[Leia aqui a primeira parte do livro]
2.
Dante Alighieri escreveu os poemas do ciclo Rime Petrosi em meados de 1296, cerca de seis anos antes da elaboração da Comédia. A referência é a uma misteriosa dama Pietra, que seria a mulher áspera a comandar a sua condição obscura de amante, o oposto da fé e da esperança que simbolizam Beatriz Portinari. Seus primeiros versos provocam um choque ao leitor acostumado com os sonetos dolce stilo nuovo da Vita Nuova, na tradução de Jorge Wanderley (sobre a qual me baseei para fazer esta análise):
“Eis-me chegado ao ponto do percurso onde o horizonte, quando o sol se deita, dá surgimento ao signo gemelar; quando a estrela do amor longe em seu curso desmaia aos raios que do sol aceita e está velada à luz que vê passar; e o planeta onde o gelo tem seu lar se mostra inteiro a nós dentro de um arco no qual, dentro dos sete, pouca sombra cresce: - e inda assim não falece em nada o meu amor, sólido marco em minha mente, mais dura que a pedra, ao manter dura a imagem que é de pedra”.
O estilo é rude, duro, a sintaxe quase impenetrável. Dante avisa que chegou a um ponto no percurso de sua vida em que o mundo desaparece para o sol e fica coberto de gelo. Seria isto um reflexo da alma da humanidade? É provável que sim, mas o poeta também avisa que o inverno da alma não atingirá o ponto inflexível e imutável do seu amor, fixado como uma pedra. No entanto, o que seria este amor? Muitos sempre ensinaram Dante como um tonto apaixonado, um dos mais famosos casos de paixão platônica da literatura ocidental, sempre identificado com um novo modo de ver a figura feminina. Nada mais errado. Quando Dante fala que é um “servo do Amor”, não está idealizando-o – ele o viveu na sua plenitude, a do Espírito que sabe muito bem para aonde vai. Contudo, o Amor de Dante é também o amor cristão, um novo tipo de amor que se compõe de grandes doses de ambiguidade. Ao mesmo tempo que conforta, fere; e enquanto fere, nos consola. Isto ficou explícito nos escritos de São João Evangelista, o mesmo que escreveu que a natureza de Deus é amor, mas também teve as visões mais perturbadoras do que seria a ira divina no famoso Apocalipse. Na verdade, não há nada de contraditório nesta situação: o Amor de Deus tem seus momentos de serenidade e bonança, mas, quando se vê que o mistério da iniquidade parece ser o que domina a luz deste planeta, ele não hesita em usar da força para reestabelecer a ordem transcendente que guia a todos.
Dante foi um dos poucos que compreendeu essa condição obscura do amante – e articulou por meio de símbolos da experiência concreta que nos guiaria pelos próximos séculos. Provavelmente, somente Platão, Aristóteles e São Paulo podem se igualar ao poeta florentino nesta expansão da consciência que são suas obras e as quais mostram o impacto que teve a revelação da verdade. Para Platão, tal impacto foi o combate entre o indivíduo e a sociedade simbolizado no drama de Sócrates; ainda não sabemos o que motivou Aristóteles – se foi uma intuição mística ou algo mais propriamente racional e metódico –, mas fica claro que o Estagirita tinha plena noção do que seria o Ser; quanto a Paulo, ele teve a visão penetrante do próprio Cristo, uma visão que só pode ter ocorrido de fato, porque senão como explicar a impressionante expansão que o Cristianismo teve nas mãos deste homem, exceto foi por meio de um ato de fé incomum?
As visões também atormentaram Dante Alighieri. Suas poesias são justamente a busca incessante pela unidade do espírito; seu estilo se articula dentro dos detalhes dessas visões, procurando ligações que sempre o façam voltar à ideia original – a de ser um servo do Amor. Apesar de serem mais discursivos, seus tratados políticos e linguísticos são parte dessa mesma unidade, numa tentativa de fazer com que o mistério do espírito se torne uma ação concreta – enfim, que a política do poder e a benção de Deus se unam para guiar uma sociedade em completa degradação.
O que motiva Dante a continuar na sofrida existência aqui na Terra são a fé e a esperança, simbolizadas em Beatriz Portinari, a moça com quem ele se encontrou aos nove anos de idade e, muito tempo depois, aos dezoito. Beatriz morreu precocemente e este fato condenou Dante, um poeta já famoso na juventude, a ser um errante pela vida, construindo seus poemas como rastros da jornada em direção a uma esperança que ele não sabia muito bem se existia – mas não custava tentar encontrá-la. Entretanto, para descobrir definitivamente a bondade que cerca o Amor, Dante teria que andar pela sua parte sombria e sobreviver, para depois nos contar o que viu.
As Rime Petrosi são o relato desta época em que o poeta desce às profundezas da alma, com tamanha coragem, que poucos conseguem compreender o que ele quis dizer com os seguintes versos:
“Já chegaram ao fim todas as frondes que a força de Áries leva a florescer para adornar o mundo; é morta a erva; no ramo as folhas verdes já se escondem, e em louro, abeto e pinho dão-se a ver - naquelas onde o verde se conserva o acerbo tempo que a estação reserva extingue as flores verdes nas vertentes - que à geada não poderão se opor: e não me veio Amor tirar do peito o espinho tão presente; eu sei que em mim vou carregá-lo sempre na vida, ainda que viva para sempre”.
O mundo está num total desconcerto e o poeta tenta resisti-lo a qualquer custo. Ele tem certeza que o Amor o protege, mas ainda assim o espinho do sofrimento não é extirpado porque faz parte do seu destino aceitá-lo. O poeta se pergunta de seu destino enquanto somente ele carrega o amor nestes tempos difíceis; sua alma responde que será como se seu coração fosse de mármore, se a amada também tiver um coração de mármore.
E quem será ela? Somos apresentados à Dama Pietra na terceira e quarta estrofe da segunda parte (o poema é dividido em quatro partes – o número que significa a completude da alma). Dante revela que seu tormento o deixou cansado, abandonado no círculo de sombra. Contudo, o desejo de perpetuar o amor não fenece; mas esta nova mulher que aparece na sua vida, ela é como pedra. Acontece que sua alma, coberta pela geada do mundo, também está em processo de petrificação. Tudo está morto e até mesmo o tempo não se move – e se o tempo não percorre seu fluxo normal de acontecimentos, é sinal de que a existência humana perdeu seu sentido. A nova mulher também tem essas características, mas elas fascinam o poeta, talvez pela desproporcional beleza que nasce do terror, nunca do bem e da verdade:
“Quando usa uma guirlanda em flor e relva, ela faz esquecer qualquer mulher; porque o crespo amarelo junto ao verde fica tão bem que Amor à sua sombra fica e me encerra entre duas colinas mais firme que argamassa contra a pedra. Sua beleza é mais forte que a pedra e a dor que causa cresce mais que a relva; eu já fugi por planura e colinas procurando escapar desta mulher; mas para a sua luz não vejo a sua sombra de muro algum nem de uma fronte verde. Um dia a vi, vestida toda em verde, tão formosa que arrancaria à pedra amor qual o que levo à sua sombra: e eu desejei que em lindo prado verde se enamorasse, como é da mulher, e fôssemos cercados por colinas”.
Dante mexe numa das questões mais espinhosas da nossa existência: o problema do Mal e a fascinação que se origina deste último. Ele não hesita em ir às últimas consequências. O desejo pela mulher de pedra é algo do qual ele não pode escapar; ela o perseguirá sempre, e, detalhe dos detalhes, sua luz permeia as sombras que poderiam protegê-lo deste fascínio. Como as sombras podem proteger alguém? Estamos no centro da experiência radical que é a “permanência da perda”: o homem prefere a escuridão a enfrentar a luz, mesmo que esta seja de uma natureza diferente do Bem. Sua alma está sendo puxada para baixo, com grandes dificuldades de subir. É um combate árduo, como a da parelha alada de Platão. O namoro com o Mal leva o poeta a desejá-lo mais do que tudo, mas no fundo, ele sabe que não o levará a lugar nenhum. A mulher é de pedra, que tenta acabar com o marco sólido do Amor o qual guiou o poeta até agora na sua vida, para corrompê-lo num mundo frio, também coberto pela pedra. É como se não houvesse saída, como se o fascínio pelo Mal fosse a única alternativa de ter uma existência suportável neste planeta petrificado. Onde estaria o Bem, se ele existisse? Como realizá-lo de maneira completa e que desmascare a beleza aparente que o Mal usa para nos dar a impressão que tudo pode entrar nos eixos, se seguirmos suas instruções?
Dante sofre com estas questões e seu primeiro passo é admitir que, por baixo deste prazer, devemos aceitar as lições que surgem do sofrimento, que só podem ser conhecidas com a descida às profundezas da alma. É o que está retratado de maneira impressionante no início da terceira parte das Rime Petrosi:
“Amor, sabes e vês bem que esta dona não teme o seu poder em nenhum tempo, e das outras mulheres quer ser dona; quando ela soube que era minha dona, pelos teus raios que me trazem luz da maldade se fez senhora e dona; nem parece ter alma, assim, a dona, parece fera, e o coração tem frio; mas seja em tempo quente ou tempo frio, tem semelhanças com alguma dona que fosse lapidada numa pedra por mão de quem melhor entalhe a pedra”.
Mas quem entalha a pedra dentro da alma? Parece que a resposta só pode ser uma: o tempo – e a constância que surge de seu fluxo o qual só pode nascer dentro do coração do poeta, prestes a ser congelado pela maldade da mulher que o domina em suas vontades. Dante faz um retrato agudo da obsessão que atinge o homem quando o Mal se torna uma ideia fixa e perverte a aceitação do mundo como algo imperfeito e inacabado – a contemplação amorosa que quer conhecer o outro pelo o que ele é e não pelo o que deveria ser dentro de sua mente.
O tema e as imagens da pedra se multiplicam conforme o poeta descobre que sua dama draga sua vida. Aqui, a permanência da perda transforma-se numa permanência pela própria sobrevivência. O trecho é longo, mas esclarecedor:
“E eu que sou mais constante do que pedra e te obedeço ante uma bela dona, trago escondido o golpe dessa pedra com a qual me feriste como a pedra que te houvesse estropiado longo tempo: - e o coração me atinges, que é de pedra. Jamais se descobriu alguma pedra preciosa no esplendor do sol, da luz, que contivesse tanta força ou luz que me permita fugir dessa pedra e que ela não me envolva com seu frio lá onde a morte há de me deixar frio. Sabes, Senhor, que por força do frio A água se torna cristalina pedra no lago tramontano onde faz frio e o ar procura à frieza do frio se converter e assim a água é dona, é mulher fria ali, devido ao frio: assim, se estou ante um semblante frio, enregela-me o sangue todo o tempo e o pensar nela, que me encurta o tempo, em mim se muda logo em corpo frio e foge como entrou, tornado luz, lá por meus olhos, desapiedada luz! Nela serve a beleza toda a luz; E a crueldade toda, pelo frio, lhe corre ao peito, onde não mandas luz: eis que nos olhos meus formosa luz quando a contemplo: e a vejo pela pedra aonde quer que eu lance olhar e luz. E dos seus olhos me vem doce luz E assim não cuido de olhar outra dona: Se ela me fosse mais piedosa, dona gentil! Por ela clamo à sombra e à luz, para servi-la, por espaço e tempo! Por isto quero viver muito tempo”.
O poeta descobre que o seu fascínio pelo Mal vem não do fato da dama ser a morte em si, mas porque ela pode ter um pouco do Bem dentro dela, incorporando tanto as sombras como a desapiedada luz da verdade. E aqui somos apresentados a uma solução parcial ao problema do Mal e da Teodiceia (a justificação de Deus): somos obrigados a aceitar a iniquidade para, dentro dela, encontrarmos o Bem. Claro que a maldade não é algo favorável para a existência humana, pois traz dor, sofrimento, morte e escuridão; contudo, sem ela não temos como encontrar o que seria a plenitude do Bem, da Verdade e da Justiça. Somente com a ausência de algo bom, poderemos saber o que era essa coisa boa. Nossa trajetória neste mundo é marcada pelo absurdo do Mal contra o sentido da vida, do logos, o fio comum que liga nossas experiências, nossas perdas e nossas vitórias. Temos de morrer um pouco todo dia para, no final, não termos a morte que mata e sim a morte que nos salva. Não podemos deixar de concordar com Platão em seu diálogo Fédon: a vida é uma preparação para a morte e temos de segui-la com a consciência de nossa finitude para vencê-la de uma vez por todas. O verdadeiro Bem é uma exceção em um mundo que, apesar de sua corrupção, ainda admite alguma integridade. Mas como alcançá-lo? É preciso atacar o Mal não por meio de subterfúgios, sem negar sua natureza enganosa, mas diagnosticando o seu coração para, enfim, extirpá-lo sem nenhum recuo. É o que Dante faz com sua dama de pedra na última parte do poema:
“Agora em meu cantar quero ser áspero como é nos atos esta bela pedra onde persiste e medra a crueza maior já concebida; ela veste armadura feita em jaspe, - e protegida assim nunca penetra seu coração, direta, seta pelo meu arco desferida; e ela é fatal; não basta ter erguida defesa contra o seu golpe mortal que vai reto ao final destino; e vence quanto me desarme as forças e a esperança de curar-me”.
O canto áspero do poeta é a exata medida de como o Mal deve ser vencido. Neste mundo onde o Amor não abandona aqueles que persistem em suas provações, a descoberta desta exceção que é o Bem é igual a uma revelação. O embate com a dama de pedra aperfeiçoará a própria pedra em que se apoia a alma. Entretanto, isto somente acontecerá com a morte no seu encalço, justamente quando tudo pode perder o sentido da busca:
“Contra mim ergue o punho e desafia a minha pobre vida este malvado e estou por terra atado e cansado demais para lutar; e um grito em minha mente então porfia e o sangue em minhas veias dispersado vai fugindo apressado rumo do coração – e me esvazia. No lado esquerdo fere e suplicia Tão forte que me dói no coração: E digo: “Se ergue a mão Para ferir de novo, eu vejo a morte Antes que o golpe certo inda suporte”.
A morte faz renascer a nobreza da vida – e é desta nobreza que o ser humano precisa, especialmente o político que deseja realizar a ação concreta e completa, que harmonize as exigências do espírito. Mas para realizar esta prática quase ascética, é necessário que ele atravesse a permanência da perda como o soldado que sabe que perderá todas as batalhas, ainda que ganhe a guerra. Porque o homem que vive segundo as regras do espírito sabe que a abertura a uma justiça oposta à justiça da sociedade, o levará a uma capacidade de distinguir entre o Bem e o Mal a qual, infelizmente, poucos possuem. No entanto, esta capacidade é justamente a mensagem anunciada à humanidade pelo Cristianismo, uma mensagem que, como podemos perceber, poucos se deram ao trabalho de entender na sua incerteza milagrosa. A questão está na escolha que esta pessoa faz ao perceber que a vida política e a vida do espírito estão conectadas, direcionadas para uma virtude que deveria ser concretizada em ações que teriam, como meta, o bem comum da sociedade e a preservação da individualidade. Ao mesmo tempo, é uma escolha que se apresenta como uma cruz – porque o político sabe que terá de lidar com o poder, a tal da dama de pedra que se encontra dentro da sua alma e o levará aos territórios fascinantes do vício. A pedra da alma é de uma dureza tal que, se não for tratada com aspereza, nos joga na vala da morte. Para isso, temos de ter a perfeita noção de que, para o político, o homem é o maior inimigo de si mesmo, pois o poder o cerca sempre e com mil e um disfarces, seja na máscara da bela dama, nos prazeres fáceis ou, então, nas ideias que prometem o paraíso na Terra.
As Rime Petrosi ensinam ao homem que deseja se dedicar à política que não se pode ter perdão quando nos deparamos com o Mal, senão deixaremos nos dominar por ele, como se fosse um novo mestre. Parece uma atitude pouco cristã, mas não podemos esquecer que, antes do perdão, vem a justiça – e esta, muitas vezes, acontece somente por meio da força. Contudo, para ter essa força, é necessário saber comandar – e comandar é uma das variações do poder. E o político não vive para isso – ele vive para a verdadeira constituição que se encontra não só na sua alma, mas além deste mundo, fora deste tempo, sempre em busca de uma justiça que possa harmonizar tanto a virtude correta como os excessos que fazem parte de nossa natureza humana – excessos que não hesitam em nos levar para a desgraça.
3.
Ao polir as asperezas da pedra, descobre-se uma nova pedra, a mais importante de todas: a justiça. Os poemas duros e penetrantes de Dante Alighieri nos levaram à seguinte pergunta: Se descobrirmos a justiça dentro dos confrontos que nascem na nossa alma – e não fora dela – como podemos aceitá-la, a não ser realizando-a no mundo exterior, na sociedade onde vivemos? E assim temos uma segunda pergunta, que tentaremos responder nas páginas seguintes, por ser de especial importância na definição de uma verdadeira política: O político deve se espelhar em qual justiça para finalmente aplicá-la: a da sua alma, a da sociedade ou além delas?
É necessário dizer que este conflito domina as reflexões sobre a justiça, a política e, especialmente, o direito desde o início dos tempos. Estas três vertentes da atividade humana implicam sempre nas relações entre o indivíduo e a sociedade – e o grande erro dos acadêmicos foi privilegiar ora um lado, ora outro lado, quando ambos estão claramente envolvidos (para não dizer, apaixonados) nos aspectos centrais dos problemas que surgem dessas três áreas. Contudo, fica muito difícil afirmar uma definição precisa do que seria a justiça, num momento em que se confunde que ela só funciona com a sociedade, esquecendo-se do indivíduo – quando essa mesma justiça só pode existir na aplicação para os bens de uma determinada parcela da sociedade. Por isso, ao escutar as palavras “justiça social”, por exemplo, precisamos tomar cuidado, pois a justiça tem eficácia na sociedade, mas sempre observando os interesses do ser humano individual – e aqui que entra o direito.
Da mesma forma que a expressão “justiça social” é um slogan ideológico, o termo “direitos humanos” é mais do que um pleonasmo: é o início da perversão da justiça e do próprio direito, ao confundir os termos para, enfim, expandi-los em um círculo mais sombrio – o do poder.
Precisamos entender que não há direito para cachorro ou árvore. Somente o ser humano possui direito, uma vez que para se ter um direito é preciso ter a noção do que seria a justiça. Mas o que seria essa noção exata? Este é um dos enigmas que perturbam os mais diferentes filósofos. A justiça é uma medida exata, mas invisível, como bem descobriu Sólon, porque se encontra na alma e, graças à temperança que existe em cada um de nós, ela pode ser expandida para os nossos semelhantes. Todos nós sabemos o que é justiça porque temos uma intuição do que ela seria, e esta intuição origina-se nada mais, nada menos da razão do espírito, que é a consciência da abertura amorosa da alma frente à ordem transcendente e, o mais importante, ao mistério da existência. A intenção dos pensadores neo-kantianos, como Hans Kelsen e até mesmo o nosso Miguel Reale (que sabe da força do poder sintetizador do espírito), é de tentar capturar, em conceitos meramente humanos, algo que só pode ter sido um dom, nunca algo criado pelo próprio homem. Portanto, a medida invisível de Sólon só se torna visível de duas maneiras: depois que o “julgamento do tempo” confirmou, de forma trágica, que a justiça dos homens é de natureza falha e inconstante, e depois que o ser humano tem completa consciência que a verdadeira justiça só é percebida no fim de uma vida.
É o que acontece com o velho Céfalo em A República, de Platão, o personagem que dá origem à discussão no diálogo sobre o que seria a justiça. Ele está no fim de sua existência na Terra e certos assuntos com os quais nunca se preocupou durante a juventude e a maturidade começam a incomodá-lo:
“Tu bem sabes, Sócrates, que, depois que uma pessoa se aproxima daquela fase em que pensa que vai morrer, lhe acometem o temor e a preocupação por questões que antes não lhe vinham à mente. Com efeito, as histórias que se contam relativamente ao Hades, de que se têm de expiar lá as injustiças aqui cometidas, histórias essas de que até então zombava, abalam agora a sua alma, com receio de que sejam verdadeiras. E essa pessoa – ou devido à debilidade da velhice, ou porque avista mais claramente as coisas do além, como quem está mais perto delas –, seja qual for a verdade, enche-se de desconfianças e temores, e começa a fazer os seus cálculos e a examinar se cometeu alguma injustiça para com alguém. Portanto, aquele que encontrar na sua vida muitas injustiças atemoriza-se, quer despertando muitas vezes no meio do sono, como as crianças, quer vivendo na expectativa da desgraça. Porém aquele que não tem consciência de ter cometido qualquer injustiça, esse tem sempre junto de si uma doce esperança, bondosa alma de velhice, como diz Píndaro”.
O enigma da justiça está intimamente conectado com a permanência da perda. Céfalo é o homem que, ao vislumbrar a morte, se pergunta, por meio da medida invisível de sua alma, se esta se corrompeu durante a sua passagem pela Terra. Reparem: ninguém definiu o que seria a justiça, mas todos sabem o que ela é, o que ela não é – pois é a razão do espírito atacando no seu modo mais profundo e imediato. Por isso, Platão iniciará a grande pergunta da República, que não é sobre o que seria a justiça, mas sim se vale a pena ser justo em um mundo onde impera somente o seu contrário. Esta é a razão do surgimento deste tema na discussão de Trasímaco, sofista desprezível, mas que tem sua importância porque ele faz a primeira (e a mais séria) relação entre justiça e política ao dar a definição da primeira: “Afirmo que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte”.
A medida invisível de Sólon – a mesma medida que guia os passos de Sócrates, Platão e Aristóteles – se transforma no comando de um único homem – aquele que detém o poder. Tanto a política e a justiça atuam para o bem comum da sociedade, mas a primeira tem, como um de seus polos, o poder que um homem tem para agir ou interferir na vida do seu semelhante, e no outro polo, do qual a segunda também faz parte, a distribuição proporcional dos bens de cada um em relação ao todo.
É na parte da proporção que entra o direito, para regular justamente a igualdade de força que surge do poder. Se há algo que os atuais políticos nunca perceberam, ao pregar a igualdade e os direitos de todos sob uma mesma lei, é que o poder não se alimenta da divisão proporcional que cada um tem direito a receber, mas sim da suposta igualdade que cada um imagina em ter. O poder precisa da ilusão da igualdade para que esta seja apenas a sua própria igualdade, a ser realizada em uma artimanha muito sutil de roubo e coerção, usando das leis que supostamente deveriam reger a justiça e o direito.
Dessa forma, não podemos jamais misturar a lei com a justiça e vice-versa, e muito menos o direito com a lei, como muitos fazem com frequência. Esta confusão é um dos frutos da idolatria da igualdade e um dos efeitos que o poder provoca na mente das pessoas. A justiça e a política convergem para um mesmo fim – o bem comum da sociedade –, mas o direito é o meio que regula o poder para não deixá-lo invadir o território da medida invisível que ainda se mantém cravado nas nossas almas.
O ponto central entre justiça, política e direito é o da proporção. Qual o fim do direito? A justiça não é uma criação humana, mas o direito é uma atividade humana, portanto tem uma finalidade em sua ação, seja a curto ou a longo prazo. Mas, para o homem agir, ele tem de descobrir o que lhe foi dado – logo, o direito está dentro da própria justiça, ou melhor, nas relações das coisas que esperam pela decisão justa. Assim, o direito é um fato da natureza e o mesmo pode-se dizer de seu algoz, o poder. A justiça serve como meio termo, equilibrando, com a ajuda da temperança humana, o extremo dos dois opostos. Esta foi a mesma conclusão a que chegou Aristóteles, articulado a níveis insuspeitados: o fim do direito é a justiça e está é, como complementou séculos depois Santo Tomás de Aquino, a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu.
Claro que faltou um detalhe: o próprio homem. É aqui que Dante Alighieri nos ajuda, com uma definição de direito tirada de seu livro O Convívio e que até Miguel Reale, em suas Lições Preliminares de Direito, usou para as bases de sua “Teoria Tridimensional do Direito” – Jus est realis ac personalis hominis ad hominem proportio, quae servata servat societatem; corrupta, corrumpit (Em tradução aproximada: “O Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a”).
Temos de analisar esta sentença, parte por parte, para estabelecermos alguns princípios. “O direito é uma proporção real e pessoal” – aparentemente, esta afirmação só confirmaria o que acabamos de dizer nestas páginas: que o direito trabalha com as proporções e não com a igualdade, pois esta é uma figura de linguagem, a qual não há como ser praticada na vida cotidiana, uma vez que a desigualdade é o comum e não o contrário. No entanto, reparem que ele não fala de uma proporção qualquer – é uma proporção real e, depois, pessoal. Atentemos para a proporção real – “Jus est realis ac personalis hominis ad hominem proportio”. A proporção é tanto real como de homem para homem. Logo, o homem também está dentro desta proporção real. Afinal de contas, real vem de res, coisa em latim. A coisa pode ser algo da natureza ou um produto da natureza – e o homem está incluído nesta natureza, que é justamente a realidade onde vivemos.
Assim, fica claro que, quando os oposicionistas do Direito Natural querem criticá-lo, afirmando que não podemos ser escravos da natureza e temos de dominá-la, eles talvez estejam falando das árvores e dos rios e dos passarinhos, mas na verdade a “natureza em questão” é a própria realidade – enfim, as coisas que nos rodeiam. Não há como controlar a realidade porque ela é, na verdade, quem nos condiciona em todas as nossas ações. O ser humano é muito mais passivo frente ao poder do real do que propriamente alguém ativo. Dá-se o poder para ele escolher, mas isto não é a mesma coisa que ter o poder de interferir no destino humano. É sobre este tipo de poder – de onde se origina a política – que o direito vem para dividi-lo de forma proporcional.
A seguir, vamos à segunda parte: “de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a”. O direito não é apenas um todo abstrato – como é o caso da sociedade. Ele se torna real à medida que passa de homem para homem, preservando a individualidade de ambos. A proporção vem da relação entre as coisas e entre os próprios homens. Qualquer jurista que reflita seriamente sobre essa sentença e acredita que o Direito Natural é algo estático, deveria aprender com ela que estamos sendo apresentados a uma visão de direito muito mais dinâmica. Existem mudanças no direito porque a relação entre as coisas e o homem pode mudar conforme o passar dos tempos, mas o que não muda são as coisas e o homem. Eric Voegelin chamava isso de “estrutura da realidade”, uma experiência intensamente objetiva e que não tinha nada a ver com a subjetividade humana. Se os princípios da “estrutura da realidade” são alterados de forma negativa, a estrutura não se modifica na sua raiz, apesar de sofrer perversões. É o que Dante quis dizer ao complementar que a proporção do direito deve ser conservada entre os homens e as coisas, uma vez que “conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a”. O direito só pode existir se o homem respeitar a noção da razão humana como única, em constante contato com as coisas que o circundam e que ele (isto é, o direito) é apenas o início de um longo processo, no qual o seu fim é a justiça.
Se o direito é o início e a justiça é o fim, qual seria então o meio do caminho? É aqui que entram as leis – um dos instrumentos mais úteis e, ao mesmo tempo, mais perigosos para o controle dos vícios humanos. Na verdade, a lei deveria ser vista como um fio que liga a ordem transcendente e a ordem humana. Os gregos simbolizaram este conflito com os termos dike para a justiça dos deuses e nomos para a lei escrita que determina a justiça dos homens. Algo muito similar aconteceu na época em que Israel havia se tornado um império, com a predominância do Torá como a lei maior dos judeus. Entretanto, o conflito só ficaria mais bem articulado na Grécia, especialmente na vida de Sólon e nas tragédias de Ésquilo e Sófocles.
Os estadistas gregos eram obrigados a irem, muitas vezes, contra o nomos para cumprir a lei maior, a dike – e nem sempre eram compreendidos em suas escolhas. Mas, pelo menos, no embate íntimo de suas almas, eles também sabiam, por meio da persuasão, onde estava a medida invisível que Sólon tanto defendia em seus escritos e que, geralmente, conseguia transmiti-los aos seus companheiros. E, mesmo no caso de um Sócrates, que era guiado por uma nova ordem que poucos queriam aprender sobre ela, mas sabiam de sua importância, ele preferiu respeitar o nomos de Atenas, até porque a dike da qual era seguidor dava a entender que sua morte seria uma futura lição para seus alunos. Atualmente, perdemos completamente qualquer noção de dike, exceto como uma curiosidade histórica. Temos apenas o nomos, que deseja ocupar a função da dike. Quando a letra morta preenche o papel do espírito vivo, é óbvio que a aceitação da permanência da perda sai enfraquecida e dá lugar ao rebaixamento da nobreza humana. Como um deus pagão, a lei dos homens substitui a justiça, controla o direito e, por fim, despedaça a pedra da alma, transformando-a em pequenos estilhaços de nada.
4.
Esta é a situação atual do direito e da justiça – especialmente no Brasil. Aqui, o nomos é a justiça, o direito e o fator que apontam a direção do poder. Não precisamos dizer que, em primeiro lugar, isto é uma alucinação e, em segundo lugar, que é a base para uma futura tirania – a tirania da sociedade.
O fato é que tal estado de coisas é o resultado de uma lenta preparação, que, se quisermos ir lá longe, começa nos tempos em que Moisés recebeu de Deus as tábuas dos Dez Mandamentos e, depois, as leis que formam a Torá. Contudo, precisamos saber o que é uma lei e qual é a sua função na vida de cada um de nós. Uma lei não é um dom divino; ao contrário do que pensam muitos, as leis divinas não eram imposições de um Deus cruel e tirânico aos seres humanos. Eram simplesmente a descrição de uma nova ordem de realidade que se abria na alma do homem. O encontro entre Moisés e a sarça ardente e, depois, a entrega das Tábuas, são momentos que iniciam na história da Humanidade: uma série de “saltos no ser” (leaps in being) em que o homem e Deus buscam uma ordem que possa harmonizar sua tortuosa busca espiritual. As leis divinas não são imposições; elas já foram aceitas pelo ser humano por meio da revelação divina.
Ainda assim, temos as leis humanas que, de alguma forma, precisam estar em harmonia com as divinas. Ou seja, qualquer coisa que o homem faça deve estar de acordo com Deus. É isto que Platão quis dizer em seu último diálogo, As Leis, ao afirmar que “a Divindade é a medida de todas as coisas”, sentença oposta à do sofista Protágoras – “o homem é a medida de todas as coisas”. As leis são os fios que unem o humano ao divino, com o primeiro sempre respeitando o último, e todos os membros de todas as sociedades devem aceitar esta regra (uma afirmação que, por si só, é uma lei, mesmo que não seja expressa ou escrita). Isto nos leva aos dois problemas principais que surgem quando tocamos no assunto da lei: o problema de como ela se expressa para o homem e o problema da sua finalidade.
Uma lei não pode ser transmitida em silêncio. Ela pode ser tácita, intrínseca a certos costumes de uma sociedade, mas precisa de uma voz que a torne viva. Esta voz se articula em fala, em palavras traduzidas em sons. Portanto, é tudo uma questão de linguagem – um produto que sai das entranhas da “estrutura da realidade” e que consiste, como bem lembrou Voegelin, na proporção entre homem e Deus, mundo e sociedade.
Se a expressão, a comunicação e a transmissão de uma lei dependem da linguagem, temos de nos perguntar de onde ela surge. Seu início se encontra nos costumes, e estes são cristalizados nos símbolos dos rituais. Por que rituais e para quem são esses rituais? Ora, são para Alguém além do próprio homem – claramente, alguma divindade ou Deus. Assim, a questão das leis é também uma questão de linguagem – a qual, por sua vez, é uma questão religiosa. Neste ponto, Platão acertou como poucos: a lei é a substância que permite que o espírito se movimente entre os homens, mantendo-os vivos.
Temos agora a sua finalidade: para quê serve uma lei? Muitos afirmam que ela serve para manter a paz. Discordamos desse ponto de vista ao afirmar que serve para constituir uma espécie de trégua. A vida é uma constante luta, e a paz só virá com um único fato: a morte. A paz acabaria com a tensão do metaxo: o campo divino poderia prevalecer sobre o campo humano e vice-versa; o resultado seria a “metástase da fé” (metastatic faith), tão bem explicada por Voegelin em sua análise das primeiras sementes do gnosticismo – os escritos de Isaías. Porém, a trégua é o espaço de tempo entre uma guerra e outra, já que a luta é o estado natural do ser humano. As leis são como rédeas que forçam a batalha a parar por um tempo, mas não para sempre. Os cavalos ora sobem, ora descem, e nunca param de se movimentar.
Logo, a função de uma lei é essencialmente pedagógica: é ensinar aos outros como se deve preservar o espírito para os combates futuros. Entretanto, esta é a lei que respeita a sua expressão na linguagem como algo que faz parte de uma realidade que ainda não se desligou de Deus. Ela não deixa de ser humana, mas também sabe que, se pender para o lado mundano, pode ser vítima do pai da mentira. Filha da linguagem, a lei permeia todos os campos da vida social, não como mera vidente, mas sim como observadora que, infringida, estipula uma punição pela quebra da ligação do homem com Deus, a medida de todas as coisas.
Este é o verdadeiro sentido do termo “religião”: o homem se ligou a Deus não pelo dom da adivinhação, mas pelo senso de tempo que o ritual e os costumes da lei impunham, em que o importante é o presente e não o futuro, pois o passado serve apenas para o exercício da memória como descoberta de um sentido (logos) a se desdobrar em experiências concretas. Sem o tempo, Deus e homem não teriam a ligação tão íntima que, apesar da desintegração do mundo moderno, ainda possuem. O “religar” (religare, em latim) é o respeito que o ser humano tem pelas leis que dão sentido à sua existência, que não prejudicam o seu próximo e que podem ser controladas – pois o elemento principal, o tempo, está no embate do metaxo, equilibrando o campo divino e o mundano. A lei é natural não porque seja algo exclusivamente metafísico, mas sim devido à concordância entre a medida invisível do homem e a medida total de Deus.
É dessa interação que nasce a proporção do direito. Frank Van Dun explica isso melhor em seu texto “Natural Law, Liberalism and Christianity”:
“Os seres humanos têm direitos naturais. O direito natural, assim como a lei natural, não é uma qualidade ou coisa metafísica ou teológica. O direito de uma pessoa é aquilo que está sob seu controle. Um direito natural em sentido estrito é aquilo que está naturalmente sob o controle de uma pessoa, de seu corpo com as faculdades do movimento, do sentimento, do pensamento e do discurso. Por extensão, um direito natural é aquilo que o sujeito traz a seu controle sem violar qualquer direito natural de qualquer outro sujeito.
Contudo, nem todos os direitos são direitos naturais. Os fortes podem controlar os fracos e submetê-los a seu governo, e um ladrão ou assaltante pode roubar e controlar aquilo que está sob o direito natural de outra pessoa. Esses direitos podem entrar em conflito com os direitos naturais.
Assim, a questão aparece: quais desses direitos conflitantes são respeitáveis ou normativamente significativos? A resposta de que os direitos naturais são respeitáveis per se e os direitos estabelecidos são respeitáveis apenas se estão instaurados de pleno acordo com os direitos naturais é ponto comum no pensamento liberal clássico. A mesma resposta se pressupõe também na ética cristã do direito natural”.
A lei aparece depois do surgimento desses conflitos na realidade cotidiana, para educar e reger os cidadãos em caso de ocorrências futuras. Podemos vê-la como uma forma do homem interpretar o mundo onde vive e controlá-lo, desde que respeite suas características. O grande dilema começa com a Revolução Francesa, em que, inspirados pelos iluministas – e, sem dúvida, Descartes e Kant –, os legisladores perderam a noção da medida total, esqueceram-se da própria medida invisível e criaram um novo método de medição, chamado “igualdade”. Essa ideia pode parecer muito bonita para muitos, mas é uma das mais perversas que foram inventadas pela Humanidade. Como a norma transcendente de Kant – que não conhecemos, mas de cuja existência temos ciência a priori –, a igualdade é uma distorção completa do real, que se organiza por meio de um princípio evidente por si mesmo: o de hierarquia.
Todos nós temos a intuição do que seja verdadeiro e falso e, só por isso, sabemos que o falso é inferior ao verdadeiro. Como? Ora, nós podemos brincar de Descartes com o método da dúvida, mas não podemos nos esquecer de que, mesmo duvidando do nosso processo de conhecimento, continuamos a viver, comer, dormir, respirar e falar – enfim, as atividades básicas de um ser humano. Quem disser que nada disso é verdade, então é melhor ir procurar um hospital psiquiátrico com urgência. A noção de verdade é algo muito mais certo do que a noção do erro – e isto é suficiente para determinar a hierarquia das coisas que nos rodeiam.
A igualdade, se levada à risca, coloca a verdade e a mentira no mesmo nível e, como consequência mais grave, relativiza todas as atividades humanas, arrancando de suas intenções o sentido do que seria duradouro. E o que seria este algo “duradouro”? Logicamente, a justiça – que dá a cada um o que é seu. É, portanto, na proporção dos bens e das coisas que o homem pode discernir o que é certo e o que é errado, o que é superior e o que é inferior. Este é o xis da questão quando falamos das filosofias do direito, influenciadas pelo iluminismo ou pela razão sistemática de Kant, como são os casos de Hans Kelsen, Gustav Radbruch, Pontes de Miranda e mesmo Miguel Reale – Qual o fim do direito segundo estas doutrinas?
Segundo Kelsen, o direito fica aprisionado em uma teoria ideal, em que a norma jurídica é o eixo de um ordenamento jurídico que só existe conforme o raciocínio da validade formal, um processo claramente lógico e racionalista; já para Radbruch, o direito é mutável conforme a cultura de cada época e de cada lugar, e as leis devem ser um reflexo desta inconstância; Pontes de Miranda, positivista ao extremo, não hesita afirmar que os direitos subjetivos de cada indivíduo só existem conforme a incidência das normas jurídicas, e nada há fora delas; e Miguel Reale, com sua famosa “Teoria Tridimensional do Direito”, em que o fato, os valores de cada sociedade e a norma jurídica estariam em um conflito permanente para a experiência concreta da prática judicial no cotidiano. Sem dúvida, Reale faz uma síntese brilhante de todas essas tendências – mas não dá em hipótese alguma uma unidade ao direito, que se confunde em três tipos de finalidade (a da norma, a do fato e a do valor), algo impraticável em qualquer tipo de atividade humana.
A ausência de uma finalidade é um claro sintoma do que acontece quando não há proporções, pois não há mais discernimento de escolha entre o que é bom e o que é mau. Isto transforma o direito em algo inferior, em uma mera arma de propaganda ideológica, como é o caso do Direito Alternativo, que leva a níveis de alucinação o relativismo das normas, tudo em nome desta ideia a priori chamada igualdade.
Em princípio, não há nada contra a igualdade – além do fato de que ela simplesmente não existe. É mais um instrumento para a expansão do poder, que precisa dela para manter sua força e, o mais importante, preservar sua natureza secreta. Voltemos à definição de Dante: “O Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a”. A proporção de homem para homem deve ser conservada para preservar a sociedade; se o homem esquecer da hierarquia do Bem e da Verdade, ele se corromperá e a sociedade passará pelo mesmo processo. Quando alguém declama a favor da “justiça social”, está, na verdade, fazendo apologia da tirania da sociedade porque pensa apenas nesta última e se esquece da interação que há entre os dois polos.
Não à tôa que tudo isso começou por volta de 1789, na Revolução Francesa que daria origem ao Terror de Robespierre, com o artigo primeiro da “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”: “Artigo primeiro. Os homens nascem e morrem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem ser originadas além do interesse comum”.
O mesmo espírito continua cento e sessenta anos depois, com a famosa “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, feita pela ONU em 1948, como resposta das atrocidades da Segunda Guerra Mundial: “Artigo primeiro. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir entre os seus semelhantes com espírito de fraternidade”.
São palavras bonitas, mas que desaparecem completamente com a proporção que Dante dera como algo essencial no direito. Nenhum ser humano nasce livre porque a liberdade se conquista, não é algo dado; como já dizia Aristóteles, existem os que têm alma de escravo e os que têm alma de líder; a razão e a consciência são aperfeiçoadas conforme o passar da vida e elas só adquirem conhecimento de si mesmas ao terem noção da hierarquia entre o que é real e o que é ilusão. Uma mesma pessoa que tem uma casinha nunca poderá ter o castelo de outra pessoa, porque é direito desta última ficar com seu castelo e é direito daquela continuar com a casinha, assim como o sujeito do castelo jamais terá direito sobre a casinha do fulano. Esta é a famosa proporção que a igualdade pretende abolir da seguinte forma: tanto o castelo como a casinha ficam com o sujeito que já tinha a casinha, e o fulano do castelo fica sem nada. O único resultado é claro e simples: guerra.
Um outro nome para guerra é revolução, e ambas são fenômenos em que, como bem observou Eugen Rosenstock-Huessy, a linguagem se fragmenta a ponto de ser impossível perceber onde encontrá-la. A diferença entre a guerra e a revolução é que, na primeira, “não se escuta o que o outro diz”, enquanto na segunda “a gritaria da juventude é inarticulada”. Não é preciso ser um gênio para ver que a revolução é o germe da guerra e que ela começa justamente com a ilusão da igualdade, articulada juridicamente na casca da lei. E é difícil não sentir um calafrio ao ler o caput do artigo quinto da nossa Constituição: “Art. 5°: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes ao País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”.
Quando todos os seres humanos estão sendo regidos pela lei, devemos levar em conta que essa mesma lei não é mais a que une o divino com o humano, mas a que se preocupa somente com o humano, porque foi criada pelos legisladores como uma forma de prever o futuro na realidade, destruindo qualquer espécie de ligação do homem com o desdobramento de suas experiências no tempo – o fundamento básico da vida religiosa. A lei é uma nova espécie de musa, que adorna as coroas de um novo deus, a igualdade. O que servia para preservar o espírito do fascínio do poder, agora é o alimento deste último – e, pior, poucos sabem deste perigo. A Constituição Brasileira, na verdade, tem suas raízes e seus paralelos na deformação da palavra de Deus dada a Moisés, ao se tornar a Torá cristalizada, como explica Eric Voegelin em Israel and Revelation, ao provar que a existência de um povo sob os auspícios divinos foi pervertida no presente sob o comando da Torá:
“O mito da Palavra [pervertida na Torá] teve um sucesso muito maior do que o mito de Moisés [como intermediário da vontade de Deus]. Desde as suas origens no Deuteronômio, invadiu não somente o Pentateuco, mas todo o corpo da literatura eventualmente incluída no cânone rabínico; e impôs sua forma, através da canonização, também na literatura cristã. Enquanto não destruiu a vida do espírito, inevitavelmente provou-se como um obstáculo ao seu livre desdobramento. Pois quando as circunstâncias históricas, sob as quais a palavra de Deus é revelada ao homem, estão ligadas com a autoridade da palavra em si mesma, a moratória das circunstâncias do mundo imanente, da qual falamos anteriormente, se tornara algo como um íncubo sagrado. Elaborações salutares, que significam que irão penetrar a ordem social com o espírito do Decálogo ‘essencial’ sob as mais variáveis condições políticas e econômicas, tendem a se tornar fósseis canônicos e retêm reformas futuras. As elaborações míticas da origem do mundo na criatividade divina, como encontramos no Gênesis, são entendidas literalmente como informações da física do universo e dão ensejo a conflitos formidáveis “entre ciência e religião”. E o mito da Palavra estende-se até mesmo a traduções, para que a correção filológica de algum antigo erro do tradutor será condenada por fundamentalistas como se estivesse bloqueando a “palavra de Deus”. O mito da Palavra, finalmente, tem uma carreira prodigiosa nos séculos modernos. A exaustão da ordem espiritual da Baixa Idade Média levou a um movimento reformador que, numa maneira que relembra estranhamente a reforma deuteronômica do século VII a. C., assinalou o Novo Testamento como a nova Torá do verdadeiro Cristianismo. E a veemente reafirmação do mito na esfera cristã foi seguida pela expansão de sua forma nos vários movimentos gnósticos, como a criação comteana de uma Torá para uma ‘religião da humanidade’, ou a formação de uma Torá marxista no movimento comunista”.
Não há vida na sociedade brasileira fora da lei – e, nesse sentido, seguimos fielmente os princípios de um comunismo que, no fim, é uma espécie de deformação do Cristianismo. O melhor exemplo está no nosso Código Penal, logo no artigo primeiro: “Art 1°. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
Parece se tratar de um elemento de controle – como pensava Montesquieu –, mas aqui a lei perde o seu caráter pedagógico e vira um instrumento de coerção, em que é ela quem define o que é o crime e não a realidade que foi afetada pela violação cometida. Contudo, isso não é nada perto do artigo terceiro da Lei de Introdução do Código Civil: “Art. 3°. Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.
Agora a lei invade não só o território da profetismo e da estrutura do real, como também da consciência humana. Sim, todos são iguais perante a lei, mas quem controla os seus desmandos neste mundo paralelo e autossuficiente? A desculpa cairia sobre o Estado, como geralmente argumentam os liberais, mas ele é apenas um instrumento simbólico para que o poder ganhe mais força. E um dos primeiros sintomas de que o esse poder invadiu a alma do ser humano está na degradação da linguagem, veículo fundamental para a comunicação da lei. Entretanto, quando esse veículo perde o sentido de suas palavras e é apenas uma lei (ou seja, um mero comando), inicia-se uma nova tensão entre articular uma nova linguagem e restaurar a antiga. E aqui temos os primeiros germes de uma revolução e, depois, da guerra, como mostra Rosenstock-Huessy em A Origem da Linguagem:
“Uma revolução começa inarticulada. Na guerra, cada lado tem sua língua. Duas línguas existentes entram em choque. Na revolução, a língua revolucionária ainda não existe; essa é a razão por que os revolucionários são chamados “jovens”. Sua linguagem deve amadurecer no processo da revolução. Podemos até considerar uma revolução o nascimento de uma nova linguagem (...). Assim, podemos estudar a revolução em comparação com a guerra. Numa revolução, a linguagem velha é rejeitada por um novo grito, que luta para se tornar articulado. Os revolucionários fazem imenso alarido, mas noventa por cento de seus “ôôôôs” evaporar-se-ão, e a linguagem final falada pela burguesia ou pelo proletariado estará, trinta anos depois, livre dos berros do início. Mas, durante a revolução, o sofrimento provém do fato mesmo de a revolução ser ainda inarticulada. O conflito dá-se entre uma linguagem superarticulada mas morta e uma vida nova articulada. A guerra é o conflito entre o aqui e o agora, entre a linguagem dos amigos e dos inimigos; a revolução é o conflito entre o velho e o novo, entre a linguagem de ontem e a da amanhã, com os grupos da linguagem do amanhã no ataque”.
Guardem bem esta frase: “O conflito dá-se entre uma linguagem superarticulada mas morta e uma vida nova articulada”. A lei já atingiu seu ponto de saturação – e as lacunas serão suas filhas até que o próprio sistema jurídico, sobre o qual estão apoiadas, desabará por completo. A doutrina do Direito Alternativo é o Caim que cada juiz, cada promotor e cada advogado estão criando para implantarem a nova linguagem do direito e da justiça, inspirada no ideal da igualdade entre os homens. Mas quem disse que eles evitarão a longevidade do poder – o polo que luta constantemente com o espírito para agrilhoar o ser humano nas correntes da história? Qualquer um que praticar a verdadeira política deve saber que a lei dos nossos tempos privilegia a igualdade porque não interessa ao poder que cada ser humano saiba da sua peculiaridade. Só existe a vida sob a lei – e a lei vive exclusivamente na alma da sociedade. Quanto à alma do indivíduo, isto é um assunto esquecido porque, afinal de contas, o poder já a dominou, impondo a sua estranha e muito relativa “justiça”. Será que vivemos nos tempos em que Trasímaco ganhou de Sócrates e que, assim, a pedra da alma ressurgirá da maneira mais inesperada?
[Continua no próximo mês]