A pedagogia da Shoah
Quando a literatura do Holocausto se transforma em uma literatura das minorias.
Ele se lembra do brilho perigoso daqueles olhos. O uniforme cinza que aqueles olhos vestiam parecia entediado enquanto as crianças brincavam jogos que elas próprias inventaram. Sujo e amarrotado, o uniforme sempre chutava os pequenos. Então ao vê-lo, ele pensou: Como torná-lo um sujeito agradável? Afinal, o uniforme chutaria as crianças quando aparecia com aquele ar de tédio. Aproximou-se aos poucos dele, correndo e dançando em círculos, para frente e para trás, até chegar perto, até ele encará-lo com o brilho perigoso. “Preciso ir até ao banheiro! Não aguento mais!”, o grito ocupava toda a barraca, e ele tentava tapar os ouvidos, tapar os olhos, a boca daquele idiota. Regras: ninguém fará a sua sujeira no chão da barraca, todos devem ir para o fosso mais próximo – e para chegar lá tinha de andar muito, mas muito mesmo – e, à noite, haverá um balde na barraca – mas o balde é pequeno, e no meio da madrugada já estava cheio ou prestes a entornar. “Preciso ir ao banheiro!” – Ninguém falava nada, o silêncio era tão ameaçador porque dava-se a impressão de ouvir os barulhos das botas mesmo quando elas não chegavam – Por que ninguém falava nada? “Não aguento mais!”. Maldito novato que não sabia as regras. Finalmente, os olhos cinza fitaram-no –
— ENTÃO FAZ AÍ NA PALHA ONDE VOCÊ ESTÁ!
Era a sua voz, e isto o surpreendeu, a sua voz, uma voz de ordem, de ódio, de medo. Aí tudo ficou quieto – parece que o novato fez o que lhe aconselharam e dormiu aliviado por toda a noite. Seria o seu último sono tranquilo. Os olhos foram aos poucos perdendo aquela sombra e os cantos da boca se transformaram em um sorriso. Sim, ele havia conseguido – ele tinha tirado o mal do seu rosto. Tinha vencido. Tomou a mão dele que lhe oferecia e começaram a dançar em círculos. Ele tinha tirado o mal do seu rosto. Pela manhã, hora de contagem na barraca. Todos para frente, todos enfileirados, ele no meio, os olhos ofuscados pela luz, somente sombras, silhuetas indo e vindo – “Quem foi que sujou a palha essa noite? O porco que fez que apresente-se! Quem foi?” – Ele devia se apresentar? O novato apareceu, de cabeça baixa. Devia se apresentar? Ficou quieto, absolutamente quieto. Devia? O novato era agora apenas uma sombra fundindo-se ao contorno negro dos uniformes. Aquele era o último momento para salvar-lhe a vida. O que fazer? O novato também poderia denunciá-lo? Até quando poderia aguentar e dizer tudo? A carroça chegou – todos sabiam o que aquela carroça significava. Era a carroça dos mortos. Um estalar de ossos, murmúrios e ele vê algo sendo jogado dentro da carroça. Ele o havia entregado. Ele era o culpado. O culpado. Ele se lembraria depois que a risada do uniforme soava rude, até o riso arrancar a última gota de maldade no seu coração. Foi colocado sobre seus ombros e ambos continuavam a galopar em círculos. As outras crianças estavam espantadas, seus rostos vendo os dois e sorriam de felicidade, a felicidade que somente as crianças podem ter, a felicidade de tirar o mal dos corações humanos apesar dos seus ainda estarem contaminados com ele. O uniforme cinza havia sido mau, mas e agora? No meio daquelas brincadeiras soprava-se a pergunta: É possível tirar algo que já existe dentro de nós?
***
Ele se lembra do espanto das outras crianças – o uniforme cinza estava brincando com elas! Continuava a andar em círculos. Em círculos. “BINJAMIN! BINJAMIN! TEM ALGUÉM AÍ QUE SE CHAMA BINJAMIN!”, gritava a blockawa na barraca. Lentamente, hesitante, ele se levantou e se apresentou como o tal de Binjamin – parece que era este o seu nome antes de entrar na barraca, parece que o uniforme cinza queria participar de verdade da brincadeira (e o olhar de espanto dos outros...), mas ele começou a andar em linha reta, de repente, rompendo o círculo e indo em direção ao muro, segurando o menino pelas pernas e soltando-o violentamente, fazendo-o voar de frente para o muro – “Hoje você vai poder ver a sua mãe”. Teria ele uma mãe? Quando? Respirou o cheiro da lama e escutava o riso do uniforme cinza, os olhos voltando a ter aquele brilho perigoso que ele se lembra até hoje, assim como se lembra da blockawa guiando-o em outras barracas localizadas em um campo muito mais amplo, cercado por todos os lados de cercas e arames, e as barracas eram tristes, cheias de sombras deitadas na cama e no chão – e lá estava uma mulher que lhe disseram que era sua mãe. (“Agora você vem comigo e não vai falar mais coisa alguma. É rigorosamente proibido dizer uma única palavra que seja: Proibido agora, proibido quando você vir sua mãe, e também depois disso. Você não vai dizer a ninguém, nunca, está entendendo? A ninguém, você me entende? Entende?”) Os joelhos e os olhos doíam – a claridade o irritava –, mas ele podia ver uma coberta a se mexer. Então esta é a minha mãe? Ele nunca tirou os olhos daquele vulto, daquela coberta que se mexeu e mostrou um braço. Tateava bastante – procurava alguma coisa? Sim, procurava. A mão acenou para que segurasse algo. Foi quando se tocaram: suas palmas suavam e um viu o rosto do outro. Ela acabara de chorar. Acenou para pegar algo embaixo da cama. Ele fez o que lhe foi pedido – e segurou o objeto no peito e correu para fora daquela barraca. A blockawa o interpelou e o trouxe de volta ao seu lugar. Lá, desembrulhou o objeto – era áspero, duro. “O que é isso?”, perguntou. “Um pão”, alguém lhe respondeu, “Você precisa amolecê-lo com água, e aí vai poder comê-lo”.
Aos poucos as coisas vão se tornando claras para ele. Uma lembrança puxa a outra. Uma pilha de corpos, de mortos – de mulheres mortas. Uma vez lhe contaram que as criancinhas crescem na barriga das mulheres antes de nascerem. Todos falam que ele é pequeno – “Hoje você vai ver a sua mãe”. “Quando eu vou ver a minha mãe?”, perguntou para aquela mesma blockawa – “Você nunca mais vai poder ver a sua mãe...”. A pilha de mulheres mortas. Será que todas as mães morrem quando dão à luz suas crianças? Olha a pilha de novo. Algo está se mexendo. É a mulher do alto da pilha! Voltada com a barriga para cima! Algo se mexe – é a barriga! (Será que minha mãe está agora deitada assim também?) Não, não desvie os seus olhos. Aproxima-se. Veja.
(“as crianças
se
mexem
den
tro
da
barriga
e aí a
MÃE
fica sabendo que
e
la
s
que
rem
sair
”
)
Veja. Engatinhe. Chegue mais perto. Mais perto. A barriga se abre, a ferida se abre, o abdome se levanta, é cuspido ao lado de uma outra morta, e sai dali uma iluminada ratazana coberta de sangue, escorregando pelos cadáveres até o chão, até os seus pés, e outras ratazanas assustadas saíram dos corpos, e olharam para eles e fugiram, menos ele que não fugiu, e ele quer fugir, gritar, agarrar o seu próprio grito – “MÃE? O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ! MÃE?!” – agarrar a sua queda. A sua queda.
Então, é assim que se morre? Ele se lembra que não sente mais nada. Hoje, ele acredita que seu nome é Binjamin. Pelo menos, foi isso o que sua memória lhe conta. Mas o orfanato nunca lhe deu um nome. Nem as pessoas da barraca, nem o uniforme cinza, nem a blockawa. Duas pessoas – que acreditaram serem seus pais – lhe deram um nome: Bruno. Bruno Dössekker. Mas Binjamin veio antes. E ele sabe – isto pode ser sentido. Há poucos dias escreveu sobre a ratazana em um papel rasgado, uma impressão que a vida não deixou passar com o tempo:
“Muitos anos mais tarde, eu assisti ao parto do meu primeiro filho.
Devagarzinho, a primeira coisa a aparecer foi o semicírculo da cabeça do bebê. Pai pela primeira vez, eu não sabia quantos cabelos escuros um recém-nascido já pode ter. Não estava preparado para aquele semicírculo cabeludo. Só pude fitá-lo imóvel (…).
Devo ter causado uma impressão verdadeiramente lastimável ao deixar a sala de parto. Deslizei pelo longo corredor, passando pela porta aberta da sala das enfermeiras, onde algumas estavam tomando seu café. Examinaram-me curiosas e puseram-se a rir baixinho.
Mesmo já no ar livre, seus comentários bastante francos ecoavam ainda em meus ouvidos:
Haviam murmurado com desdém alguma coisa sobre os homens, e sobre os fracotes incapazes do que quer que fosse”.
Eles nunca o deixarão. Sempre estarão ao seu redor. Como na barraca. Como no orfanato. Como na escola. Como em casa. Como agora ao escrever aquele fragmento. Como no dia em que a senhora Gorsz deixou-o sozinho na estação de trem, esperando alguém do orfanato para buscá-lo, esperando alguém que lhe contasse que a guerra acabou – mas o fato é que ele se lembra sempre que a guerra nunca acabou.