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And the mercy seat is waiting
And I think my head is burning
And in a way I’m yearning
To be done with all this measuring of truth.
An eye for an eye
And a truth for a truth
And anyway I told the truth
But I’m afraid I told a lie.
Nick Cave and The Bad Seeds, “The Mercy Seat”.
1.
Quando o formidável Um Nazista em Copacabana, de Ubiratan Muarrek, foi lançado no final de 2016, a maioria da crítica literária o tratou como se fosse um romance picaresco de costumes. Agora, com o advento do “novo tempo do mundo” – como diria o filósofo Paulo Eduardo Arantes – após as eleições de 2018, ficou evidente que os nossos críticos nunca entenderam este livro pelo que ele é de fato: uma espécie de filme de horror que antevê, prenuncia e profetiza, com toques macabros e de humor negro, a pandemia do coronavírus.
O exemplo cristalino disso está na (já memorável) cena do jantar em uma megacobertura onde estão alguns membros dos “grã-finos” paulistas. Ela é também o clímax de toda a inusitada trama criada por Muarrek para mostrar a essência do brasileiro. Nesta sequência, digna de um Lars Von Trier regado a mescalina, prova-se que a literatura nacional contemporânea também sabe fazer os seus painéis romanescos sobre a recente história do país (e não deixa nada a dever a um Jonathan Franzen, por exemplo, apesar de que eu tenho a certeza de que Muarrek se inspirou em Joel Silveira para conceber este banquete macabro). E o melhor: sem cair na ideologia política barata, preocupando-se somente com aquilo que vale a pena – o ser humano em suas nuances. No caso, a cena envolve os personagens Delúbio (sim, o homônimo do notório tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, condenado no escândalo do Mensalão), Diana Verônica (só no Brasil para existir esse tipo de nome composto), além de uma plêiade de noveaux riches que, de repente, mais que de repente, subiram de vida via os labirintos da insalubre cidade de São Bernardo do Campo (para quem não se lembra, a base eleitoral de Luiz Inácio, o Lula) – além de um intrigante menino loiro, de cabelo partido, chamado Edward, e o qual pela descrição parece ser similar ao David Bowie da fase do álbum Low (1977), o Thin White Duke que jamais hesitaria gritar a um “heil!” ao nazista de subúrbio mais próximo.
Não sei se foi a intenção de Muarrek, mas tal episódio também me fez lembrar a longa cena do jantar na casa de Seymour Levov, apelidado de “O Sueco”, famoso personagem do romance Pastoral Americana (1997), de Philip Roth, falecido justamente em 2018, o mesmo ano em que o Brasil resolveu praticar o “suicídio da revolução”. Ali, está tudo o que se pode esperar de um livro de Roth: as neuroses do sujeito que acaba de descobrir que a vida é nada mais, nada menos do que o caos; os pensamentos sem nenhuma coordenação de alguém que vê o outro à sua frente como uma máscara a qual está ali apenas para enganá-lo; as idas e as voltas do narrador em terceira pessoa que não para de viajar no tempo (mas que, no fim das contas, é um Nathan Zuckerman a imaginar o que teria acontecido com seu ídolo de infância); a inevitável cena em que se descobre (com uma boa dose de sarcasmo) o adultério da amada esposa. Enfim, o pacote completo de virtuosismo literário que só o Bardo de Newark era capaz de nos proporcionar. Mas o que importa mesmo ali é o momento de suspense para o que será discutido no jantar – e que Muarrek emulará com sucesso em Um Nazista em Copacabana: a inevitável queda das civilizações ocidentais, simbolizada pela América (no nosso caso, o Brasil mal chegou a tal aspiração).
Se em Pastoral Americana, Roth faz um típico jantar americano, com verduras, legumes, massa e um vinho tinto, o que temos em Um Nazista em Copacabana é um smorgasbord, um banquete escandinavo que nos remete à Henrik Ibsen justamente porque o jantar em questão é uma homenagem deliberadamente consciente a este dramaturgo. Muarrek tem uma escrita frenética, porém detalhista, que vai do foco em discurso direto para o indireto em uma questão de virgulas (ou, no caso específico do seu estilo, repleto de frases longas, separadas apenas por um ponto-e-vírgula), no qual o pensamento de um personagem toma forma por meio de um “objetivo correlato” que concretiza a sua angústia interior, mesmo que ele não perceba isso (o grande exemplo dessa técnica é outra cena magistral no romance, a do encontro de Delúbio com um pássaro que fica preso em uma claustrofóbica sala de reuniões onde se acertará a típica propina superfaturada de alguma construção já corrompida e já corrupta). Só um virtuoso da literatura conseguiria resumir o totalitarismo cultural que o Brasil vive em um único jantar – e Muarrek faz isso sem cair no grotesco e, ao mesmo tempo, transmitindo um imenso (e intenso) carinho pelos seus personagens, em especial os crápulas e os desvalidos. No seu smorgasbord, ele mostra um país que enriqueceu repentinamente, sem se curar da sua pobreza moral, quiçá espiritual, e que também criou, para seus cidadãos, uma nova jabuticaba parecida com o 13º salário frequentemente desprezado pelo Gen. Mourão: o nazismo macunaímico. Ali, não há comida que aguente tamanha indigestão. Descobrimos, graças à destreza narrativa de Muarrek, que o país se tornou um grande prato cheio de sobras, um cocho onde nem um cachorro acredita ser digno de mergulhar o seu focinho, pois já deve estar contaminado pela peste mortal.
Os jantares de Philip Roth e Ubiratan Muarrek, descritos acima, mostram aquela verdadeira obsessão do escritor na procura da cena perfeita que possa sintetizar um determinado Zeitgeist. A regra implícita é que não pode ser qualquer cena. Ela deve ser, de preferência, algo que envolva comida, seja no sentido literal ou no metafórico (inclusive sexual, é claro), semelhante ao que Platão fez no Symposium. Trata-se de uma espantosa coincidência que essas cenas nos remetam não só ao autor de A República – este tratado sobre a política e que foi jogado às traças nos últimos cem anos por essas bandas tupiniquins –, mas também ao aforismo atribuído a Proudhon – “Você é o que come” –, cuja afirmação descobrimos não passar de uma bravata. Para sermos explícitos: o que Muarrek vislumbrou em Um Nazista em Copacabana a respeito dos últimos eventos históricos brasileiros é que não, você não é o que come. Você é aquilo que deseja – e, como não fomos cuidadosos ao termos as nossas preces por renovação política sendo finalmente atendidas, logo que isso aconteceu, com o flagelo da covid, experimentamos o vazio que nos consumia por dentro, desde o início dos tempos.
Por isso, não vejo nenhum exagero comparar as estratégias literárias – e proféticas – de Muarrek com as de outra autora contemporânea. É claro que não há nenhum jantar grandioso em História do Novo Sobrenome (2013), segundo volume das chamadas “novelas napolitanas” escritas pela misteriosa Elena Ferrante. Em compensação, a comida aqui é o próprio sexo, o desejo que motiva a ciranda amorosa das amigas de infância Lina e Lenú, numa obsessão demoníaca que as acompanha desde o primeiro volume, o admirável A Amiga Genial (2012). Pouco importa quem é a verdadeira identidade de Ferrante, e sim o indiscutível fato de que ela é uma mestra, capaz de registrar em pouco mais de duzentas páginas todo o ritual da perda definitiva da inocência que envolve suas personagens, quando ambas passam as férias nas praias de Ischia, na Itália.
A sequência é digna de um Proust. Nela, Ferrante nos mostra que o verdadeiro perigo do sexo não é o desejo em si, mas o seu desconhecimento em relação a ele, em especial ao fato de que ninguém tem controle sobre coisa alguma e que estamos sempre à deriva (não à toa que Lenú explica à sua melhor amiga, Lina, que ela está errática em seu comportamento porque “é o mar que faz isso com as pessoas”). E mais: ao narrar a cena em que Lenú perde a virgindade, o acontecimento é descrito como se fosse uma descida aos infernos, na percepção de uma realidade tão profunda que sequer o amor ou o sexo podem apreendê-la corretamente. Talvez seja o que aconteça com todos nós. Mas talvez seja também o fato de que, em um “novo tempo do mundo” governado por Jair Bolsonaro, nem uma jovem pode se dar ao luxo de dar uma boa foda.
Estas observações antropofágicas, por assim dizer, convergem para uma conclusão terrível de que, tanto nos exemplos dramatizados por Muarrek como nas cenas elaboradas por Philip Roth e Elena Ferrante, o que temos descrito é uma verdade a qual poucos têm a coragem de articular, mas que foi feita por Alberon Waugh (sim, o filho de Evelyn) neste diagnóstico implacável a seguir, muito melhor do que qualquer outra coisa feita por algum discípulo do Dr. Freud:
“A sociedade deve aceitar que o desejo de poder é uma desordem de personalidade por si só, como o desejo de ter uma relação sexual com uma criança ou de sentir a textura de borracha embaixo de suas roupas. (…) A política, nunca canso de me dizer, é para deslocados sociais e emocionais, gente com inteligência limitada, que têm nada além de rancor em suas emoções. O propósito da política, para eles, é ajudá-los a superar essas limitações e esses sentimentos de inferioridade e compensar as suas inadequações pessoais na procura pelo poder. E isso sem dúvida causa muito mais infelicidade do que felicidade”.
Em Um Nazista em Copacabana temos a anatomia desta infelicidade, levada às últimas consequências, pois este romance mostra o que acontece quando todo um país fica absolutamente possesso por este “desejo de poder” descomunal – e que resulta em um centro moral que desaba de vez por causa de uma praga colossal. Aparentemente, não há o que fazer. Contudo, se Ubiratan Muarrek permanecesse nessa paralisia, ele não estaria fazendo grande literatura. Teria feito apenas uma bula de remédio para uma cura que jamais existirá. Mas, para a nossa felicidade, não é este o seu caso. O final de Um Nazista dá a solução para este nosso “novo tempo do mundo” ao estabelecer algo muito mais simples: a esperança. Quando Delúbio e Diana Verônica se reencontram no sítio do pai dele, recém-falecido, no interior das Minas Gerais, resta apenas a conclusão de que, ao contrário do que fala a canção de Nick Cave que serve como epígrafe para este texto, não devemos mentir quando sentamos no trono da misericórdia. O amor, o ato de perdoar e a paciência superam qualquer smorgasbord, qualquer propina, qualquer poder que oprimem nossos afetos. O casal Delúbio e Diana Verônica, com sua singela (e picaresca) história de amor, mostra a verdade que há nesta lição de vida proferida por ninguém menos que o filósofo alemão Eric Voegelin em seu fundamental Science, Politics and Gnosticism: “Ninguém é obrigado a participar na crise espiritual da sociedade; pelo contrário, todos são obrigados a evitar a loucura e a viverem a sua vida em ordem”. No caos atual do Brasil, a literatura de Ubiratan Muarrek é a prova final de que ainda há uma saída para o beco sem saída onde nos encontramos. Portanto, nem tudo está perdido. Apesar da peste.
2.
A comoção em torno de tragédias – como a que vivemos em 2020 com a pandemia e que ainda não terminou – me faz lembrar imediatamente não só do assustador filme de Atom Egoyan intitulado O Doce Amanhã, mas sobretudo do livro sobre o qual o cineasta canadense se baseou – o romance duro, triste e maravilhoso de Russell Banks.
Banks é um autor que deveria ser mais reconhecido no Brasil. Em tempos de David Foster Wallace, Knausgaard e Itamar Vieira Júnior, faz falta a prosa musculosa, mas ao mesmo tempo delicada, de um escritor que, pelo menos, concebeu três livros memoráveis: O Doce Amanhã (1991), Temporada de Caça (1997) e o épico O Divisor de Nuvens (2001).
O Doce Amanhã fala a respeito da tragédia que se abate sobre uma pequena cidade dos EUA, quando um ônibus escolar cai numa ribanceira e mata boa parte das crianças do local. Banks usa do mesmo procedimento de William Faulkner em Enquanto Agonizo (1929): fragmenta a narrativa em seis pontos de vista diferentes, não só para ter uma noção mais completa do evento, mas também para que o leitor perceba como cada habitante do vilarejo foi afetado em sua vida interior.
Independente dos méritos técnicos (ou justamente por causa deles), o romance consegue fazer algo que poucos livros na literatura mundial conseguiram: ele dramatiza com perfeição um dos sentimentos mais terríveis da nossa incerta condição – o fato de que, com a morte de uma criança (principalmente se for um filho nosso), testemunhamos toda a ordem natural virar pelo avesso. E ele faz mais, algo que só um grande escritor como Banks permite: mostrar também que, mesmo com o trauma perseguindo as nossas existências como um fantasma acorrentado, podemos superá-lo e viver a nossa vida sem nenhuma espécie de sentimentalismo ou autocomiseração (a atitude oposta dos veículos de mídia que transformaram a dor justa do flagelo em um circo piegas, carregado de “som e fúria”).
Pois este deve ser o verdadeiro sentido da expressão em inglês, the sweet hereafter: após uma tragédia, como o amanhã pode ser doce? Como pode existir vida após a morte? Como a morte pode ser suave? ("Ó, morte, onde está o teu aguilhão?", já perguntava Paulo, ou como canta Johnny Cash: O, death, where´s thy sting?) E aí está o enigma que Russell Banks tenta nos ensinar: sim, podemos encarar o amanhã com ternura, mesmo após ter tido a nossa lição de trevas. O hereafter sempre chega a todos nós, mesmo que não desejamos isso, talvez por revolta, talvez por ignorância. Trata-se do único fato inevitável – e talvez o mais importante das nossas vidas. O difícil é fazer de tudo para alcançá-lo, mesmo que o vazio da neve, o ruído da chuva, o rumor das lágrimas, a falta de ar, a dor nos ossos, a febre no corpo – e as cicatrizes no rosto e na alma nos digam o contrário.
3.
Em The Counselor (2013), filme dirigido por Ridley Scott – traduzido aqui com o título impecavelmente idiota de “O Conselheiro do Crime” – e roteirizado por Cormac McCarthy, o personagem interpretado pelo ator espanhol Javier Bardem, Reiner, explica ao personagem-título, feito por Michael Fassbender, o que seria um bolito. O diálogo é reproduzido abaixo, em inglês, para que o leitor entenda as sutilezas de horror (e de humor) da prosa de McCarthy (a tradução aproximada vai logo abaixo):
REINER […] Do you know what a bolito is?
COUNSELOR No. A bolo is one of those skinny neckties. Or is it one of those things you throw.
REINER Yeah. In this case it’s a mechanical device. It has this small electric motor with this rather incredible compound gear that retrieves a steel cable. Battery-driven. The cable is made out of some unholy alloy, almost impossible to cut it, and it’s in a loop, and you come up behind the guy and drop it over his head and pull the free end of the cable tight and walk away. No one even sees you. Pulling the cable activates the motor and the noose starts to tighten and it continues to tighten until it goes to zero.
COUNSELOR It cuts the guy’s head off.
REINER It can.
COUNSELOR There’s nothing he can do.
REINER No.
COUNSELOR Jesus.
REINER Yeah.
COUNSELOR How long does it take?
REINER Three, four minutes. Five maybe. It depends on your collar size.
COUNSELOR You’re shitting me.
REINER Nope. Mostly wretched excess of course. It’s just that there’d be no easy way to turn the thing off. Or reason to. It just keeps running until the noose closes completely and then it self-destructs. Actually you’re probably dead in less than a minute.
COUNSELOR From strangulation.
REINER No. The wire cuts through the carotid arteries and sprays blood all over the spectators and then everybody goes home.
COUNSELOR Jesus.
REINER Yeah, well.
COUNSELOR Bolito.
REINER Yeah. Probably a play on words too. Boleto—with an e—is the spanish word for ticket. As in yours has just been punched.
[REINER: Você sabe o que é um bolito?
ADVOGADO: Não. Sei que um bolo é um daqueles laços de gravata bem apertados. Ou é um daqueles doces que se joga na cara de alguém.
REINER: Certo. Neste caso, trata-se de um aparelho mecânico. Tem um pequeno motor elétrico com uma incrível engrenagem que repuxa um cabo de metal. Carregado por bateria. O cabo é feito de algum material profano que o torna quase impossível de cortá-lo, e ele está envolto em si mesmo, num laço, e você chega por trás de um cara, enrosca-o no pescoço dele, puxa bem o fim do cabo e vai embora. Ninguém percebe a sua existência. Ao puxar o cabo, você aciona o motor e o laço começa a apertar no pescoço do sujeito e vai assim até o infeliz tornar-se um nada.
ADVOGADO: Pode cortar a cabeça dele.
REINER: Pode, sim.
ADVOGADO: Não há nada o que ele possa fazer.
REINER: Não.
ADVOGADO: Jesus.
REINER: É isso aí.
ADVOGADO: Quanto tempo pode isso aí demorar?
REINER: Três, quatro minutos. Talvez cinco. Depende do tamanho do seu pescoço.
ADVOGADO: Cê tá me zoando, certo?
REINER: Não estou. É algo sem dúvida bem macabro. É que não há nenhum motivo para desligar o aparelho. Ou até mesmo qualquer tipo de razão. Ele atua até o momento em que o nó se fecha completamente e então se autodestrói. Na verdade, você estará provavelmente morto em menos de um minuto.
ADVOGADO: Estrangulado.
REINER: Não. O fio corta a carótida e espalha sangue ao redor de todo mundo que viu a cena e então todos vão para casa.
ADVOGADO: Jesus.
REINER: É isso aí.
ADVOGADO: Bolito.
REINER: Exato. Provavelmente, também um trocadilho. Boleto – com e – em espanhol significa bilhete de cobrança. Como se o seu tivesse sido rasgado.]
Quando revi recentemente esta cena, me perguntei o que aconteceria se Reiner desse a mesma explicação ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro, especialmente após a campanha conscientemente negacionista feita a favor (sim, é ‘a favor mesmo’, leitor pedestre) do coronavírus. Ao pensar numa variação deste diálogo, imaginei logo depois o rosto de Bolsonaro ao ouvir a explicação do que seria um bolito – e tenho quase a certeza de que a sua reação seria a mesma do advogado interpretado por Fassbender: uma mistura de incredulidade, tolice e, sobretudo, temor.
Se alguém quiser entender o que realmente se passa na nova fase da chamada “era da incerteza” (algo que, na verdade, acontece desde a Primeira Guerra Mundial), é obrigatório ler a obra completa de Cormac McCarthy, em especial dois escritos dele que, por coincidência, tornaram-se películas cinematográficas de grande sucesso e que lidam com a tragédia da guerra do narcotráfico na fronteira entre os EUA e o México – uma guerra que tem sinistros paralelos com o que também ocorre no Brasil, independentemente da covid, uma vez que apenas trocamos o comando do Primeiro Comando da Capital pelo o das milícias bolsonaristas, sejam reais ou virtuais.
Além de The Counselor, temos o que pode ser considerado o livro que narra o início deste drama centrado na sanguinolência eficiente do bolito – o romance No Country For Old Men (2005), transformado em um admirável filme dirigido pelos irmãos de Joel e Ethan Coen em 2007. Neste caso, podemos falar que o seu verdadeiro realizador foi McCarthy, pois, assim como aconteceu com Ridley Scott, os Coens tiveram a sapiência de transformar as palavras do escritor americano em imagens – e não mexer em mais nada.
Na mesma época em que estreou a película dos Coen, também teve o surgimento de outra obra que, apesar de não lidar diretamente com o assunto do narcotráfico, lida igualmente, por incrível que pareça, com o mesmo tema abordado por McCarthy: There Will be Blood (2007), de Paul Thomas Anderson, possivelmente uma obra-prima, mesmo sendo uma história difícil, seca, sombria, com um dos finais mais delirantes de todos os tempos, enquanto o filme da trinca Coen-McCarthy é seco, direto e não alivia em suas pitadas de violência e metafísica. No fundo, ambos falam de um mesmo assunto – e que parece ser a raiz do problema que sintetiza esta fase da “era da incerteza”, em que o narcoestado, seja de esquerda ou de direita, invade a estrutura do Estado-Nação, e o terror da existência o qual permeia cada detalhe do nosso cotidiano contaminado pela cultura do corona, dão indícios de algo muito mais sinistro: Será que Deus desapareceu do nosso mundo?
Tanto The Counselor como No Country for Old Men parecem que respondem na afirmativa. Contudo, se ninguém for atrás dos outros livros de Cormac McCarthy, um dos grandes escritores do nosso tempo, pode-se até continuar a imaginar que ele pensa exatamente isso. Entretanto, é só ler Blood Meridian (1985), Suttree (de 1979, o único romance do século XX que fica aos pés do Ulysses [1922], de Joyce) e The Crossing (1995) para perceber que No Country e The Counselor são misturas subversivas (pois disfarçadas de um tom popular) do tema que McCarthy persegue com obstinação há mais de trinta anos: Como o ser humano pode suportar tanta iniquidade?
Para McCarthy, o homem não consegue mais suportar o Mal porque ele é uma presença que o sufoca e que mata a esperança; porém, a descida aos infernos e o confronto com o abandono divino (dramatizados em Suttree e The Crossing) são as únicas formas de encarar este problema com a sobriedade e o estoicismo necessários. Segundo McCarthy, o mundo não perdoa e, quem pensar o contrário, cairá nas garras da vaidade e será derrotado sem misericórdia – como é o que acontece com o advogado interpretado por Fassbender e que desconhece o que é um bolito. Menos Eclesiastes, impossível.
Neste ponto, é provável que os irmãos Coen aproximaram-se mais do tom amargo do seu agridoce Fargo (1995) ao restante da obra de Cormac McCarthy, porque a adaptação de No Country feita por eles, se não fosse pela presença de Tommy Lee Jones no papel do Xerife Bell, seria o atestado de ateísmo que a pós-modernidade – rebatizada agora de “pós-verdade” – pediu. Esqueçam da trama policialesca entre Llewilyn Moss e Anton Chigurth (por coincidência, também interpretado por Javier Bardem); lembrem-se somente do desiludido Xerife Bill e da tola Carla Jean, verdadeiras ovelhas indo para o abatedouro. Ali está o coração do filme e do livro. Para eles, a vida é uma inevitável derrota, os inocentes perdem, os malvados saem apenas com os ossos quebrados e o que sobra é o seu pai carregando uma tocha em um deserto inóspito – mas apenas em sonho (é interessante ver que McCarthy levaria essa mesma imagem às últimas consequências no seu romance mais recente, The Road, de 2006). Ainda assim, o fato do Xerife Bell afirmar ao seu tio inválido de que não é culpa de Deus ele não ter percebido Seus sinais e Sua presença no decorrer da vida, foi colocado de escanteio pela crítica do establishment – e assim No Country foi alçado à filme de propaganda da patota de Richard Dawkins.
Tentaram fazer a mesma coisa com There Will be Blood, mas não conseguiram. Em primeiro lugar, porque o filme não é uma crítica ao fundamentalismo religioso; é mais um aviso para que os representantes do espírito não se vendam às tentações do mundo (um tema que voltaria com força no filme seguinte de Anderson, o sublime The Master, lançado em 2012). E, em segundo lugar, também não é uma crítica ao capitalismo. Daniel Plainview, interpretado pelo gênio perturbado de Daniel Day-Lewis, é uma espécie de patriarca do Velho Testamento que, ironia das ironias, não tem filho verdadeiro, mas arruma um que logo depois o deserdará. O seu sobrenome é um alerta da sua psicologia: “Plainview” significa alguém que vê o mundo de maneira rasa, plana, ao rés do chão. Contudo, é um patriarca que, por causa da sua libido dominandi, acredita que pode se sobrepujar ao poder espiritual. Este é representado por um pastor fracote, Eli Sunday, que parece estar vivendo o tempo todo no domingo do Senhor; afinal, é o líder da Igreja da Terceira Revelação, que, como o próprio nome indica, é filhote direto dos milenaristas gnósticos dignos de um Joachim de Fiore.
Plainview e Sunday são, respectivamente, o mundo e o espírito em uma luta pelo poder, em que o primeiro tentará esmagar o segundo com todas as suas forças e, depois, com a ajuda do próprio pastor, que comete o pecado maior da apostasia. Quando Plainview berra a Sunday em seu combate final que ele é a Terceira Revelação, eis aí alguém que fala a verdade cruel: Plainview é o Leviatã de Thomas Hobbes transformado em realidade, um homem que não confia em ninguém, que usa os outros e que se isola cada vez mais em uma autodestruição sobre a qual não tem controle algum. Mas isso só acontece porque o representante do espírito já se vendeu ao mundo, já negou a sua própria vocação. De certa forma, There Will be Blood vai além de No Country for Old Men e The Counselor porque ousa ir até o limite da sua história; sua conclusão lógica é a de que, se quem representa o espírito insistir na sua fraqueza, o resultado será o fim do Ocidente como conhecemos. É como dizia São João Crisóstomo: a culpa de não existirem mais cristãos cabe aos próprios cristãos. Os filmes dos Coen e de Anderson, junto com os escritos de McCarthy, mostram exatamente essa nudez da verdade que ronda os nossos dias. Quando os representantes do espírito e da integridade moral fraquejam – como observamos nos exemplos do pastor Eli Sunday, do Xerife Bell e do advogado que entra voluntariamente no mundo do crime –, podemos esperar mais do que sangue; podemos esperar também choro e ranger de dentes. Entre os banquetes antropofágicos que nos devoram e os doces amanhã os quais demoram a chegar, todos nós ficaremos à mercê do próximo bolito que agarrará os nossos pescoços sem misericórdia.