmo, pois Deus não tem culpa de nada, já que o ser humano mata porque quer esquecer que mata. No meio desse raciocínio, temos uma bomba atômica epistemológica: a visão que Girard tem sobre o cristianismo histórico, considerado por ele como uma versão deturpada de algo que, na falta de nome melhor, é chamado de “cristianismo sacrificial”. Segundo a sua leitura dos Evangelhos, a paixão de Cristo não teria sido um sacrifício. Jesus teria de morrer de qualquer maneira, porque se continuasse a viver neste mundo, o do Reino de Satanás, seria obrigado a praticar algum ato terrível para permanecer nele. Contudo, antes que nos apressemos a julgar o argumento, chamando-o prontamente de “herético”, devemos lembrar de que o termo sacrifício tem um sentido peculiar na obra de Girard; para ele, “sacrifício” é o resultado chocante do mecanismo mimético, o momento em que as disputas que destroem a sociedade chegam a um ápice que só será resolvido através da morte de um inocente — o “bode expiatório” — expelido da consciência humana por meio da construção deliberadamente artificial de um mito (hoje em dia seria a tal da “narrativa”). Dessa forma, como o Cristo não é um bode, pois é a única vítima na história que tinha plena consciência de seus atos, a Paixão não pode ser considerada um “sacrifício” lato sensu, simplesmente porque era a sua função, conforme a vontade do Pai, denunciar a violência da qual se funda toda a cultura humana. Para o alívio de muitos e, talvez, do próprio francês, Girard consideraria outra forma de ver a morte de Jesus como um “sacrifício diferenciado”, num livro de entrevistas, publicado anos depois, Evolução e conversão (2011). Ali se lê: “Uma vez que o sentido do sacrifício como imolação, assassinato, é o antigo, decidi que o termo ‘sacrifício’ deveria aplicar-se ao primeiro tipo, o sacrifício criminoso. Hoje mudei de ideia. A distância entre as duas atitudes permanece infinita, não resta dúvida; e é a diferença entre o sacrifício arcaico, que se volta contra um terceiro, tomando-o como vítima daqueles que estão lutando, e o sacrifício cristão, que é a renúncia de toda afirmação egoísta, inclusive da vida, se necessário, a fim de não matar”. Não satisfeito com o núcleo da sua reviravolta pessoal, Girard afirma que, enquanto estivermos neste mundo, não teremos como nos desviar do triste fato da “inabilidade do ser humano para evitar a violência de sacrificar os outros”. É justamente por isso que Cristo veio ao mundo — para nos libertar dessa terrível necessidade. Assim, em termos teóricos, Girard resolveu seu problema existencial, ao “usar o termo ‘sacrifício’ para nomear o ato de sacrificar a si mesmo como fez Cristo. Torna-se viável dizer que, a seu próprio modo imperfeito, o primitivo, o arcaico, é profético em relação ao Cristo. Não se pode encontrar diferença maior: de um lado, o sacrifício como assassinato; de outro, o sacrifício como disposição para morrer, a fim de não tomar parte naquela primeira modalidade de sacrifício. Opõem-se radicalmente um ao outro, sendo, contudo, inseparáveis. Inexiste um espaço não sacrificial intermediário, de onde possamos descrever tudo com um olhar neutro. A história moral da humanidade é a passagem do primeiro sentido para o segundo, realizada por Cristo, mas não pela humanidade, que fez de tudo para escapar desse dilema e, sobretudo, para não vê-lo”.
7.
É muito provável que Girard chegou a esta descoberta lendo ninguém menos que William Shakesperare (1564–1616), como fica evidente naquela que é sua summa theologica: Shakespeare — Teatro da Inveja (1990). Neste livro, temos uma explanação global e completa do percurso que vai do desejo triangular à crise sacrificial, passando pela recorrência do desejo metafísico, à criação do “bode expiatório”, até o momento em que vislumbramos Girard ter as primeiras percepções de um apocalipse benéfico, apesar do crescimento implacável da violência sagrada em um mundo no qual a escalada aos extremos tornou-se regra com o extermínio em massa de seres humanos — algo que veremos plenamente articulado em Rematar Clausewitz. Essa nova intuição — que tenta criar um percurso do Logos grego ao Logos judaico-cristão — está descrita no capítulo específico dedicado à peça Hamlet (1599/1602), na qual lemos que, segundo Girard (talvez mimetizando o próprio Shakespeare), “o grande artista é um magneto”, pois “consegue canalizar nossos impulsos miméticos para onde quiser”. O que isso significa na prática — e, em termos precisos, na nossa vida cotidiana? Tudo gira em torno de uma única palavra obsessiva — a consequência derradeira do Reino de Satanás que contaminou nossa inteligência bíblica: vingança. Tal como Shakespeare, Girard percebe que essa atitude negativa em relação ao outro é o que provavelmente a torna “a verdadeira natureza do mundo moderno”. E, aqui, qualquer tipo de arte, seja o cinema, a literatura ou o teatro, torna-se aparentemente inútil. Afinal, o que fazer quando o Logos cristão foi violentamente expulsado, de uma vez por todas, do ambiente dominado pelo Logos grego, que esconde, por meio da catarse esteticista, a vingança recíproca que domina todas as relações humanas? Girard afirma que Shakespeare antecipou esse movimento com uma presciência notável — e Hamlet foi um esboço do que o futuro nos reservaria. Afinal, a trama de vingança no seio de uma família real mimetiza não só a vingança que consome os membros das famílias que tentam viver normalmente suas pequenas vidas, mas mimetiza, sobretudo, as relações internacionais entre as grandes nações e os impérios, entre os poderes e os potentados. O drama do príncipe da Dinamarca é o primeiro indício do nosso drama apocalíptico, resumido em Teatro da Inveja, no qual “o progresso tecnológico tornou as nossas armas de guerra tão destrutivas que seu uso poria abaixo qualquer propósito racional de agressão. Pela primeira vez na história ocidental, o medo primitivo da vingança se torna novamente inteligível. O planeta inteiro tornou-se equivalente a uma tribo primitiva, mas não há, dessa vez, um culto sacrificial que possa afastar e transfigurar a ameaça. Ninguém quer iniciar um ciclo de vingança que possa literalmente aniquilar a humanidade, mas ninguém quer desistir totalmente da vingança. Como Hamlet, estamos em cima do muro, divididos entre a vingança total e nenhuma vingança, incapazes de decidir, incapazes de renunciar a ela. À luz dessa ameaça monstruosa, todas as instituições se dissolvem, ‘os degraus das escolas, os Estados, os membros das corporações’, todas as relações humanas, ‘as coisas cairão logo em conflito’. A justiça perde seu nome e ‘os seres íntimos com máscara se acham mui vistosos’. A empresa está doente”. Portanto, num mundo onde o silêncio tem o impacto de um trovão, A Tempestade (1610–1611) se torna a despedida ideal de William Shakespeare — e a conciliação dos conflitos apresentados em suas criações, em especial Hamlet. É uma peça de mistério religioso, no sentido de que, no final, teremos a revelação de uma descoberta que nos levará a outro mundo, um mundo onde, talvez, não exista mais o “Reino de Satanás”. Ela também apresenta um interessante enigma: A Tempestade, apesar de ser o fim da obra shakesperiana, encontra-se no início do Primeiro Folio de 1623, com base no qual os estudiosos fazem suas análises. Qual seria a razão enigmática disso? O protagonista da peça é Próspero, um homem velho, sábio, conhecedor das artes misteriosas do espírito e exilado numa ilha distante com sua filha Miranda, muito provavelmente o alter-ego mimético de Shakespeare. A comparação é pertinente, porque Próspero se prepara para montar sua própria peça de teatro no centro narrativo do drama, uma peça em que se vingará de seus inimigos, Antônio e Alonso. Invocando a tempestade do título, Próspero provoca o naufrágio desses dois personagens, os responsáveis por sua expulsão do ducado de Milão, fazendo-os cair no território de sua ilha, onde ele governa os elementos mágicos da natureza, simbolizados em duas entidades contrastantes: o bom Ariel e o maléfico Caliban. Junto com Antônio e Alonso salvam-se também Ferdinando, filho de Antônio (que se apaixonará por Miranda), Sebastião, Gonzalo, e dois patifes que tentarão assassinar Próspero, Estefano e Trínculo, provando, como sempre, que a violência sagrada existe até mesmo nos lugares mais distantes. A história pregressa é ainda mais complicada: quando era duque de Milão, Próspero se preocupava mais com o conhecimento apreendido de livros do que com o governo em si. O povo o estimava, mas não era assim que os olhos dos opositores o viam. Entre eles, seu irmão, Antônio, que, unindo-se com Alonso, rei de Nápoles e inimigo de Próspero, expulsou o duque, jogando-o ao mar com Miranda, num barco furado. Gonzalo foi o único a ajudar, abrigando Próspero com cobertas, comida e, em especial, muitos livros. Serão estes objetos, cujos assuntos vão desde magia até poesia, que darão a Próspero a oportunidade de controlar os elementos da ilha onde se exilou. Afinal de contas, ele não é um simples mago. Sim, Próspero é um grande artista, um artista que aprendeu o jogo da espera e que preparará, em tempo devido, a peça por onde acertará as contas com seus inimigos. A peça é, na verdade, uma obra mimética, alocada dentro da verdadeira peça que se chama A Tempestade. Aqui Shakespeare trabalha com a metalinguagem elevada à última potência — e o que testemunhamos é o rascunho de um texto que diz a sua verdade de forma indireta. Próspero sabe disso mais do que ninguém. É ele o articulador de tudo, o diretor, o ator, o dramaturgo, controlando todos com a sabedoria que adquiriu somente com o tempo. Seu plano não será um fim em si mesmo, mas apenas um meio para algo maior. No entanto, os espectadores (e os leitores) ainda desconhecem isso. Shakespeare brinca com nossa expectativa apocalíptica, fazendo-nos imaginar que acontecerá outra tragédia de vingança (semelhante a Hamlet), e que tudo terminará mal. Em boa parte da peça, ele realmente insiste nesse aspecto, criando uma série de situações dramáticas que parecem insolúveis, naquela espiral mimética que faria Girard ficar alucinado de felicidade para provar o seu ponto teórico como, por exemplo, o encontro entre Ferdinando e Miranda sendo impedido por Próspero; a prisão de Antônio e Alonso; e o plano de assassinato de Estéfano e Trínculo, sob a influência de Caliban. Não à toa, Caliban e Ariel são os espíritos da natureza sob o comando de Próspero. Ariel será libertado de seu domínio logo depois do término do plano, por causa da sua bondade intrínseca. Já Caliban é um pequeno demônio, filho da bruxa Sycorax, que controlava as forças da ilha, perdendo-as para Próspero. A maldade de Caliban é ínfima perto da de Ricardo III, Macbeth e do Rei Cláudio de Hamlet — e, se repararmos bem, é uma maldade incompetente. Caliban não consegue nada, exceto incitar dois patifes a cometer um homicídio já previsto pela própria vítima. No seu afã para fazer o mal, Caliban não percebe que sua existência se deve àquele que o dominou. Próspero o deixou vivo porque precisava dele para o futuro, porque sabia, antes de todos, que o demônio era “this thing of darkness I acknowledge mine”. Graças a essa declaração, muitos pesquisadores modernos pensam que Próspero representa Deus em A Tempestade e, nessa lógica, Shakespeare estava se comparando mimeticamente ao Todo-Poderoso. Nada mais errado: tanto Shakespeare como Próspero concordam que são apenas instrumentos de compreensão do nosso mundo e que deveriam transmitir esse entendimento idiossincrático aos outros. Não há nenhum documento provando que Shakespeare disse isso, mas ninguém escreve por acaso 36 peças que são, se vistas em uma sequência ordenada e correta, o aprofundamento de um mesmo questionamento — e que seria nada mais nada menos que a relação conflituosa entre o ser humano e o Infinito, entre o que está na nossa frente, diante dos nossos olhos repletos de escamas, e o que podemos fazer para compreender tal mistério. Por isso, Próspero usa o seu conhecimento como uma maneira de revelação para sua própria alma. Uma vez terminado este tópico na sua evolução espiritual, é hora de educar aqueles que estão à sua volta e que o afetaram profundamente. Eis então que surge a tempestade, a qual dá início à peça de Shakespeare e à do personagem principal. Sabemos que uma tempestade simboliza uma mudança brusca, uma mudança pela qual os outros personagens terão de passar por um percurso de educação espiritual que pode levá-los para a luz ou para as trevas. A sorte deles é que tinham Próspero como guia. Este velho senhor é, talvez, o mais correto personagem shakespeariano, com seu contínuo estudo sobre as coisas dos mundos, ensinando-o a atar as duas pontes de uma vida: a do início e a do fim, a do Alfa e a do Ômega. Assim, sua preocupação maior não é com o plano em si, mas sim como executá-lo. Isto é a dificuldade que todo o artista deve contornar, segundo Girard, e é bom lembrar que Próspero produzirá sua obra-prima com a vida dos outros. A humanidade se tornou seu palco mimético, os seres humanos seus atores e o seu verdadeiro inimigo não será o povo que cospe batatas no Globe Theater, mas sim algo imperceptível e que nem sempre soubemos quem seria. O verdadeiro inimigo de Próspero — e o inimigo que será o aliado de Wiliam Shakespeare — é o tempo. É daí que Northrop Frye nos dá a chave para entender o símbolo da mudança brusca em Sobre Shakespeare: “Conforme o tempo passa, ‘A Tempestade’ vai se tornando a peça mais assombrada que conheço: desconfio que até o nome correspondente ao termo latino ‘tempestas’ que, assim como derivado francês ‘temps’, significa tanto ‘espaço de tempo’ como ‘tempo atmosférico’. Isso ocorre porque Próspero, enquanto mágico [e artista], tem de ser um observador rigoroso do tempo: o conhecimento sobre as estrelas lhe diz qual é a hora de contar a Miranda sobre seu passado [‘The very minute bids thee open thine ear’ — Chegou o momento exato de abrir teu ouvido]. Ele também diz a Miranda que sua estrela da sorte está em trajetória ascendente e, se não agir nesse momento, perderá a chance para sempre.” O tempo correto das ações sempre foi um tema recorrente e secreto em Shakespeare. Lembremos de Hamlet agindo fora de sincronia ao matar a pessoa errada (o assassinato em si é algo que não tem correção nenhuma no tempo, daí a tragédia da vingança) e deixando escapar quem seria o alvo; lembremos de Macbeth aprisionado nas rédeas do tempo por causa da conquista de um poder que nunca seria seu; lembremos de Ofélia se atirando no rio, e, porque antecipou sua morte, não teve um funeral cristão; e lembremos do próprio Shakespeare que sempre nos faz refletir sobre como “a roda do tempo traz suas vinganças”. Em suma: ninguém deve praticar a vingança como maneira de reparar o desconcerto do mundo. Isto é um atributo de Deus e dos infinitos instrumentos dispostos para mover a história dele, esta interessante peça de teatro que é a nossa vida. Próspero sabe que o seu conhecimento é uma maneira de iluminar a consciência dos homens, mesmo os seus maiores inimigos. Reconhece isso em Ariel, um simples espírito que, mesmo sob o seu comando, se compadece dos medos de Antônio e Alonso, presos na masmorra. E então decide que “a ação mais rara está na virtude e não na vingança”. Liberta os inimigos e, enfim, faz os seus “atores” se encontrarem juntos no jardim para a reconciliação definitiva. Mas, antes, ao aceitar a união de Ferdinando e Miranda (que se conheceram em menos de quatro horas, o que indica a astúcia do tempo), Próspero faz o discurso que prepara a sua despedida e dá sentido não só à sua vida como também à existência de quem o ouviu (e o leu): Nossa festa acabou. Nossos atores que eu avisei não serem mais que espíritos, derreteram no ar, no puro ar: e como a trama vã desta visão, as torres e os palácios encantados, templos solenes, como o globo inteiro, sim, tudo o que ele envolver, vão sumir, sem deixar rastros. Nós somos o estofo de que se fazem sonhos, e esta vida é encerrada no sono. Eis a conclusão derradeira: poucas palavras para resumir, de modo tão absoluto, a condição humana. “Nós somos o estofo de que se fazem sonhos, e esta vida é encerrada no sono” (We are such stuff as dreams are made of, and our little life is rounded with a sleep). Um verdadeiro sábio passaria o resto da sua existência meditando sobre esta frase — mas finalmente temos de agir. Como fazer isto? Em sua última peça, Shakespeare nos dá algumas dicas, pois é de uma generosidade inigualável, o anti-mimetismo artístico encarnado. Ele nos avisa de que tudo o que se passa neste mundo e tudo o que nos rodeia é ilusão. Desistimos de lutar com dignidade contra as estruturas que fundamentam o Reino de Satanás. Essa luta, contudo, não é uma luta de transformação do mundo, mas uma luta para compreender os mecanismos dele, e assim conhecê-lo melhor para conhecer a nós mesmos. O conhecimento é tudo o que nos resta — o verdadeiro conhecimento, aquele que nos ensina a fascinação do que é difícil, que nos leva para um outro mundo, um mundo onde o sono da realidade se foi. O desejo mimético apropriativo envenena as pessoas que pararam de lutar e as contamina com esses enganos. Na vida do espírito, é preciso ser muito forte para encarar a luz que existe por trás da verdade. E, infelizmente, não temos outro tempo a não ser o que vivemos neste globo terrestre. Assim, um homem do espírito — como Próspero? como Girard? — deve transmitir o seu conhecimento aos seus semelhantes e aos seus queridos para que estes possam ter alguma iluminação. Uma luz que invade a nossa consciência, mas depois a reconforta. Com o seu plano enfim terminado, Próspero anuncia então o seu adeus. Joga seus livros no oceano e pede ao público que o liberte: Os meus encantos se acabaram. E as minhas forças, que restaram, são fracas, e eu sei verdadeiro que ou cá me fazem prisioneiro, ou podem me mandar para o lar. Não me obriguem a ficar — já que ganhei o meu ducado e quem fez mal foi perdoado. Nesta ilha que é só deserto, lançando-me encontro esperto. Quebrem os meus votos vãos, com a ajuda de suas mãos; minhas velas, sem suas loas, já murcham as propostas boas, que eram de agradar. Não tenho mais arte, espírito ou engenho: meu fim será desesperação senão tiver sua oração, que pela força com que assalta obtém mercê por toda falta. Quem peca e quer perdão na certa, por indulgência me liberta. O resto não é somente silêncio — o resto depende somente de nós. Infelizmente, o desejo mimético, quando fascinado pela violência, prefere a facilidade da perversão e faz do bem o seu contrário. Ele fez um nó em nossas mentes e espíritos. Foi por essa razão que temos a linguagem do Logos — a única forma de nos comunicar com alguma verdade objetiva e fazer disso algo mais duradouro, eterno — e assim criarmos uma arte que transmita conhecimento. Contudo, somos seres corrompidos num mundo corrompido, paradoxalmente criado por um Deus que ainda procura alguma pureza, mesmo que esta tenha sido completamente expulsa. Misteriosamente, como nossa chance é ínfima, se algum dia essa pureza surgir, é porque algo foi perdido. A renúncia ao desejo é saber que, às vezes, nem sempre uma perda é uma derrota e nem sempre uma vitória significa, realmente, ganhar. Pois a perda é o nosso bem mais precioso.
8.
Foi isso que o poeta alemão Friedrich Hölderlin aprendeu quando viu que ficaria para sempre, até o fim dos seus dias, naquele quarto localizado na torre do marceneiro Ernst Zimmer, em meados de 1806. Antes desse triste evento, ele era um dos sujeitos mais brilhantes daquilo que, posteriormente, ficou conhecido na história da filosofia como o “idealismo alemão” — seus companheiros nas universidades de Tübingen e Jena foram ninguém menos que Hegel, Fichte e Schelling. Entre 1782 e 1805, Hölderlin escreveu poemas líricos, épicos e apocalípticos, nos quais apresentava não apenas uma filosofia do conhecimento como também uma filosofia da História que, entre suas frestas, era nítida que “tentava pensar sobre o mundo e tentava pensar o mundo”, nas palavras de Antonio Cícero em seu ensaio “Hölderlin e o destino do homem”. Apesar de não deixar uma obra filosófica por si, a poesia hölderliana inspirou vários escritos de Martin Heidegger e, claro, a reflexão apocalíptica de René Girard, discutida em Rematar Clausewitz. Contudo, os seus versos refletiram, de fato, sobre o significado e o conhecimento dos mistérios deste palco que se tornou o mundo diante dos olhos que desejavam retirar as escamas. Sua verdadeira busca era, numa via poética, pelo encontro da unidade do conhecimento, uma espécie de intuição que seria algo completamente diferente da intuição intelectual que seus colegas idealistas acreditavam existir somente no sujeito, esquecendo-se, é claro, que a realidade também se articula nos objetos concretos externos. Hölderlin sabia que, segundo Cícero, “para o conhecimento humano discursivo […] ser possível, é necessário em primeiro lugar que o sujeito (que julga) e o objeto (que é julgado) tenham sido separados. No próprio objeto, é preciso também que o sujeito do objeto tenha sido separado do objeto do juízo. O juízo, portanto, separa o que estava originalmente unido na intuição intelectual. Que é a intuição intelectual? A intuição sensível ou empírica é a sensação. Intuição intelectual seria um conhecimento intuitivo, um conhecimento imediato, não discursivo, não dianoético, mas noético”. Os termos “separação”, “cisão”, “metade”, e “unidade” vivem em constante tensão, seja na alma do jovem Friedrich, seja na técnica dos seus versos. Na explicação dada por Cícero, “a unidade absoluta entre sujeito e objeto não é a da relação de identidade [entre o eu consciente e o objeto exterior]. […] A palavra ‘eu’ exprime a autoconsciência. Quem diz ‘eu’ fala de si próprio: é um sujeito que toma a si próprio como objeto. Ele se divide, portanto, em sujeito e objeto: opõe-se a si enquanto, de um lado, sujeito, e de outro lado, objeto. No entanto, ele se reconhece como idêntico ao seu oposto. De certo ponto de vista é, portanto, diferente de si; de outro, ele é idêntico a si. Que significa isso? Que é relativamente diferente de si e relativamente idêntico a si. Logo, sua identidade não é a unidade absoluta do ser. O eu não somente pode como necessita separar-se de si: e tal coisa, longe de ferir a sua essência, é o que a realiza”. Enfim, o projeto epistemológico de Hölderlin estará fadado ao fracasso porque, ao superar a divisão, também reconhece que é impossível alcançar uma unidade. Mas ele persiste. Cria então uma filosofia da História que combina as divisões binárias do conhecimento humano com uma terceira possibilidade, próxima da utopia idealista que seus contemporâneos tanto sonhavam e que, naquela época, era simbolizada pela Revolução Francesa e, anos depois, pelo surgimento de Napoleão Bonaparte. Segundo Antônio Cícero, teríamos três épocas históricas que estariam relacionadas com uma recuperação do que seria a intuição total da unidade do ser. A primeira época “é a do pensamento intuitivo, em que o homem se integra com o ser e natureza; a segunda, a da modernidade, em que o pensamento judicativo, que cinde o ser ou a natureza, acaba por predominar sobre o pensamento intuitivo e desprezá-lo a tal ponto que praticamente o sufoca, de modo que este apenas subsiste entre poucos, particularmente entre poetas e artistas que se encontrem engajados na produção de suas obras; a terceira, futura, em que o ser humano realiza uma integração superior com a natureza, sem abdicar da razão e da liberdade, conquistadas através da cisão produzida pelo pensamento judicativo. Se a primeira época é anterior à cisão judicativa, a segunda surge em consequência dessa cisão. A cisão, como se disse, ocorre necessariamente — e apenas — no pensamento judicativo. Contudo, como, tendo em mente as importantes consequências que atribui ao predomínio contemporâneo desse modo de pensamento, Hölderlin, por comodidade expositiva, isto é, por uma questão de abreviação, ênfase e generalização, exprime-se frequentemente como se a época moderna mesma fosse cindida e como se nela a humanidade se houvesse separado ou se perdido do ser ou da natureza […]”. Ou seja, nem a própria linguagem estabelecida pelo poeta para explicar a sua visão de mundo consegue dar conta de pensar o mundo ou pensar sobre o mundo. Este impasse chegará a níveis civilizacionais — e, por que não?, apocalípticos — nos versos proféticos de Hölderlin, em especial aqueles escritos entre 1790 e 1805, quando sofria o colapso das suas relações eróticas não só com os amigos de pensamento, mas também com sua amante Susanne Gontard, que, mesmo sendo casada, o procurava constantemente. A morte dela, causada por pneumonia, só acelerou a tal da esquizofrenia diagnosticada por médicos sabichões da época, entre eles um tal de Johann von Autenrieth, que resolveu testar a sua nova invenção — uma máscara de ferro que aprisionava o rosto do doente para que ele não pudesse mais gritar — justamente no pobre Friedrich, quando este foi internado a mando da própria família porque descobriram-no vagando pelas estradas que ligavam as fronteiras da França com a Alemanha, a contemplar ruínas gregas que ainda sobravam naquele território. Em Rematar Clausewitz, René Girard explica, de forma cristalina, que o período posterior a este evento traumático — por certo, um pequeno apocalipse na biografia particular deste poeta — não pode ser tratado como se fosse um “momento de delírio”, como se julgava naqueles anos, mas sim como um momento de extrema lucidez. A “tristeza de Hölderlin” foi, na verdade, o epicentro espiritual do que aconteceu naquele ano de 1806, momento em que Hegel afirma que vira Napoleão passar a cavalo pelas ruas de Jena, constatando então que o imperador francês era a encarnação suprema do “espírito do mundo”; e também quando, ao mesmo tempo, o general prussiano Carl Von Clausewitz principiava suas primeiras elaborações de um mundo dominado pelo “deus da guerra”. Ao ser acolhido pelo marceneiro Zimmer — já que sua própria família o abandonou ao acaso –, Hölderlin decide (ou é forçado a decidir) retirar-se do mundo, vivendo em uma torre que havia na casa daquele antigo leitor do seu grande poema da juventude, Hyperion (1797–99). E ali permaneceu por quarenta anos, até a sua morte, ocorrida em 1843, aos 69 anos de idade, em Tübingen (por uma dessas ironias macabras do destino, os médicos deram-lhe apenas mais três anos de vida após a sua internação na clínica de Autenrieth). Girard coloca esses três fatos em perspectiva de tempo apocalíptico, descrevendo as visitas que Hölderlin recebia em seus aposentos, como se ele fosse uma curiosidade arqueológica de uma era que, talvez, jamais existiu, e “seu anfitrião dizia que ele passava dias inteiros recitando suas obras, ou até prostrado em total silêncio. Hölderlin deixara de crer no Absoluto, o que não tinha acontecido com seus amigos de outrora: Fichte, Hegel e Schiller. Mas nunca deu sinais de uma demência excessiva. Temos de estar à altura de seu silêncio”. De fato: este silêncio, esta tristeza semelhante a uma alegria secreta, é a restauração de uma transcendência que consegue ficar imune ao desejo intensificado pela vingança global e pelo deus da guerra, e que nos consome se permanecer num “ponto indivisível”, a ser visto somente por quem procura a unidade do ser na encarnação do Cristo. Na obra final de Girard, a renúncia (voluntária ou forçada?) de Hölderlin foi um ato “sublime” porque, em sua torre, ele resistiu “à atração irresistível que os outros exercem sobre nós e que sempre conduz à reciprocidade violenta” — e a maior prova de sua “falsa loucura” (ou uma loucura com “método”, para nos remeter ao Hamlet de Shakespeare) era “o modo cerimonioso como recebia todos os visitantes em sua torre em Tübingen” que “consistia precisamente em colocá-los à distância. Imitar o Cristo mantendo o outro à justa distância é sair da espiral mimética: não imitar mais, para não ser mais imitado”. É neste ponto que o grande teórico do desejo mimético dá um salto triplo (ou seria apocalíptico?) no seu percurso de conversão e, no final da vida, nos ajuda a contemplar a face áspera da realidade, a única face que vale a pena olhar sem temor e sem tremor, ao garantir que, dessa maneira, “Hölderlin pressente que a Encarnação é o único meio de que dispõe a humanidade para enfrentar o saudabilíssimo silêncio de Deus: Cristo interrogou esse silêncio na Cruz, depois ele mesmo imitou a retirada de seu Pai juntando-se a ele na manhã de sua Ressurreição. Cristo salva os homens ‘quebrando o seu cetro solar’. Ele se retira no exato momento em que poderia dominar. Assim, ele faz com que experimentemos o risco da ausência de Deus, a experiência moderna por excelência — porque esse é o momento da tentação sacrificial, da possibilidade de regressão para os extremos –, mas também uma experiência redentora. Imitar o Cristo é recusar importar-se como modelo, é sempre apagar-se diante dos outros. Imitar Cristo é fazer de tudo para não ser imitado.” E arremata, com aquela inteligência bíblica que tenta nos se desvencilhar das seduções do “reino de Satanás”: “É, portanto, o silêncio de Deus que se faz ouvir no silêncio do poeta. A morte dos deuses, que tanto assustará Nietzsche, confunde-se com uma retirada essencial, na qual Cristo nos convida a ver o rosto da divindade. A teoria mimética nos permitiu deduzir que a Encarnação veio realizar todas as religiões, cujas muletas sacrificiais tinham-se tornado ineficazes: também ela perscruta a retirada dos deuses, mas a esclarece de maneira antropológica. É [como diria Hölderlin em seu poema “Patmos”, no qual mimetiza a linguagem do Apocalipse de São João] por ser ‘difícil de prender’ que o deus ‘salva’ ‘onde há perigo’, isto é, na época do sagrado pervertido. O que o Cristo na Cruz experimenta, se não esse silêncio? O que experimentam por sua vez seus discípulos no caminho de Emaús, senão a retirada do Filho que partiu para junto de seu Pai? Quanto mais cresce o silêncio de Deus — e com ele o risco de um agravamento da violência, de um preenchimento desse vazio por meios puramente humanos, mas agora privados do mecanismo sacrificial — , mais a santidade se impõe como o reencontro da distância do divino”.
9.
Vistos dentro da moldura de uma teoria mimética que abandona de vez a racionalidade das grandes soluções para incorporar, em seu núcleo, uma inteligência apocalíptica que aceita o Bem Supremo como norte, os casos concretos do Próspero shakespeariano e de Friedrich Hölderlin se tornam orientações para uma ação efetiva no tecido social. Entretanto, no mundo contemporâneo, onde a cisão do Logos judaico-cristão e do Logos grego já é um fato incorporado para sempre em nossa cultura, esses atos somente se revelam como recusas, como retiradas — enfim, como renúncias. E, recentemente, nenhuma renúncia marcou tanto a sociedade atual como a que foi feita pelo papa Bento XVI no dia 10 de fevereiro de 2013. Independentemente dos motivos obscuros que cercaram essa atitude, o que ainda não ficou claro para todos nós é o impacto duradouro dessa invasão do eterno que alterou, de modo subterrâneo, o nosso cotidiano — e que só será compreendida futuramente se a entendermos dentro da mesma perspectiva apocalíptica aplicada por René Girard para entender corretamente o que foi a “tristeza de Hölderlin”. Os dois fatos são similares e simétricos — e ambos foram considerados como uma espécie de “loucura” pela maioria dos contemporâneos. Afinal, como alguém pode abandonar um cargo para o qual foi eleito até o final da vida — ou, melhor, até o final dos tempos, se o sujeito durar até lá? Pois foi o que fez Bento XVI, alegando, em seu discurso de renúncia (reflexo exato de outro papa desistente, Celestino V, colocado no inferno por Dante Alighieri e considerado pelo florentino como um “derrotado” por causa deste ato), que após ter examinado repetidamente “minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que minhas forças, pela idade avançada, não se adaptam mais ao exercício, de modo adequado, do ministério de Pedro. Estou bem consciente de que esse ministério, por sua essência espiritual, deve ser exercido não somente através das obras e das palavras, mas também sofrendo e orando. Contudo, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de são Pedro e anunciar o Evangelho, também é necessário um vigor seja do corpo, seja da alma, vigor que, nos últimos meses, em mim diminui de modo tal que devo reconhecer minha incapacidade em administrar bem o ministério a mim confiado”. E, de novo, temos aqui, em palavras límpidas, a noção de que a perda é o nosso bem mais precioso. Bento XVI, com sua retirada, recupera também o verdadeiro sentido do que significa viver no meio do mysterium iniquitatis, o mistério do Mal que atinge — ou melhor, formata — a nossa imaginação apocalíptica. Graças a ela, somos jogados sem aviso dentro do “tempo que resta”, na maravilhosa frase de Giorgio Agamben, e que seria permeado pelo katechon. Esta expressão, retirada da Segunda Epístola aos Tessalonicenses atribuída ao apóstolo Paulo, significa indistintamente “algo-alguém-alguma coisa” que detém um poder e que “contém-retém-freia-atrasa” o definitivo triunfo do Espírito da impiedade (apelidado entre nós de “O Anticristo”), travando assim “o seu aniquilamento pela força da boca do sopro do Senhor”. Aparentemente, presume-se que os poderes que exerceriam esta função seriam o do Estado (em especial, na variação imperial ou “globalista”) e o da Igreja, mas é neste ponto que podemos presumir que o Estado e a Igreja fazem igualmente parte do katechon; na verdade, há um campo de forças e tensões sobrepostas, que se acumulam e se dissolvem, às vezes de forma consciente, outras vezes de maneira imperceptível à consciência humana. Esta “rede”, fortemente conectada em seus nós górdios, dá a certeza de que o resto do tempo só será plenamente resolvido em um grande evento apocalíptico de proporções inimagináveis. Entretanto, por causa justamente do poder do katechon, que freia tal desenlace definitivo, percebemos que as crises mundiais (políticas, sociais, espirituais) se tornam progressivamente permanentes, sem nenhuma solução evidente. Segundo Massimo Cacciari, em seu essencial O Poder Que Freia (2017), o que era antes a síndrome de Prometeu, o herói revoltado contra os deuses (ou “o Deus”) que não o compreendem na sua agonia pelo conhecimento definitivo que explicaria tudo (o “gnosticismo” atormentado da modernidade), agora é a Era do irmão deste titã, Epimeteu, que abriu a caixa da sua esposa Pandora e esqueceu lá dentro a virtude da esperança, para algum dia (quem sabe?) encontrarmos alguma coisa, seja lá o que for. Pois bem: a renúncia de Bento XVI recupera essa esperança que parecia tão perdida num mundo consumido pelo desejo e que só nos leva à escalada de extremos da violência sagrada. E faz isso por meio do recuo que também restaura a verdadeira noção de que vivemos, independentemente dos nossos cataclismas, em um mistério. Aqui, temos dois significados para esta palavra. O primeiro é o que Maurício G. Righi usa em Eu Sou o Primeiro e o Último, a partir dos estudos históricos de Margaret Barker, no qual registram-se indícios de que o cristianismo primitivo teria sido remanescente de uma tradição perdida e cifrada, chamada de “misticismo do templo”, referente à experiência mística originada na construção do primeiro templo de Jerusalém, em cerca de 950 a.C, cujos principais elementos de contemplação são o “santo dos santos”, “a criação do primeiro dia”, “o servo sofredor” e, por fim, o sacrifício do “dia da expiação” que, de uma forma ou outra, preparava aquilo que esses fiéis acreditaram ser um prenúncio visto por São João no seu Livro do Apocalipse. O segundo significado é o que é aplicado por Giorgio Agamben em Bento XVI e O Mistério do Mal (2014), no qual “o mistério não é um segredo” (como defende Barker) e sim, muito pelo contrário, “algo que se diz e se manifesta” por meio de um “drama místico”, cuja “sabedoria de Deus se expressa” dessa maneira porque ela retrata nada mais nada menos que “o drama histórico da paixão, isto é, um evento realmente acontecido, que os não iniciados não entendem e os fiéis compreendem para sua salvação”. Trata-se de um “drama sacro em que estão em jogo a salvação e a danação dos homens, um drama que se pode ver e entender (como acontece para os iniciados) ou ver e não entender (caso dos danados)”, um mistério que fundamenta o curso da nossa História, um “teatro em que também os apóstolos desenvolvem um papel (1 Cor. 4,9: ‘Nós nos tornamos um teatro para o século, os anjos e os homens)”. Assim, a renúncia de Bento XVI sintetiza, do mesmo modo “sublime” o que René Girard descreveu como a “tristeza de Hölderlin”, os dois tipos de mistérios registrados respectivamente por Margaret Barker e Giorgio Agamben, além de acrescentar um toque teatral agradável ao Próspero de A Tempestade, imitando sobretudo o exemplo do Cristo que se esvazia de um mundo que certamente jamais compreenderá tal ato de “loucura” e tamanha “invasão” do eterno no nosso cotidiano. Talvez o pontífice já profetizara essa atitude na encíclica Spe Salve (2007), cuja meditação sobre a esperança reserva um singelo momento sobre o verdadeiro significado do Juízo Final, no qual notamos o término da mudança definitiva de eixo do apocalipse do summum malum para o do summum bonum, mesmo quando tudo parece indicar o contrário: “Deus revela a sua face precisamente na figura do servo sofredor que partilha a condição do homem abandonado por Deus, tomando-a sobre si. Esse sofredor inocente tornou-se esperança-certeza: Deus existe, e Deus sabe criar a justiça de um modo que nós não sabemos conceber mas que, pela fé, podemos intuir. Sim, existe a ressurreição da carne. Existe uma justiça. Existe a ‘revogação’ do sofrimento passado, a reparação que restabelece o direito. Por isso a fé no Juízo Final é primariamente e sobretudo esperança — aquela esperança, cuja necessidade se tornou evidente justamente nas convulsões dos últimos séculos. Estou convencido de que a questão da justiça constitui o argumento essencial — em todo o argumento mais forte — a favor da fé da vida eterna. A necessidade meramente individual de uma satisfação — que nos é negada nesta vida — da imortalidade do amor que anelamos é certamente um motivo importante para crer que o homem seja feito para a eternidade; mas só em conexão com a impossibilidade de a injustiça da história ser a última palavra é que se torna plenamente convincente a necessidade do retorno de Cristo e da nova vida”. (grifos meus)
10.
Na invasão do eterno que o bom apocalipse ainda precisa nos preparar, temos a sensação muito aguda de que: ou vivemos no núcleo de um vulcão prestes a entrar em erupção ou estamos então no meio de uma enchente que devastou uma cidade inteira. Terá sido assim que Friedrich Hölderlin se sentiu quando o doutor Autenrieth forçou uma máscara de ferro a ser encaixada em seu rosto, num distante dia 11 de setembro de 1805 (numa dessas coincidências que só a imaginação apocalíptica nos dá de presente)? Ou terá sido assim que Bento XVI decidiu ao sair do cargo mais poderoso de uma igreja que não atendia mais à sua vocação escatológica? Ou, se quisermos ir além, por que Shakespeare criou Próspero, o personagem que seria um resumo de sua própria vida como homem e como artista? Cada decisão individual, cada obra-de-arte são pequenos apocalipses na vida de uma sociedade — e o artista e o profeta não passam de tentadores repentinos que fazem o suficiente para sobreviverem à fúria renovada e primitiva do sol a incidir sua luz nas paisagens desoladas onde vemos rastejar os bravos e os fortes. Neste aspecto, os profetas são os únicos que se erguem íntegros diante destas feridas expostas. E só podemos considerar como um dado de alguma Providência o fato de que os três maiores representantes do profetismo hebreu — Isaías, Jeremias e Ezequiel — simbolizam indubitavelmente uma notável progressão das intenções divinas em relação ao destino humano — intenções que influenciam o nosso presente. O livro de Isaías se divide em quatro partes, mas a que nos interessa no momento é a do Deutero-Isaías, que fala sobre o Servo Sofredor. Quem seria ele? Israel mostra-se como a amada que abandona seu amante (ninguém menos que Deus), e este, irado, não hesita em destruí-la como a todos os seus poderes. O Servo é prenunciado como um rei que colocará a ordem divina dentro do mundo corrompido, a ordem da alma do indivíduo em harmonia com a ordem de Deus, transformando aqueles que governará em homens com a mesma integridade espiritual. Ao mesmo tempo, intensificará o sofrimento daqueles que seguem com firmeza a mesma lei. Contudo, a restauração da ordem não será fácil. Ela terá de enfrentar, simultaneamente, destruição e carinho, ira e amor. O que está claro nos escritos de Isaías é que existe um combate entre os reis da terra — caracterizados como anunciadores de um Leviatã e também do único rei possível, que é Deus, em um prenúncio do katechon. A função de Isaías é avisar que Yahveh voltará a impor a sua ordem, custe o que custar. Mas, para isso, o Servo Sofredor, que também é o representante da fúria e do amor de Deus, vem com o silêncio da justiça e a dor da ingratidão. O Servo Sofredor pode ser um prenúncio de Cristo — as semelhanças são assustadoras — , mas fica claro que o próprio Isaías também se vê na mesma posição. Deus o colocou como o Servo que suportará os pecados de Israel ao trocar Yahveh pelos deuses pagãos e do império. No ritmo histórico que se refletirá na consciência do ser humano atormentado pela ansiedade provocada pela violência sagrada, temos um nítido exemplo do intenso conflito entre a “inteligência bíblica” e o fascínio provocado pelo “reino de Satanás”, que abriria a alma do homem para um Deus que, aos poucos, lhe daria o dom da individualidade. O símbolo do Servo ainda é muito impreciso para saber quem ele está realmente representando: se Isaías ou alguém que aparecerá no futuro. Mas já podemos vislumbrar uma das características que marcam a vida de alguém que escolhe o bom apocalipse — o fato de que essa pessoa tem de consumir dentro de sua alma todas as dores, os sofrimentos e os pecados dos outros seres humanos. O mundo converge com suas trevas para a consciência deles, como se fossem um espelho convexo ou até mesmo uma bússola — para ser exato, o omphalos do cosmo, o verdadeiro centro do mundo. Este escolhido será um constante protegido de Deus, mas sua existência terá como marca de fogo cravada na alma, a ingratidão, a solidão e a terrível certeza de que não há mais futuro para a próxima geração, se ninguém escutar os seus avisos. É o que fica cristalino ao lermos o Livro de Jeremias, em que Deus diz ao profeta que ele deve recusar qualquer espécie de convívio em comum com os integrantes do povo de Israel. Eis a crueldade que espera o homem que recusa o desejo mimético e, consequentemente, a política na qual quer atuar: solidão atrás de solidão, sem nenhuma trégua possível, em que ele fica impossibilitado de ter uma família porque seu fardo é muito pesado. Jeremias é o autêntico omphalos — o exílio o consome dentro do coração e dentro da sua alma, e não à toa que o próprio Deus fará questão que ele sinta o que é o sofrimento divino na sua própria carne, como provam as suas lamentações. Se Isaías fica paralisado na ansiedade de um Servo Sofredor que também será o Rei dos Reis, Jeremias admite que a realidade do mundo de Israel é somente de aflição porque o seu povo abandonou a Deus. Contudo, Jeremias também sabe que Deus somente os abandona por causa do Seu sofrimento ao ver a displicência dos israelitas, ao idolatrarem não só os deuses do império, mas também ao recusarem a lei invisível do espírito, preferindo-a à lei escrita e petrificada da Torá. Jeremias carrega a aflição divina na sua alma com uma sobriedade impressionante; e faz isso porque sabe que, no fim, Deus nunca deixará de ser fiel ao seu povo — mas será ele que terá de pagar o preço por esta fidelidade, tanto no seu corpo, quanto na solidão que corrói a sua vida. Esse preço se torna a responsabilidade caracterizadora do Livro de Ezequiel, o qual, entre os profetas, é o que concretizará o exílio como ato de purgação fora de Israel. Aqui, é Deus quem dá a ordem do banimento completo a essa sentinela do espírito. Notem que as atitudes de Isaías, Jeremias e Ezequiel frente aos desígnios divinos mostram uma ascensão na consciência humana, ao aceitar o reino do exílio como natural à sua condição. Na verdade, eles revivem nos seus espíritos a própria condição de Israel que, para escapar do Sheol do Egito, teve de passar por quarenta anos de peregrinação no deserto e agora, ao se verem novamente em um Sheol dentro de sua terra, têm de fugir usando os meios do espírito sem, contudo, negar a realidade em que vivem. Quem realizará a retirada por meio dos símbolos de uma experiência concreta, que se traduz na abertura da alma individual à ordem de um Deus que se preocupa com o ser humano, serão justamente esses três profetas. Mas essa abertura não será gratuita, com o único intuito de salvar uma humanidade que pode abandonar de novo o seu Deus; sua principal função é dar responsabilidade ao ser humano de seus próprios atos, principalmente às virtudes e aos vícios da alma, que são os mais importantes e perigosos, e é neste ponto que o símbolo da sentinela representado por Ezequiel surge como a cristalização da unidade do Ser inserindo-se na unidade do sujeito frente ao mysterium iniquitatis — ponto essencial para uma ação política completa e, sobretudo, íntegra. Mas como ele pode avisar seus compatriotas se não pertence mais à mesma terra — se é um exilado? O fato é que é no próprio exílio, exposto à invasão do eterno, que o profeta se sente mais próximo dos seus compatriotas. Agora, ele não é mais o homem que carrega a aflição divina; é também o homem que carrega a responsabilidade por cada alma que não percebeu o Mal que os invadia em suas máscaras. Ezequiel é a prova de que o profeta deve ter sua ação dirigida para impedir que o Mal se alastre em proporções monstruosas. E é justamente a ansiedade da existência — que fica quase asfixiada entre a violência sagrada e a renúncia sublime — que explode na consciência sensível de um homem como São João, o discípulo amado de Jesus Cristo. Ele a pressente com seus próprios olhos — mas também não determina quando acontecerá de fato o desenlace disso tudo. Estamos falando, é claro, do seu famoso Apocalipse, o Livro das Revelações, que fecha a Bíblia (e este ensaio), objeto das mais inusitadas especulações. Contudo, existem mais três documentos importantes, que são suas epístolas. Na primeira, a mais longa, João ensina a perenidade do mundo: “O mundo e suas cobiças passam, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre” (João 1:17). Esta vontade seria a de andar na luz, já que não há trevas em Deus, porque Ele é amor. Mas João não define o que seria esse amor — prefere chamar seus discípulos de “filhinhos” e repetir incessantemente que o mundo é um lugar muito perigoso. Sua fé não tem a virilidade de um Paulo, até porque ela deveria permanecer um tanto infantil, uma vez que é bem provável que ele estava realmente educando crianças ou pessoas muito jovens na doutrina cristã. Mas citamos as epístolas porque o que vem a seguir mostra uma outra face do que seria o amor cristão, uma face muito perturbadora, uma face áspera. A questão que surge quando lemos o Apocalipse é: Como o mesmo homem que escreveu que Deus é amor pode escrever também um livro em que a ira divina se mostra de maneira implacável? Obviamente, não se trata de um livro escrito exclusivamente por João; o Apocalipse é uma revelação — para ser mais exato, a descrição simbólica da Revelação Final. Suas imagens transfiguram a realidade e colocam a possibilidade da resolução da violência sagrada como algo nulo, em que, da mesma forma que os demais profetas hebreus, todos ficam apáticos, esperando pelo ressurgimento do Messias para restaurar a ordem. Como já sabemos, o Apocalipse foi escrito no final da vida de João, quando ele estava exilado na ilha de Patmos, na Grécia — e se o exílio foi um fator importante para o registro deste fato, certamente foi porque João já havia aceitado as trevas deste mundo como algo intrínseco à sua própria condição, não só como homem, mas também como testemunha da vinda e do retorno de Cristo. Quem deseja escapar da violência sagrada deve sempre ver o mundo com desconfiança, mas nunca negá-lo; a diferença entre João e os outros profetas escatológicos é que, no caso desses últimos, eles criam uma outra realidade, que pode ser substituída por uma nova e assim todos os nossos problemas seriam resolvidos; já no caso de João, seus símbolos ainda possuem um íntimo contato com a realidade do ser humano, sempre em busca de uma ligação íntima com Deus. O fim pode estar próximo e ser cruel, mas nunca deixará de ser justo — e bondoso. A vingança divina — um dos dons exclusivos de Deus, já dizia o Deuteronômio — altera qualquer projeto de ação humana que queira refletir-se nas leis eternas. Altera não porque Deus não goste de que o homem aja no mundo que Ele criou; altera porque o fim, apesar da sua invasão impressionante, ainda não está definido. A fúria do cordeiro, que volta para retribuir aos injustos a crucificação de seu corpo, paralisa o mecanismo do “reino de Satanás” graças a uma completa revolução espiritual, em que surgirão os novos homens. Entretanto, estamos na expectativa desta revolução para descobrirmos, finalmente, o que fazer e nos prepararmos para tal consumação, ainda que, a cada ano que passa, os homens que a praticam sintam que estão cada vez mais estrangeiros no mundo onde vivem e onde são obrigados a escapar constantemente de suas armadilhas. Finalmente, são por esses e outros motivos que Eu sou o Primeiro e o Último, de Maurício G. Righi, marca um ponto importante no percurso para entender a expectativa apocalíptica que ainda contamina, para o bem ou para o mal, cada ação no nosso cotidiano repleto de extremos. Sem dúvida, o historiador brasileiro se torna também um “tentador repentino”, mas, desta feita, para contemplar o brilho hermético das grandes estrelas que permanecem no firmamento, independentes da natureza humana comum a todos — e que subitamente ameaça arrefecer. Na invasão do eterno contemplamos e — por que não? — ansiamos pela frieza luminosa da pele dos que ainda têm a pretensão de manter a violência sagrada neste mundo. O belo trabalho de Righi é um espelho que nos obriga a ver, sem nenhum disfarce, o deus caído, perfeito e náufrago no núcleo do fogo.
[Posfácio escrito especialmente para o livro Eu Sou o Primeiro e o Último, de Maurício G. Righi, publicado pela É Realizações.]
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