A Lágrima Feroz
A obra de Mel Gibson é uma perseguição obsessiva sobre as origens da violência humana - nos outros e em si mesmo.
Você está lendo minha newsletter, Presto, uma série de reflexões sobre a cultura e a política nacional e internacional, sempre a partir de um ponto de vista independente e sem amarras. A periodicidade será de três textos mensais: dois não necessariamente inéditos e um completamente inédito e exclusivo para quem fizer uma colaboração paga. Para assinar a newsletter e ajudar na sua manutenção, é só inscrever o e-mail aqui:
But Love is not a victory march,/ It´s a cold and it´s a broken/ Hallelujah
Leonard Cohen - Hallelujah
1.
Os críticos de cinema nunca levaram a sério o trabalho de Mel Gibson como diretor. É certo que, nos últimos tempos, o máximo de concessão que fazem é admitirem que o ex-“Mad Max” tem algum talento atrás das câmeras. Contudo, praticam isso com um esgar no rosto, classificando-o logo depois com outros clichês mais cômodos: “fundamentalista católico”, “politicamente incorreto” ou “obcecado por sangue”.
Gibson, entretanto, é muito mais do que um mero artesão de imagens. Podemos ir além: dentro da famosa categoria do crítico francês André Bazin, não seria um exagero afirmar que ele atende aos requisitos para ser chamado de um “cineasta autoral”.
Segundo Bazin, um “auteur” de filmes seria um diretor que mostra explicitamente, no decorrer da sua obra, uma preocupação central a ser percebida em infinitas variações, usando a estrutura do sistema de Hollywood (sempre afoito para encontrar o próximo sucesso de bilheteria) e, mesmo assim, indo na contramão do gosto do público, sem se importar com as suas exigências. Os maiores exemplos desta estratégia foram Alfred Hitchcock e Howard Hawks.
Ora, Gibson cumpre todos os pontos desta classificação. Quem acompanha a sua filmografia, do início ao fim, perceberá que ele persegue um único tema, desenvolvido com o rigor de um axioma matemático. Trata-se nada mais, nada menos de encontrar a origem da violência humana – e saber quais são as consequências de praticá-la.
Temos um germe desta obsessão em O Homem Sem Face (The Man Without A Face, 1993), seu primeiro longa como diretor. Feito com extrema delicadeza, o filme conta a história da amizade entre o garoto Chuck (Nick Stahl) e o recluso Justin McLeod (o próprio Gibson).
Deformado por causa de um terrível acidente de carro, McLeod é a “pedra de escândalo” na pequena cidade onde vive, um exilado interior que tem uma acusação séria no seu passado. Gibson mostra em detalhes como não há perdão em qualquer tipo de coletividade, apenas entre os indivíduos. Por causa da amizade com Chuck, McLeod é novamente banido do lugar onde estava, sendo obrigado a fugir para não ser a vítima de um linchamento ainda mais cruel daquele que já sofria indiretamente.
O que interessa aqui é o modo como Gibson retrata o que é ser alguém diferente em uma comunidade aparentemente pacífica. O “escândalo” de McLeod não é a sua suposta pedofilia, mas sim a pureza do coração que ninguém percebe – uma pureza que, para permanecer na alma do jovem Chuck, precisa existir fora da sociedade para não ser aniquilada por completo.
Esta busca pela “pureza do coração” também fica evidente no segundo filme de Gibson como diretor, o arrasa-quarteirão Coração Valente (Braveheart, 1995). E é aqui que Gibson prova que é um astuto homem de negócios. Trata-se do seu longa mais fraco em termos de qualidade, mas, ao mesmo tempo, foi o que lhe deu liberdade irrestrita no sistema de Hollywood.
O truque foi simples. Ele apenas usou a tática daquilo que Martin Scorsese chamou de “contrabando” – ou seja, o uso (e a posterior subversão) dos gêneros cinematográficos tradicionais (como o épico, o bíblico e o filme de guerra) para afirmar cada vez mais a sua preocupação sobre um ser humano essencialmente violento.
Em Coração Valente, Gibson reflete sobre algo que nossos cientistas políticos evitam dizer: o fato de que não há a libertação de um país sem o uso da força. Por sua vez, justamente por causa dessa violência, tal libertação nunca é completa – como foi o que aconteceu com a Escócia de William Wallace (também interpretado por Gibson), que, por exemplo, ainda hoje depende das decisões da Grã-Bretanha sobre se deve ou não permanecer na União Europeia. Independente de ser fiel aos fatos ou se deve ser vista apenas como uma obra de ficção, a história de Wallace foi útil a Gibson para marcar o seu território em Hollywood, tornando-o vencedor de 5 Oscars, inclusive filme e direção, deixando o sistema praticamente aos seus pés.
Foi assim que Mel Gibson conseguiu realizar o projeto mais arriscado da sua carreira como cineasta. A Paixão do Cristo (The Passion of the Christ, 2004; sim, o uso do artigo definido é obrigatório porque é esta a tradução exata do título original - e assim será no decorrer deste texto) provocou, sem dúvida, muita polêmica na época do seu lançamento, mas agora podemos perceber que neste filme ele faz algo que não conseguiu realizar nos anteriores. Desta vez, Gibson quer ir à raiz da origem da violência.
Ao mostrar em detalhes sanguinolentos a crucificação de Jesus de Nazaré (feito por Jim Caviezel), ele parte de uma premissa perturbadora, mas também eficaz. Se descartarmos o fato de que talvez a vítima seja o próprio Deus, por que então fizeram aquela chacina no corpo daquele pobre diabo? O que havia nele de tão importante para tamanha carnificina? Num processo ousado de imersão histórica, ao obrigar seus atores a declamarem as falas em aramaico, Gibson puxa o espectador para uma meditação pessoal, terminando com o seguinte enigma: O que um ser humano faz para justificar o assassinato do seu semelhante?
2.
A resposta para esta questão é extremamente perturbadora: a de que a dor mais insuportável é a do amor não-correspondido. Existem, obviamente, outras dores, como a da doença incurável, a da morte surpreendente, a da perda de um ente querido, a da despedida sem razão – mas elas passam conforme o ritmo do tempo e as lembranças que se transformam em lições para as cicatrizes do futuro. Já a dor do amor não-correspondido tem seu impasse peculiar. O tempo não cura suas chagas; a memória não a afaga com a maturidade; ela ecoa pelas épocas e através dos séculos porque, simplesmente, nunca foi consumada em sua forma completa. É uma espécie de maldição que espera um milagre para a realização definitiva e, enquanto isso, somente será lembrado como um lamento ou, no seu extremo, uma paixão, como é ressaltado por toda a filmografia de Mel Gibson.
Não à toa que este foi o caso de Jesus de Nazaré, profeta judeu, filho de carpinteiro, amigo de doze pescadores rudes, condenado e crucificado como criminoso, numa morte violenta e estúpida que, sabe-se lá por que, não se rebelou de forma alguma. Dois mil e vinte e um anos depois desses fatos, o nome de Jesus ainda é invocado por várias pessoas, em um daqueles mistérios que ninguém tem a coragem de compreender. Ele abençoa, irrita, incomoda, fascina, transforma a vida delas de uma maneira que nenhum outro homem fez. Quando alguém arrisca articula uma definição precisa sobre quem foi este sujeito, a única coisa que alcança é uma pálida silhueta, uma visão que, se não tivermos cuidado, pode envolvê-lo nas sombras se fitarmos demasiadamente a luz que O envolve.
Estas reflexões sempre me vêm à mente neste momento de Natal e sempre me fazem voltar também à Paixão. O nascimento e a morte de Cristo sempre foram vistos como coisas separadas e isto me parece ser um equívoco. Afinal, como diria São João de Ávila, “a madeira da cruz já está na madeira da manjedoura”.
Esta separação também explica um pouco a vala aberta entre o público e a intelligentsia em relação a The Passion Of The Christ. A reação que esta película ainda provoca nas pessoas de sensibilidade progressista prova que o mundo dos negócios pecuniários e dos negócios do espírito está fechado para balanço. Em uma blitzkrieg que, aparentemente, tem âmbito apenas cultural, Gibson ganhou de nocaute. Em primeiro lugar, ao se declarar como um católico tradicionalista, despertou a curiosidade do público. Se para muitos o fato de existirem católicos é um absurdo, imagine alguém ser um católico tradicionalista. Como, no mundo moderno, tudo relacionado com qualquer espécie de tradição é uma ofensa, um verdadeiro escândalo, quiçá sinônimo de retrógado, a nossa querida mídia gnóstica se apressou em classificar o projeto de Gibson, então em fase inicial de roteirização, como “antissemita”. Foi mais uma prova de que ela é também burra: criando uma polêmica artificial para afastar o público do fato de que se tratava de um filme de inegável ambição artística, os jornalistas secularistas foram os maiores agentes publicitários que Mel Gibson poderia ter. O resultado foram os U$$ 300 milhões de bilheteria que o filme ganhou em menos de um mês de exibição e a descoberta de que há um iceberg de descontentamento que a mídia não percebeu porque, obviamente, vive fechada em um castelo de areia, olhando para o seu próprio umbigo.
Mas o fosso entre os mandarins da imprensa e o público que sai transtornado depois de ver um filme tão excruciante aumenta ainda mais se percebermos que a questão não é meramente cultural ou, se quisermos colaborar com os exegetas da “indústria cultural”, fiduciária. E nem tampouco trata-se de uma questão de fé. Sem dúvida, é uma questão de sensibilidade – para não dizer que é também de discernimento. A propaganda gnóstica já teve melhores momentos na tática de difamar os seus verdadeiros inimigos, esses loucos que fazem parte da seita religiosa chamada Cristianismo. Contudo, dessa vez, ela perdeu a noção dos limites. Quando o bom nome dos judeus é usado e abusado pelas mesmas pessoas que atacam Israel e defendem o Hamas, para difamar um filme que, afinal, medita justamente sobre a tolerância com o semelhante, afirmando-o que é “medieval”, “sádico”, “pornográfico” e – pérola das pérolas – “excessivamente religioso”, é sinal que estamos prontos o fim do mundo – mas, ao contrário da clássica canção do R.E.M, eu não me sinto nada bem com isso.
E, por falar em fim do mundo, não foi por acaso que, duas semanas após a estreia de The Passion Of The Christ nos EUA, a Europa sentiu o horror do Mal Lógico no dia 11 de março (exatos novecentos e onze dias após o infame 11 de setembro de 2001 em Nova York), quando um comboio de trens explodiu na estação de Atocha, em Madrid, capital da Espanha, tirando a vida de 196 pessoas e ferindo outras duas mil. Finalmente, tudo ficou claro: as coisas deste mundo maluco deslizam para todas as direções e não há uma âncora segura. O Mal Lógico embrutece a sensibilidade humana e as definições que somente as palavras expressam são retorcidas em conceitos obscuros e nublados. Lutar contra o terrorismo significa seguir uma lógica de avestruz e culpar o imperialismo americano – ou então Mel Gibson, o católico tradicionalista que ficou maluco e fez um filme sobre um outro maluco, falado em latim e aramaico. Nunca somos os verdadeiros culpados. Sempre são “os outros”, os porcos capitalistas que se aproveitam da bondade humana. O terror é apenas um detalhe, uma consequência econômica do mundo globalizado. O resto não é apenas silêncio – é desespero acumulado em gritos de lavagem cerebral.
Mas sempre quando o arrependimento se transforma em farsa, o homem mostra as migalhas de dignidade que lhe restam. Ele procura em seu canto mais profundo, naquela caverna do coração onde somente um pouco de esperança brota nos momentos mais terríveis, a resposta certa de que há algo além dessa carnificina. Porque ninguém sobrevive neste mundo se acreditar apenas em si mesmo ou no seu próximo, o mesmo homem que criou os mais absurdos sistemas filosóficos que justificaram tanto o horror da Revolução Francesa como as cinzas de Auschwitz. Nunca se deve acreditar no ser humano – deve-se tentar compreendê-lo, sem nenhuma espécie de julgamento, aceitando-o como é, com suas muitas falhas e poucas virtudes, para que não se caia na mesma armadilha de um certo pretor romano de Jerusalém que, num momento pusilânime, perguntou a alguém: “Quid est veritas?” .
Quem faz uma pergunta dessas já perdeu toda a esperança e, obviamente, é impotente para agir em relação ao outro pois não consegue compreendê-lo. E, se não pode fazer isso, também não quer. Mas talvez o raciocínio deva ir mais longe: se não pode compreender, se não quer compreender, é provável que ele é incapaz de compreender o outro que está à sua frente. Entretanto, não devemos julgá-lo; afinal de contas, fazemos o mesmo todos os dias. Construímos muralhas sobre muralhas ao nosso redor; não conseguimos sequer encarar os outros nos ônibus, no metrô, nas ruas; caminhamos como se estivéssemos numa névoa, num mundo de sonho que faz sentido apenas em nossas cabeças minúsculas. Não olhamos com atenção para o que está próximo dos olhos, da pele, da boca. Uma outra pessoa que se aproxima com um gesto de socorro ou ajuda transforma-se nas dobras da nossa mente em um mero conceito, pronto para ser modelado numa argila artificial. E se fazemos isso com alguém que está a seis centímetros de distância, imagine com nós mesmos. Somos incapazes de nos ver no espelho da alma, naquele território da consciência em que a única honestidade possível é a confirmação da nossa podridão.
O fato é que, todos os dias, ajudamos a prolongar a dor do amor não-correspondido – e Mel Gibson, com seu filme insano sobre um louco que não hesitou em abraçar a sua cruz, joga isso na nossa cara. Realmente, ver The Passion Of The Christ não é uma experiência fácil. Sim, ele é violento; sim, ele culpa os judeus pela morte de Jesus de Nazaré, mas, ao mesmo tempo, culpa os romanos pelo sadismo e pela indolência, culpa os apóstolos Judas e Pedro pela traição e pela covardia, culpa até mesmo a pobre Maria Madalena pela impotência de não conseguir ajudar o homem que a salvou do linchamento. Ninguém escapa da culpa, exceto o próprio Jesus, que esmaga a serpente da tentação no Jardim das Oliveiras, e sua mãe, a Virgem Maria, que, mesmo com seus olhos de resignação, não deixa de se perguntar quando seu filho querido usará dos seus poderes para escapar de situação tão humilhante. The Passion incomoda porque a culpa, esta palavrinha irritante que, volta-e-meia, perdeu o sentido na mente dos inteliquituais, contaminou toda a humanidade. Todos nós estamos com uma trave no olho – até mesmo Mel Gibson, que não hesita em filmar a própria mão pregando o Cristo na cruz.
Entretanto, o filme não é apenas um tratado teológico moralista. Se fosse isso, jamais teria causado tamanha celeuma. Além de ser uma profunda meditação religiosa sobre o Maior Assassinato de Todos Os Tempos, The Passion é também um filme de impecável carpintaria cinematográfica. Para quem dirigiu Coração Valente, Mel Gibson prova que teve o estalo de Vieira. Logo na primeira sequência, a de Jesus a rezar e a suar sangue no Jardim das Oliveiras, enquanto um demônio andrógino o tenta com o mais sofista dos raciocínios, o ritmo é tenso, implacável, como se garras de gaviões estraçalhassem o espectador na cadeira. A direção está em seu completo domínio de encenação, decupagem e edição. Não é um mero filme bíblico, repleto de preachy talk. É um verdadeiro thriller, um épico de batalhas em que o personagem principal vive e sofre mais do que qualquer Frodo Bolseiro, mas vence igual ao Super-Homem. Gibson, com a ajuda do diretor de fotografia Caleb Deschanel, filma os acontecimentos como se fossem quadros de uma fantasmagoria, de uma alucinação surpreendentemente real, em que o importante não é um relato naturalista da Paixão, mas sim as ressonâncias simbólicas (não à toa, vários scholars reconheceram que Gibson usou com muita perícia alguns detalhes referentes aos fatos da Paixão – e, entre eles, ninguém menos que René Girard). O choque de opostos, de delicadeza e brutalidade, de desolação e fé, de luz e de sombras, é tão atroz que atordoa o espectador. A violência emocional da película é aliviada com fragmentos de flashbacks, como o de Jesus brincando com a Virgem ou o do Sermão da Montanha, mas Gibson usa a montagem alternada para iludir os nossos sentidos e jogá-los novamente no ciclone de tortura. Pela primeira vez na história do cinema temos um filme sobre Jesus em que ele não é o arauto da paz e amor dos hippies de Nicholas Ray, o proto Che Guevara de Pasolini ou o Cristo angustiado de Scorsese, mas sim um Jesus que mostra a autoridade com um único olhar, mesmo humilhado e estraçalhado, sem julgar ninguém porque, afinal, Ele compreendia o que os outros faziam.
3.
A partir desta meditação sobre a dor do amor não-correspondido, Gibson vai além e mostra que é necessário uma civilização inteira para morrer como consequência desta escolha nefasta – é o que o diretor parece responder no seu filme seguinte, o estupendo Apocalypto (2006). Financiado com o dinheiro do sucesso de bilheteria de The Passion, e misturando o filme histórico com o de ação – numa homenagem comovente ao que aprendeu com os diretores George Miller e Richard Donner nos respectivos sets das séries Mad Max e Máquina Mortífera –, Gibson explicita desta vez algo que antes estava apenas insinuado. Para ele, a ameaça da violência nunca vem de fora, do outro ou do “estrangeiro”, mas sim sempre dentro da coletividade que a acolhe sem hesitar, em especial quando esta resolve viver no “desconhecimento” das suas ações. Ao fugir disto constantemente, o ser humano não tem outra solução exceto praticar uma lista infinita de sacrifícios – como foi o que aconteceu com os Maias retratados pelo diretor em Apocalypto.
Uma década depois, Mel Gibson aprofundaria ainda mais a sua “anatomia da violência” com um filme que parece ser o irmão gêmeo de Apocalypto – o épico de batalha Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, 2016). Se antes ele fazia questão de citar Richard Donner e George Miller, agora o homenageado é o australiano Peter Weir, que o dirigiu em outro filme de guerra, o belíssimo Gallipolli (1982). Neste aspecto, parece que Gibson quis fazer a sua versão deste mesmo longa, ao contar a história do médico de combate Desmond Doss (Andrew Garfield), um cristão adventista que não se recusa ir às trincheiras da Segunda Guerra, mas que também não quer matar ninguém, somente ajudar quem precisa do seu auxílio.
O conflito da consciência cristã de Moss com o dever militar é o reflexo de uma luta maior: a descoberta que, no fundo, toda a violência do homem surge do seu próprio coração – e cabe a ele encontrar uma maneira de dominar a si mesmo. A diferença é que Gibson afirma isso numa das mais impressionantes cenas de batalha da História do Cinema, repleta de “sangue, suor e lágrimas”, dramatizada com um vigor único, provando que este cineasta, depois de ter chegado a essa terrível conclusão no seu íntimo (por meio de acusações válidas de antissemitismo, agressão à esposa e ofensas aos colegas de trabalho), é, antes de tudo, uma força da natureza.
4.
Esta compreensão nunca poderia ser entendida com meras palavras; ela somente foi entendida por meio desse ato que foi dramatizar cinematograficamente a Paixão. E, no fim, todo o som e a fúria que Mel Gibson usou para contar essas histórias significam alguma coisa, independente das acusações imbecis criadas pela patrulha ideológica. A sua visão da morte de Cristo é um aviso da nossa incapacidade de compreender o Outro, de querer entendê-lo numa espécie de contemplação amorosa, mesmo (e, no caso, principalmente) se este Outro for ninguém menos que o próprio Deus. Em outras palavras: Gibson reflete sobre o fato de que ainda não compreendemos a verdadeira mensagem do Cristianismo. Depois de dois mil e vinte e um anos, o ser humano ainda retalha a si mesmo, destrói sem piedade a vida do seu semelhante, justifica o homicídio pela causa racional mais absurda.
Mas – e aí está a pergunta decisiva – será que o Cristo sofreu aqui em vão? A resposta é um absoluto “jamais”; porém, é uma negativa que precisa ser desenterrada da nossa memória. Se a polêmica em torno de The Passion gerou tal comoção, isto se deve porque Mel Gibson fez um filme urgente para tempos urgentes. A verdadeira instituição da humanidade nunca foi o Cristianismo e sim o Anti-Cristianismo. E tudo isso por uma razão muito simples: o Cristianismo choca até mesmo a pessoa mais sensata. Sua essência é a incerteza da condição humana, elevada ao cubo por se apoiar em outra incerteza, a da fé, aquele “firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que não se veem”, na famosa definição de São Paulo. Não há razão que resista ao fato de que Deus encarnou em um carpinteiro, nascido no meio das fezes e da palha, criado à margem de um mundo onde dominava a histeria messiânica, mestre de doze broncos que não entendiam uma única palavra que dizia e assassinado ao lado de dois criminosos ordinários. São acontecimentos que, para afetarem a História da humanidade como uma cicatriz profunda, não podem ser vistos como meros fatos. Deve haver algo mais. É esta palavrinha – justamente o mais, o sinal de soma que, por coincidência ou não, nos remete à Cruz onde Ele foi crucificado – que faz os iluministas crentes no fim da História, na soberania do Estado Soberano, no chá do Santo Daime e no poder do terror, tremerem e se aniquilarem. Porque a incerteza que ronda o Cristianismo é apenas o estopim de uma batalha que mal começou e que cumpre o que o próprio Cristo afirmou: “Não vim trazer a paz, mas a divisão”. Gibson criou uma filmografia que incomoda qualquer um que tenha problemas pessoais com o Cristianismo e, no fim, problemas com o seu próprio caminho na vida. A sua Paixão é o retrato do confronto de dois mistérios: o da iniquidade e o da Encarnação – e nenhum intelectual dos nossos tempos tem estofo para compreendê-los pois estão apenas interessados em julgá-los.
Assim, esta progressão de um único tema jamais deve ser vista como algo aleatório, em especial pelos críticos de cinema. É muito provável que Mel Gibson pretende revelar ao espectador aquilo que René Girard chamava de “as coisas ocultas desde a fundação do mundo”. O seu incrível sucesso de público mostra que estamos diante de um caso único: um “cineasta autoral” que impõe as suas obsessões a um sistema que poderia muito bem sufocá-lo quando quisesse. Por outro lado, é de se esperar que esta atitude constante de “pôr a sua alma em risco” o faça ir além na sua arte cinematográfica, como já aconteceu com outros diretores que lidaram com o mesmo tema (Clint Eastwood, Martin Scorsese e Terrence Malick são três nomes atuais que vêm à mente). Se isso acontecer, não seria exagero afirmar que a “anatomia da violência” de Mel Gibson se transformará numa possibilidade de cura desta doença que aflige a todos nós há muito tempo.
Como tudo que envolva a história de quem retrata, por meio de inúmeras variações, a trajetória de Jesus, a obra de Gibson é uma experiência exigente. A tentativa patética de classificar o mistério sobre o qual ela aborda em gavetinhas como “violento”, “antissemita” e “ultrapassado” serve apenas para confirmar a incapacidade moral dos nossos menestréis. O comportamento deles não deixa nada a dever ao mau ladrão que, num supremo momento de humor negro em The Passion, tem seu olho arrancado por um corvo em plena crucifixão. Armados na arrogância, escondem um monstruoso desespero. Enquanto a mensagem do Filho do Homem está sob seus narizes, preferem entregá-Lo aos leões com o beijo da soberba. E assim caminha a humanidade, num ritmo trôpego, sem saber ao certo se o que perdura é o amor débil, amparado numa suposta certeza, ou o amor que se fortalece a cada tortura que deveria enfraquecê-lo. Em um momento de profunda tristeza de The Passion, Gibson filma uma lágrima caindo do céu e provocando um terremoto aterrorizante. “Est veritas, est veritas!”, grita um soldado no filme, “Filis Deus est”. Seria o Deus Pai revelando aos pobres coitados naquela amarga colina do Gólgota que mataram seu Filho? Ou seria uma espécie de benção ou maldição sobre nós, o eco de um amor não-correspondido que teremos de carregar até o fim dos tempos, se houver algum? A lágrima feroz do Pai que, direta ou indiretamente, sacrificou seu filho favorito para perdoar nossos pecados, mostra que não há palavras que possam encarar o verdadeiro enigma deste mundo. Há apenas o fato irrefutável de que “there was a saviour/ rarer than radium/ cooler than water/ crueller than truth”, como escreveu Dylan Thomas. O problema é que ainda não correspondemos corretamente ao seu amor. E assim continuaremos a escutar os gritos abafados na terra retorcida ou veremos o fogo caindo do céu – para aprendermos, de uma vez por todas, enquanto esperamos por um milagre, que as raposas têm suas tocas, os pássaros têm seus ninhos, mas nenhum de nós terá um lugar para pousar a cabeça.