“There´s no distinguished philosopher or thinker in the Western world today who, firstly, is not aware – and has not also expressed this sentiment – that the world is experiencing a serious crisis, is undergoing a process of withering, which has its origins in the secularization of the soul and in the ensuing severance of a consequently purely secular soul from its roots in religiousness, and, secondly, does not know that recovery can only be achieved through religious renewal, be it within the framework of historical churches, be it outside this framework. Such renewal, to a large extent, can only be initiated by great religious personalities, but everyone can be ready and willing to do his share in paving the way for resistance to rise up against evil”.
Eric Voegelin, “The Political Religions”
Through centuries he lived in poverty,/ God only was his only elegance.
Wallace Stevens, “The Good Man Has No Shape”
Give me crack and anal sex.
Leonard Cohen, “The Future”
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INTRODUÇÃO
Uma das grandes questões do nosso tempo é o fato de como a política – entendida aqui como a arte de fazer o possível para o bem comum da sociedade, respeitando a individualidade do ser humano, mesmo que tenha de se equilibrar na acrobacia do poder – pode ter sido pervertida a níveis assustadores. Ela foi alçada à categoria de mal absoluto, sejam pelos próprios políticos ou por aqueles que se dizem ser oposição, quando não passam de aspirantes ao mesmo cargo de – adivinhem? – políticos. A política é insultada como se fosse uma criança sapeca, mas é uma das mais importantes atividades humanas, porque, como Aristóteles definiu naquela sentença clara e precisa, copiada por milhares de acadêmicos que sequer pensaram realmente sobre o que essas palavras dizem, o homem é um animal político.
Contudo, mesmo sendo uma característica intrínseca ao ser humano, isto não significa que é a única característica. Ao contrário: a política é apenas a parte de um todo muito mais amplo, um todo que, na verdade, se encontra oculto sob a superfície das coisas invisíveis e sob uma linguagem que, embora espelhada na nossa, ainda permanece secreta. E é a partir desse mistério que tentaremos decifrá-lo e expô-lo ao leitor, ao começar nossa investigação – porque será ele que poderá nos ajudar no longo inverno da alma que sempre nos é próximo.
Com isso, temos de expor a questão que nos aflige e que perturba a verdadeira compreensão do que seria o nosso assunto: Será que a política se restringe somente aos círculos do poder e à satisfação pessoal do político ou ao seu compromisso de atender às exigências da sociedade? Esta pergunta pode nos induzir ao erro nesta investigação – já que ela questiona apenas uma parte do estado de coisas. Ora, se a política é algo natural ao homem, temos de procurar as raízes no próprio indivíduo – logo, dentro dele, cavando os porões de seu espírito. É o espírito que guia o ser humano para suas atividades mais sérias e é ele que, por uma maneira inexplicada, o mantém em contato com seus semelhantes, o que lhe permite desenvolver duas das suas habilidades mais dignas: a do livre-arbítrio e a da responsabilidade consigo mesmo e com o próximo. O homem que consegue dirigir sua alma para estas ações realiza uma política que ultrapassa os meros interesses da sociedade em que vive. Sua política é total, não local; sua existência tem uma coerência que dá unidade aos fragmentos que poderiam pôr sua alma a perder. Portanto, a verdadeira pergunta que se deve fazer sobre o nosso assunto é: A política se restringe somente aos círculos do poder e à satisfação pessoal do político e ao seu compromisso de atender às exigências da sociedade – ou a algo além deste mundo, refletido numa ordem transcendente?
Exposto o problema de fato, temos de fazer o mesmo com o método que será utilizado na investigação, até para justificar o eventual desprezo que possa surgir destas páginas, especialmente em relação “às exigências da sociedade”. Usaremos a dialética que há entre a ordem do indivíduo, refletida em sua alma, e a ordem da sociedade, refletida nas leis, instituições e, sobretudo, no ritmo histórico. A primeira ordem começa com a descoberta da transcendência da alma, no momento em que esta volta-se para si mesma, desce até as profundezas e então inicia uma ascese dolorosa, marcada pelo caminho que a leva das trevas até a soberania do Bem. Já a segunda ordem sempre está em mutação, pois é a característica marcante do ritmo histórico, que nunca foi linear e sim sincrônico, baseado numa abstração de indivíduos em que não podemos conhecê-los realmente, somente por meio de números ou então por meio de uma excessiva racionalização que, aos poucos, não deixaria nada a dever a um irracionalismo digno dos fanáticos.
O método da dialética não será, em hipótese nenhuma, o de Marx e Hegel. Antes desses dois teutônicos, a dialética era usada por Platão e Aristóteles naquele combate interior que há na alma individual, para alcançar a síntese que ultrapassa os contrários e que permita uma conclusão à qual, mesmo provisória, se apoia em princípios evidentes por si mesmos, que guiam os homens desde os inícios dos tempos e além destes.
Santo Tomás de Aquino, Dante Alighieri (particularmente, em seus tratados filosóficos e políticos) e, no século XX, Eric Voegelin, usam dessa “dialética de expiação”, na qual as impurezas são purgadas numa meditação em que as opiniões são tratadas a chibatadas, sempre na busca sincera pela verdade, jamais com a intenção de manter seus interesses ideológicos – que frequentemente acabam numa política falsa, de forças nitidamente diabólicas.
A dialética é uma luta contínua, mas mesmo uma luta cruel tem certa lógica. Não podemos deixar de ter um eixo na nossa investigação e, como estamos procurando o espírito individual que guia a política que possibilita o bem comum em outros homens, a melhor escolha recai em ninguém menos que Dante Alighieri (complementada, como veremos, por um misterioso trovador hebreu). Há vários modelos, como Platão, Aristóteles, Thomas More, Erasmo de Rotterdam, Maquiavel, mas, além do fato de vários desses pensadores já terem sido abordados em escritos anteriores do autor, Dante nos parece um homem mais completo em suas atividades: além de ter sido o poeta da Comédia, das Líricas, das Rime Petrosi e da Vita Nuova, ele foi diplomata, pesquisador minucioso da língua latina e italiana, e escreveu Da Monarquia e O Convívio, obras que mostram que sua existência foi uma ampliação da consciência humana – em especial a Comédia, que chega perto de ser uma revelação –, e que suas ideias sintetizaram o final da Idade Média, influenciando depois o Renascimento e, para o bem e para o mal, os nossos dias.
Assim, começo por analisar a alma do indivíduo e, para isso, utilizaremos das Rime Petrosi, de Dante, combinados com alguns diálogos de Platão e obras de Aristóteles; depois, dissecarei os assuntos da justiça e de sua consequente perversão no mundo moderno; a ordem e a desordem e como, enfim, pode-se aplicar a política que se origina do espírito e não da sociedade. A finalidade desta obra é dissipar um pouco a névoa de inconsciência que nos atinge, mesmo que isso implique não sermos compreendidos a curto prazo. Contudo, sabe-se que o tempo sempre trabalhou ao favor de quem labuta, ainda que a alma fique um pouco danificada com tamanha espera, pois nunca esperamos muito do próprio tempo. Mas este é o momento de se iniciar a restauração da vida do espírito no universo da política, em busca de uma unidade que, a partir do momento em que ela é encontrada, pode nos ajudar a diagnosticar corretamente o coração do mal. São nestas épocas em que a tirania se aproxima que a noção de uma permanência da perda fica mais intensa e, por isso mesmo, mais nobre.
I
1.
O personagem do Estrangeiro, no diálogo Político, de Platão, pergunta a Sócrates, o Jovem, se deveria incluir – quem mais? – o político na categoria dos sábios.
Esta é a questão crucial desta investigação: Pode um estadista equilibrar o mundo do espírito e o mundo do poder – mundos que sempre entraram em conflitos devastadores? Devemos entender que o político apresentado aqui, não será aquele que busca somente o oportunismo eleitoral, mas sim o sujeito que dominou as forças da alma, para depois dominar as mesmas forças que dominam a sociedade. É o velho princípio do “antes de querer consertar o mundo, primeiro conserte sua casa”. A intenção de um político, é bom frisar, não é a de querer consertar o mundo, mas sim fazer o possível para torná-lo um pouco mais suportável. Sua sabedoria seria compreender os problemas da vida comum, para harmonizá-los em um plano em que eles possam ser controlados, ainda que por um breve tempo.
A brevidade deste sucesso ocorre porque é da natureza de nossa existência viver por meio da luta e da tensão que há entre o campo divino da transcendência e o campo mundano da imanência. Isto não é um privilégio exclusivo do político – é um fato que ocorre com todos nós. A ansiedade que floresce com esta tensão provoca na alma do ser humano a possibilidade de ou escolher a abertura amorosa para a ordem que ultrapassa o mero humano, ou a descida sem volta ao fundo mais baixo de um poder que fica restrito somente às pessoas que não têm nenhuma nobreza em suas disposições internas. Neste ponto, o político se vê numa encruzilhada em que a tensão entre os campos divino e humano (que Platão e Eric Voegelin chamavam de metaxo), porque ele deve usar, muitas vezes, da força do poder para concretizar a autoridade do espírito.
Portanto, a ordem conquistada por este político, revela-se de uma fragilidade fascinante. Porém, qualquer tipo de ordem, até mesmo a tirânica, é tênue, por mais tempo que ela se prolongue. Não há uma ordem política permanente porque ela é apenas um esboço – muito incompleto – da verdadeira ordem que nos rege, a mesma que o político deve ter consciência dentro do seu espírito, para incorporá-la na sociedade onde vive.
Assim, chegamos ao primeiro princípio da nossa investigação: a alma do indivíduo é a alma da sociedade por extenso, e a alma do político deve ser o ponto de intersecção entre essas duas. Isto está fundamentado em A República, de Platão, em que a política seria a continuidade natural para a atividade do filósofo (entendido como philosophos – “amigo da verdade” – e não como philodoxos – “amigo da opinião”) que, por ter visto e suportado a luz do Bem e da Verdade, volta para o seu antigo mundo – a famosa caverna onde todos estão agrilhoados e veem apenas sombras – e avisa seus companheiros da nova realidade que lhe foi apresentada, realidade que, por sinal, decreta uma nova ordem do ser humano, pronto para entrar em contato com o divino.
Entretanto, este aviso não será muito bem recebido – pelas outras pessoas e, talvez, pelo próprio sujeito que teve a revelação. “E se lhe fosse necessário julgar aquelas sombras, em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?”, pergunta Sócrates a Glauco no diálogo platônico que medita sobre o tema da justiça – ou melhor, se vale a pena ser justo em um mundo onde tudo impele ao contrário. Glauco não hesita em concordar com a pergunta retórica de Sócrates pois sabe que, antes de tudo, o homem é também o maior inimigo de si mesmo, uma afirmação que o próprio Platão também confirmará em As Leis, sua obra mais extensa e complexa, concebida no fim da vida. Preso na ansiedade da tensão entre a transcendência e a imanência, o ser humano pode perverter sua própria alma, uma vez que lhe falta força suficiente para controlar seus vícios e permitir que as virtudes de sua alma saiam vitoriosas, graças a uma longa e penosa luta.
Assim, não seria um exagero afirmar que as guerras ocorridas nas histórias das suas respectivas sociedades são exteriorizações dos dramas que atormentam as almas de seus governantes – o que significa que, para surgir tamanho acontecimento, é sinal que este combate atingiu um limite quase insustentável dentro da alma do sujeito, jogando-o nos ritmos da história e do tempo. Para um evento como a Segunda Guerra Mundial, deve-se levar em conta que dois de seus participantes – Hitler e Stalin – não tinham muitas virtudes dentro de suas almas. Quem pagou o preço foi a humanidade, que também não tinha muito conhecimento delas, algo que obviamente se prolonga até hoje.
Para que as qualidades da alma se sobreponham aos vícios, é necessária uma força hercúlea. Platão descreveu o combate, mas apenas implicitamente sugere a participação de uma divindade que ajudaria o ser humano. Eis o grande diferencial do Cristianismo, em que a graça sobrenatural seria este elemento importante o qual, junto com o Espírito Santo, guiaria o homem que procura Deus numa ascese difícil rumo à Fé e à Esperança, mas no final triunfante. Ainda assim, a graça é muito mais um problema do que propriamente uma solução – já que seu mistério, como tudo no Cristianismo, é a confirmação da incerteza de nossa existência, sempre no conflito do metaxo.
Segundo Platão e Aristóteles, o homem que deseja ser um político completo deve saber que a coisa mais importante no mundo não é o poder, mas sim a busca sincera pela verdade. A arte de governar seria a demonstração prática deste amor pela sabedoria, pois o político o transmitiria a todos, sem nenhum outro interesse. Entretanto, ele não deixaria de ter consciência da espiritualidade do mal, já que esta semente vive dentro da sua alma – afinal de contas, o homem é o maior inimigo de si mesmo (e iremos repetir isso ad nauseaum nesta investigação). Esta arte teria de ser aprimorada conforme o passar do tempo e, neste ponto, Aristóteles desenvolveu muitas coisas de Platão, ao elaborar a ética para a educação do homem maduro – o spoudaios.
Tanto Platão como Aristóteles sabiam que a arte de governar implicava em lidar com as tentações do poder e que elas poderiam corromper a alma do homem que queria buscar a verdade. O spoudaios seria aquele que teria pleno domínio de suas potencialidades, dentro da tensão entre o campo divino e o campo mundano, ao realizar a passagem sem rupturas da vida contemplativa (também conhecida como vida teorética, bios theoretikos) para a vida prática, justamente a que é voltada para a política.
Eric Voegelin explica com muita propriedade, em A Nova Ciência da Política (1953), a importância de ser um spoudaios:
“Uma teoria não é apenas a emissão de uma opinião qualquer a respeito da existência humana em sociedade; é uma tentativa de formular o sentido da existência, explicando o conteúdo de um gênero definido de experiências. Os argumentos usados não são arbitrários, e sim derivam sua validade do conjunto de experiências ao qual a teoria deve permanentemente referir-se para possibilitar o controle empírico. Aristóteles foi o primeiro pensador a reconhecer esta condição das teorizações a respeito do homem. Criou um termo para designar o homem cujo caráter é formulado pelo agregado das experiências em questão, chamando-o spoudaios, o homem maduro. O spoudaios é o homem que realizou ao grau máximo as potencialidades da natureza humana, que formou seu caráter na realização das virtudes intelectuais e éticas, o homem que, no auge do seu desenvolvimento, atinge o bios teoretikos. Assim, a ciência da ética, no sentido aristotélico, é o estudo do spoudaios. Além disso, Aristóteles tinha aguda consciência dos corolários práticos dessa teoria do homem. Em primeiro lugar, a atividade teórica não pode ser desenvolvida em todas as condições por todas as pessoas. O teórico talvez não precise ser a encarnação do próprio modelo de virtude, mas deve ao menos ser capaz de reproduzir imaginativamente, as experiências que sua teoria busca explicar; e essa faculdade só pode ser desenvolvida sob certas condições, tais como a inclinação, uma base econômica que permita o investimento de anos de trabalho nos estudos teóricos e um ambiente social que não oprima o homem que a eles se dedique. Em segundo lugar, a teoria como explicação de certas experiências só é inteligível para aqueles em que a explicação desperte experiências paralelas como base empírica para testar a verdade da teoria. Se a exposição teórica não chegar, pelo menos em parte, a ativar experiências correspondentes, dará sempre a impressão de ser conversa fiada ou poderá ser rejeitada como expressão irrelevante de opiniões subjetivas. O debate teórico só pode ser conduzido entre spoudaios, no sentido aristotélico; a teoria não tem argumentos contra o homem que se sente, ou finge sentir-se, incapaz de reproduzir a experiência. Conclui-se, portanto, que, historicamente, a descoberta da verdade teórica pode não encontrar aceitação alguma na sociedade. Aristóteles não tinha ilusões a esse respeito. É verdade que, como Platão, ele tentou construir, nos livros VII-VIII de Política vii-viii, um paradigma da ordem social que expressaria a verdade do spoudaios; mas também afirmou com muita tristeza que em nenhuma das cidades helênicas de seu tempo podiam encontrar-se cem homens que fossem capazes de formar o núcleo dirigente de tal sociedade; qualquer tentativa nesse sentido seria totalmente inútil. O resultado prático parece ser um impasse”.
O verdadeiro político deve ser um spoudaios – mas aonde encontrá-lo? É aqui que começa a noção de uma “permanência da perda”: temos de entender essa expressão – que será bastante utilizada no decorrer deste ensaio – como a busca por aquilo que se mantém intacto e puro, dentro de um mundo em que a precariedade é constante e na qual a confusão entre o múltiplo e o uno pode nos levar a um dualismo existencial – uma armadilha em que até mesmo um sujeito como Platão caiu.
Para o filósofo dos filósofos (sem ele, não teríamos Aristóteles, Santo Agostinho e até mesmo suas sementes bastardas, como Hegel e Marx), o corpo era a prisão da alma. Esta última seria imortal e levaria o homem a privilegiar as virtudes aos vícios. Mesmo assim, o dualismo platônico não implica em uma irresponsabilidade do sujeito sobre sua alma no tempo de sua passagem aqui pela terra. A alma é algo que deve ser zelada a qualquer custo e o preço pela sua corrupção é a morte injusta. Para um filósofo, a vida é uma preparação para a morte e a aceitação da finitude de si mesmo e das coisas do mundo provoca um carinho pela alma que poucos teriam.
O dualismo platônico, contudo, pode chegar ao ponto de ver o corpo como um mero acessório – o que daria lugar a um ascetismo imprudente, como o dos estoicos. Aristóteles corrige este desvio com a unidade do sujeito, em que, por ser, simultaneamente, potência e ato, as ações de uma pessoa passam a ser claramente originárias daquele único ser humano e ninguém mais poderia fazê-lo. Corpo e alma são um todo que se relacionam como se um fosse espelho do outro. Da mesma forma que a alma é imortal, o corpo é finito em sua natureza, mas ele não é mais uma prisão e sim o veículo, por assim dizer, que leva a alma até a plenitude de sua existência. As noções de essência, existência e acidente aparecem para aperfeiçoar esta unidade do sujeito, cristalizando a sua responsabilidade sobre quaisquer dos seus atos. Aristóteles não tinha como saber, mas o Cristianismo levaria isso às últimas consequências, com a ressurreição de Cristo sendo comprovada por São Tomé, quando este diz que somente acreditará no milagre ao tocar as chagas Dele.
A unidade do sujeito seria uma espécie de repouso na vertiginosa permanência da perda. Mas, no mundo da política, onde o poder corrompe a pureza, justamente por causa de sua natureza ambígua, a ser analisada nas páginas seguintes, o homem que tenta praticar essa unidade de forma justa deve encontrá-la tanto em suas emoções, como também nas pessoas que, direta ou indiretamente, irá governar.
Platão usa a metáfora do pastor no Político, em que o estadista deve controlar dentro do rebanho aqueles que lhe serão prejudiciais, tanto na cidade como dentro da sua alma. Ele deve aprender a unir duas das melhores qualidades de um político: a coragem e a temperança. Em A República, Platão joga mais outras duas: a justiça e a sabedoria – e as quatro seriam os pontos cardeais para a formação do spoudaios, segundo Aristóteles em sua Ética a Nicômaco. A sabedoria, a coragem, a justiça e a temperança são as virtudes que, dominadas, vigiariam a si mesmas, contribuindo para a harmonia das disposições interiores e dando ao político firmeza às suas ações. Se ele tiver apenas uma delas, o governo pode estar por um fio – pois o político deve unir suas qualidades e seus aliados como o tecedor que arranja a lã e a une numa única manta, em que as costuras são imperceptíveis e não há ali nenhuma falha. Entretanto, como Platão bem sabia, esta ordem aparentemente perfeita duraria pouco tempo, dentro de um ciclo em que qualquer tipo de ordem se desintegraria. A natureza social de um governo é repleta de contradições, internas e externas, e cabe ao político domá-las, principalmente àquelas dentro de sua alma:
“ESTRANGEIRO – Este simples conflito de caracteres [entre a temperança e a coragem] não passa de um jogo. Entretanto, nas coisas graves torna-se a enfermidade mais perigosa que há para as cidades.
SÓCRATES, O JOVEM – A que coisas graves te referes?
ESTRANGEIRO – Naturalmente àquelas que dizem respeito à organização da vida. Há, com efeito, pessoas dotadas de um temperamento extremamente moderado; dispostas a levar uma vida de perpétua tranquilidade, elas se afastam e se isolam para ocupar-se de seus negócios e, revelando essa disposição, conservam-na com relação às cidades estrangeiras, sempre prontas, também aqui, a qualquer espécie de paz. Por este amor verdadeiramente intempestivo chegam elas inconscientes, vivendo ao sabor de seus desejos, a perder toda aptidão para a guerra, a educar seus jovens nessa incapacidade, colocando-os à mercê do primeiro assaltante: não são necessários muitos anos para que se encontrem elas, seus filhos, e toda a sua cidade, transformados de livres em escravos, sem que disso se apercebam.
SÓCRATES, O JOVEM – Dura e terrível sorte!
ESTRANGEIRO – Que dizer daqueles mais inclinados à energia? Não têm sempre alguma nova guerra para onde arrastar sua cidade, pela enorme paixão que nutrem por esse gênero de vida, expondo sua pátria aos ódios tão numerosos e fortes que a arrastam à sua ruína completa ou a colocam sob a servidão e o jugo inimigo?
SÓCRATES, O JOVEM – É o que também sucede.
ESTRANGEIRO – Como, pois, negar que há entre esses dois gêneros de espíritos uma fonte contínua e profunda de inimizade e discórdia?
SÓCRATES, O JOVEM – Impossível negá-lo.
ESTRANGEIRO – Não temos assim verificado o primeiro ponto de nossa pesquisa, isto é, que certas partes da virtude, e não pequenas, são por natureza opostas entre si, e engendram, nos espíritos onde residem, as mesmas oposições?
SÓCRATES, O JOVEM – Parece.
ESTRANGEIRO – Examinemos, agora, o ponto seguinte.
SÓCRATES, O JOVEM – Qual?
ESTRANGEIRO – Procuremos saber se entre as ciências combinatórias há alguma que por ser a mais humilde, aceite, ao compor uma outra de suas obras, tanto os maus como os bons elementos; ou se o esforço de toda ciência é, em qualquer domínio, o de eliminar o mais possível os maus elementos conservando os elementos úteis e bons e, quer sejam estes semelhantes ou dessemelhantes, fundi-los todos numa obra que seja perfeitamente uma por suas propriedades e estrutura.
SÓCRATES, O JOVEM – Claro!
ESTRANGEIRO – Nossa política, a política verdadeiramente conforme à natureza, jamais consentiria em constituir uma cidade formada de bons e maus. Ao contrário, começaria, evidentemente, por submetê-los à prova do jogo, e, terminada essa prova, confiá-los-ia a educadores competentes e habilitados para esse serviço. Reservaria, entretanto, a si o governo e a direção, assim como faz o tecedor com relação aos cardadores e a todos os demais auxiliares que preparam os materiais que ele urdirá, mantendo-se constantemente junto deles para governar e dirigir todos os seus movimentos, e determinando a cada um as obrigações que julga necessárias ao seu próprio trabalho de tecedura”.
Ao mesmo tempo em que o político tem de buscar a unidade para o seu governo, ele tem de buscar a unidade que se esvanece enquanto ocorre a permanência da perda. O que está em jogo na política não é a posição ideológica de esquerda ou direita, mas sim a alma humana de cada habitante do governo, representada pelo seu governante, a qual deve entendê-la e cuidá-la como poucos. O verdadeiro político sabe que sua alma pode cair na tentação do vício a qualquer momento, por causa dos meandros ocultos que habitam no território do poder. É como o mito da parelha alada que Platão tão bem descreveu no seu diálogo Fedro: a alma humana seria como os cavalos alados que podem levar o cocheiro (a inteligência) tanto para o mundo da essência, como para o mundo da mentira, da mera doxa (opinião comum). O ofício de manter a harmonia entre esses dois cavalos é penoso, porque sempre pressupõe uma luta contínua, pois há sempre um cavalo de boa índole e outro de má:
“As almas tudo fazem para seguir os deuses, seu condutor ergue a cabeça para a região exterior e se deixam levar com a rotação. Mas, perturbadas pelos corcéis do carro, apenas vislumbram as realidades. Ora levantam, ora baixam a cabeça, e, pela resistência dos cavalos, veem algumas coisas, mas não veem outras. Outras há ainda que, nostálgicas, seguem atabalhoadas acompanhando a rotação, incapazes de se levantar, empurrando-se e derrubando-se umas às outras, quando alguma pretende passar adiante. Há confusão e briga, e abundante suor. Muitas saem feridas, por culpa dos cocheiros. Muitas perdem as penas de suas asas. Todas, após esforços inúteis, não conseguindo se elevar até a contemplação do Ser Absoluto, caem, e a sua queda as condena à simples Opinião. A razão que atrai as almas para o céu da Verdade é que somente aí poderiam elas encontrar o alimento capaz de nutri-las e de desenvolver-lhe as asas, alimento que conduz a alma para longe das baixas paixões”.
A luta dentro da alma passa por um compreensível período de escuridão, de purgação e conhecimento por meio do sofrimento que torna o homem mais do que um mero “animal racional”. São nestes tempos de trevas que, por algum motivo misterioso, surgem as primeiras luzes e os primeiros sinais de que a alma possui um fundamento, uma espécie de pedra, mesmo que ela pareça dura e intratável. No entanto, é necessário poli-la com aspereza para, então, encontrar a pureza e, talvez, um pouco da luz, ainda que esta última nos pareça demasiadamente feroz. E quem captou isso com perfeição no reino das palavras foi o florentino Dante Alighieri, com suas Rime Petrosi.
[Continua no próximo mês]