[Leia a quarta parte do livro]
4.
Max Weber escreveu a palestra A Política Como Vocação no final do ano de 1919, portanto sentindo os efeitos da Primeira Guerra Mundial e de uma crise política surgida no estado alemão. Era o inverno revolucionário, em que os socialistas alemães preparavam as bases democráticas que dariam origem à República de Weimar, a mesma que permitiu, anos depois, a entrada de um certo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães no Reichstag. Weber, um conservador na política, claramente expressa seu desgosto da situação política logo no início da apresentação: “A conferência que, de acordo com os vossos desejos, vou hoje pronunciar irá, por diversas razões, desiludi-los”.
A desilusão é o leitmotiv do texto. Weber procura mostrar, aos estudantes para quem fala, o que deveria ser o político e não o que ele é. Em um impulso parecido com o de Platão, Weber quer mudar o impasse no qual seu espírito – consumido por questões religiosas – e sua profissão – um sociólogo com vícios deterministas – o colocou para análises teoréticas que deveriam ter algum nexo com a realidade; mas, infelizmente, ele não conseguiu superar esse dilema. Muito timidamente, deseja criar um novo tipo de político, baseado numa palavra mágica chamada “responsabilidade”. Contudo, os valores perenes se confrontam com os valores da sociedade e Weber tem um medo terrível de renegar estes últimos, porque senão toda a vocação como cientista social estaria em risco. Por sua vez, reconhece que a vida científica é um dos passos para uma vida plena, na qual a política seria obviamente um dos seus fins mais dignos – e também um dos mais perigosos.
A falha na análise weberiana do político está na aceitação de que o próprio cientista faz dos seus princípios. Se na nossa investigação estipulamos que o político fica numa área cinzenta entre Poder e espírito, para Weber o político é simplesmente um funcionário do Poder, simbolizado pelo Estado que, por sua vez, se funda na violência – isto é, no comando e na força. A palavra “funcionário” não é aleatória e terá sua ramificação mais sofisticada na expressão “político profissional”. Não há vida política fora do Estado – o que claramente é uma falácia assustadora, ainda mais quando este Estado é autossuficiente e destituído de quaisquer ligações simbólicas com a divindade, como ocorre, num exemplo inverso, com a polis platônica em As Leis.
Além de insistir de que a vida política somente existe dentro do âmbito estatal, é também no Estado que a violência será considerada legítima, o que significa um retorno à sentença de Trasímaco em relação à justiça, pois as leis seriam criadas por ninguém menos que funcionários públicos. Assim, o que era para ser uma questão de direito se torna uma questão de política – e toda a lei vira uma camuflagem para sua verdadeira natureza: ser, por si só, uma decisão ideológica, em que o consenso é conquistado (e mantido) através da coerção.
Mas Weber sequer toca nessas consequências. Ele foge pela tangente, ao iniciar sua reflexão sobre o que seria a “vocação” do político. O termo “vocação” (beruf) é essencial para compreender a própria obra de Weber, que se constitui numa questão importantíssima na história das ideias e que até hoje poucos resolveram mexer nesta ferida: a de como os homens de ciência viam e abordavam, por mais imparciais que tentassem ser, o mistério da revelação religiosa na história e seu impacto na vida da sociedade.
Ninguém mais espelhou melhor esta contradição do que Max Weber. Eric Voegelin, que sabia distinguir o joio do trigo quando o assunto era filosofia política, sempre se referiu a Weber como “um pensador digno do mais alto respeito, situado entre o fim de um estágio e um novo começo” – começo que ainda não foi captado corretamente para o que o próprio Voegelin chamava de “ciência da ordem”:
“Uma ciência isenta de valores significava para Weber a exploração das causas e feitos, a construção de tipos ideais que permitissem distinguir as regularidades das instituições, assim como seus desvios, e, sobretudo, a construção de relações causais típicas. Tal ciência não estaria em condições de dizer a ninguém se ele deveria ser um liberal ou um socialista em matéria econômica, um constitucionalista democrático ou um revolucionário marxista, mas poderia indicar-lhe quais seriam as consequências se tentasse aplicar os valores de sua preferência à prática política. De um lado estavam os ‘valores’ da ordem política, insuscetíveis de avaliação crítica; do outro lado estava uma ciência da estrutura da realidade social que podia ser usada como conhecimento técnico por um político. Com esse pragmatismo, Weber agudizou a discussão em torno da ciência ‘isenta de valores’ e deslocou os debates para além das escaramuças metodológicas, focalizando novamente a ordem de pertinência. Ele queria a ciência porque queria clareza sobre o mundo do qual participava apaixonadamente; percorria assim, novamente, a estrada rumo à essência. A busca da verdade, no entanto, cessava ao nível da ação pragmática. No clima intelectual do debate metodológico, os ‘valores’ tinham que ser aceitos como inquestionáveis e a procura não podia avançar até a contemplação da ordem. Para Weber, a ratio da ciência se estendia não aos princípios, mas apenas à causalidade da ação.
Por isso, o novo sentido de pertinência teórica podia expressar-se apenas na criação das categorias de ‘responsabilidade’ e ‘demonismo’ na política. Weber reconheceu os valores pelo que eram, ou seja, ideias ordenadoras da ação política, mas atribui-lhes a condição de decisões ‘demoníacas’, insuscetíveis de argumentação racional. A ciência só poderia confrontar o demonismo na política alertando os políticos sobre as consequências de suas ações e despertando neles o senso de responsabilidade. Esta ‘ética da responsabilidade’ weberiana não deve ser negligenciada. Foi criada para mitigar o ardor revolucionário dos polemistas intelectuais políticos, especialmente depois de 1918; para ressaltar que os ideais não justificam nem os meios nem os resultados da ação, que ação envolve culpa e que a responsabilidade pelos efeitos políticos cabe exclusivamente ao homem que se transforma numa causa. Mas ainda, o diagnóstico “demoníaco” revela que não se podia derivar ‘valores’ inquestionáveis de fontes racionais de ordem, e que a política da época tinha-se transformado efetivamente num campo de desordem demoníaca. A rematada sutileza com que este aspecto do trabalho de Weber tem sido, e ainda é, ignorada por aqueles aos quais se dirige, constitui talvez a maior prova de sua importância”.
Weber viu a irracionalidade que atingia a política de seu tempo, mas quis encaixá-la em critérios racionais, supostamente científicos. Sua desilusão se deve à renúncia consciente de não querer assumir que poderiam existir outros “valores” envolvidos na situação – mais especificamente, os “valores” do espírito. Ao usar o termo “vocação” (beruf), próprio do vocabulário religioso (assim como “demoníaco”), ele aproxima o político, inadvertidamente, da posição de um messias:
“O que hoje nos interessa sobretudo (...) é o domínio produzido pela entrega dos submetidos ao “carisma” puramente pessoal do ‘caudilho’. Nele se funda, na sua expressão mais alta, a ideia de vocação. A entrega ao carisma do profeta, do caudilho na guerra, ou do grande demagogo na Ecclesia ou no parlamento, significa, com efeito, que essa figura é vista como a de alguém que leva dentro o ‘chamado’ para ser condutor de homens, os quais não lhe prestam obediência porque o mandam o costume ou uma norma legal, mas porque acreditam nele. E ele próprio, se não se trata de um mesquinho adventício, efêmero e presunçoso, ‘vive para a sua obra’. Mas é à sua pessoa e às suas qualidades que se entregam o discípulo, os seguidores ou o partido”.
Porém, um político que segue o seu “chamado” nunca está sozinho. Ele depende de outras pessoas para que seu trabalho seja bem sucedido – e aqui Weber faz uma dissecação dos subpolíticos que seguem o caudilho: o “profissional” e o “semiprofissional”. O primeiro é aquele que não quer governar por si próprio, como é o caso do caudilho carismático, mas que atua a serviço de chefes políticos; já o segundo tipo “são hoje, por exemplo, todos os delegados e dirigentes de associações políticas que, em geral, apenas desempenham essas atividades em caso de necessidade, sem viver principalmente delas e para elas, nem no plano material nem no espiritual”.
Atualmente, chamaríamos essas pessoas de “parasitas do Poder” – o que não deixa de guardar um fundo de verdade. De forma neutra, Weber comenta que, para eles, a política é a única maneira de se encontrar um sentido em suas vidas: “Quem vive para a política faz dela a sua vida num sentido íntimo; ou goza simplesmente com o exercício de poder que possui, ou alimenta o seu equilíbrio e tranquilidade com a consciência de ter dado um sentido à sua vida, pondo-a a serviço de algo. Neste sentido profundo, todo o homem sério que vive para algo, vive também desse algo”.
O problema é o “algo” para qual este sujeito trabalhou. Outra vez, o Poder apronta as suas armadilhas e até mesmo uma mente afiada como Max Weber caiu na sua rede. Pouco a pouco, a profissão da política se estrutura como uma empresa, na qual o caudilho é o chefe repleto de subalternos que se encontram em quase todos os níveis da vida social – nos jornais, nas escolas, no comércio – e que tentam praticar a ação concreta do Poder, sempre em busca de uma harmonia com as vontades do povo que os elegeu como seus representantes. Contudo, a “institucionalização” do Poder sob a máscara do Estado trouxe, ao mesmo tempo, as forças demoníacas que Weber tanto temia. O Estado não é mais a polis grega, conectado a uma ordem divina; é um mundo autossuficiente, o Leviatã composto de milhares de pessoas que, anestesiadas, não sabem que fazem parte de uma legião. O Bem para qual trabalham, e no qual querem dar um sentido às suas vidas, não é o bem comum da sociedade, respeitando o seu núcleo de indivíduos, mas o bem particular do Poder expansionista, que invade até mesmo a consciência de cada um, semelhantes ao simulacro de um deus. Todos estão inseridos nesse contexto e, para Weber, a única solução é encontrar uma ética que ponha nos eixos a responsabilidade de exercer tal comando:
“A consciência de ter uma influência sobre os homens, de participar sobre eles e, sobretudo, o sentimento de manejar os fios de acontecimentos históricos importantes, eleva o político profissional, mesmo o que ocupa posições formalmente modestas, acima do quotidiano. A questão que então se lhes apresenta é saber quais são as qualidades que lhes permitirão estar à altura desse poder (mesmo que, no caso concreto, seja limitado) e da responsabilidade pessoal que implica. Com isto entramos já no terreno da ética, pois é a esta que corresponde determinar como deverá ser um homem para ter direito a pôr a mão no leme da História.
Pode-se dizer que são três as qualidades decisivamente importantes para o político: paixão, sentido de responsabilidade e medida. Paixão no sentido de positividade, de entrega apaixonada a uma “causa”, ao deus ou ao demônio que a governa. Não no sentido dessa atitude interior que o meu malogrado amigo Georg Simmel costumava chamar “excitação estéril”, própria de um determinado tipo de intelectuais, sobretudo russos (claro que não de todos eles) e que representa agora também um grande papel entre nossos intelectuais, neste carnaval a que se dá, para o embelezar, o orgulhoso nome de ‘revolução’. Trata-se de um ‘romantismo do intelectualmente interessante’ que gira no vazio e se encontra totalmente desprovido de qualquer sentido de responsabilidade objetiva. Com efeito, nem tudo fica solucionado com a pura paixão, por muito sinceramente que ela seja sentida. A paixão não transforma um homem em político se não estiver a serviço de uma ‘causa’ e não faz da responsabilidade para com essa estrela que guia a ação. Para tal é necessária (e é esta a qualidade psicológica decisiva para o político) medida, a capacidade para deixar que a realidade atue sobre a pessoa sem por isso perder o domínio e a tranquilidade, ou seja, para manter a distância em relação aos homens e às coisas. O ‘não saber guardar distância’ é, para qualquer político, um dos pecados mortais; ‘sabê-lo’ é uma dessas qualidades cujo esquecimento condenará a nossa atual geração de intelectuais à impotência política. O problema reside precisamente em como conseguir que existam juntas, nas mesmas almas, a paixão ardente e a fria medida. A política faz-se com a cabeça e não com outras partes do corpo ou da alma. E, no entanto, a entrega a uma causa só pode nascer e alimentar-se da paixão para ser uma atitude autenticamente humana e não um frívolo jogo intelectual. Só o hábito da distância (em todos os sentidos da palavra) torna possível o enérgico domínio sobre a alma que caracteriza o político apaixonado e o distingue do simples diletante político, ‘esterilmente agitado’. A ‘força’ de uma ‘personalidade’ política reside, em primeiro lugar, na posse destas qualidades”.
O trecho é brilhante por mostrar que, apesar do seu impasse, Weber via a política da mesma forma que Platão e Aristóteles; sua descrição é semelhante à do spoudaios. Ao mesmo tempo, a divisão entre “ética da responsabilidade” e “ética da convicção” pode apresentar problemas e originar um discurso bifronte que destrói a noção de uma permanência da perda que torna a arte da política uma arte de fazer o possível, conforme as circunstâncias apresentadas. Neste ponto, Weber não foge da questão: assume-a com dignidade e sem nenhum medo afirma que o verdadeiro político deve aplicar tanto a “ética da responsabilidade” como a “ética da convicção”, em um todo indivisível, pois, na realidade, só existe uma única ética – a de encontrar o bem maior por meio das virtudes perenes.
Ainda assim, Weber complica o seu raciocínio ao continuar com seu método de “causa-e-efeito”. Para ele, a ação política tem, como meio decisivo, a violência – e a violência legítima só pode vir do Estado e ninguém mais. Como a ética e a violência são incompatíveis, a desilusão weberiana chega ao seu ápice neste trecho:
“Em geral, quem quiser fazer política e, muito em especial, quem quiser fazer política como profissão, deverá tomar consciência destes paradoxos éticos e da sua responsabilidade pelo que ele próprio, submetido à pressão desses paradoxos, pode chegar a ver. Repito que quem faz política pactua com as potências diabólicas que espreitam ao redor de todo e qualquer poder. (...) Quem procura a salvação da alma e dos demais que a não busque pelos caminhos da política cujas tarefas, que são muito diferentes, só podem ser elevadas a cabo utilizando a força como meio. O gênio ou o demônio da política vive em íntima tensão com o deus do amor, inclusive com o deus cristão na sua configuração eclesiástica, e essa tensão pode, a qualquer momento, transformar-se num conflito sem solução”.
O que está em jogo – e isto Weber percebeu como poucos – não é se o sujeito é da direita ou da esquerda, se a desigualdade social é a causa de todos os males ou se o fim da propriedade privada é a solução de todos os problemas, mas sim a salvação da alma. E isso cabe tanto ao próprio político como à sociedade em que ele atua. Esta é a razão pela qual a política é um empreendimento arriscado, porque ela envolve forças que, se não forem respeitadas, escaparão do controle humano. A tragédia, neste caso, será de uma amargura que poucos conseguirão suportar – e o próprio Max Weber não conseguiu suportar o peso das suas contradições, o peso de um temperamento que ficou dilacerado ao aceitar uma metafísica da sociedade, mas obrigado a aplicar uma sociologia que relutava quaisquer princípios transcendentes – os mesmos princípios que o ajudariam a encontrar qual seria a verdadeira causa da sua desilusão sobre a desordem dominante do seu tempo. Sua obra estava prestes a se desintegrar, como nos explica Eric Voegelin:
“A razão última de sua hesitação, se não foi o medo, talvez seja inescrutável; mas o ponto técnico onde ele se deteve pode ser claramente discernido. Seus estudos sobre a sociologia da religião sempre despertaram admiração, quando nada, por apresentar um tour de force. O volume do material analisado nesses alentados estudos sobre o protestantismo, o confucionismo, o taoísmo, o hinduísmo, o budismo, o jainismo, Israel e o judaísmo, a serem completados com um estudo sobre o islamismo, é, na verdade, assombroso. Talvez não se tenha ressaltado suficientemente, em vista do impressionante vulto da obra, que essa série de estudos ganha seu tom geral através de uma omissão significativa, qual seja, a do cristianismo anterior à Reforma. A razão dessa omissão parece óbvia. É praticamente impossível efetuar um estudo sério do cristianismo medieval sem descobrir, entre os seus ‘valores’, a crença numa ciência racional de ordem humana e social e, sobretudo, do direito natural. Além disso, tal ciência não constituía simplesmente uma crença, pois era elaborada na prática como um trabalho de construção racional. Nesse ponto, Weber ter-se-ia defrontado com a ciência da ordem como um fato objetivo, como teria acontecido se ele se houvesse dedicado seriamente ao estudo da filosofia grega. A disposição de Weber para representar verdades a respeito da ordem sob a forma de fatos históricos cessava antes de chegar à metafísica grega e medieval. Para poder degradar a política de Platão, Aristóteles ou São Tomás ao nível de ‘valores, um estudioso responsável teria primeiramente que demonstrar não ter fundamento a consideração daquelas formulações como científicas. E essa demonstração é impossível. Quando o pretendente a crítico houver penetrado no significado da metafísica com profundidade suficiente para que a sua crítica tenha peso, ele já se terá em um metafísico. A metafísica só pode ser atacada em sã consciência quando o crítico se coloca a uma distância suficiente, que lhe garanta o conhecimento imperfeito. O horizonte da ciência social de Weber era imenso; assim, sua cautela em aproximar-se demasiado do centro decisivo dessa ciência é a melhor prova de suas limitações positivistas”.
Sem dúvida, o desencanto de Weber deve-se ao fato do político ter-se jogado de uma vez por todas para o polo do Poder. Não há mais uma ligação com Deus. Ele pode dizer que “a política consiste numa dura e prolongada penetração através de tenazes resistências”, que o homem a praticá-la deve responder com um “no entanto” quando o Mal surgir de onde menos se espera, mas não evita a amargura que anteviu com o desencantamento e a desdivinização do mundo. Voegelin não deixa de perceber as semelhanças entre Weber e Nietzsche:
“Por seu sentimento de pena de que o encantamento divino houvesse desaparecido do mundo, por sua resignação ao racionalismo como uma sina a ser aturada, mas não desejada, pelas queixas ocasionais de que a sua alma não estava em sintonia com o divino, Weber deixou revelar sua afinidade com os sofrimentos de Nietzsche – muito embora, apesar de tal confissão, sua alma estivesse suficientemente em sintonia com o divino para que ele não seguisse Nietzsche em sua trágica revolta. Weber sabia o que almejava, mas, por alguma razão, não conseguiu chegar ao objetivo. Ele viu a terra prometida, mas não lhe foi dado nela entrar”.
A comparação com Moisés não é gratuita – Weber percebeu muito bem a que ponto se encontrava a perversão na política e no mundo das ideias. Ele deu os primeiros passos para que fosse estabelecida uma ciência da ordem (depois solidificada com a obra de Voegelin) e, por sua vez, para uma restauração no que deveria ser a arte do governo. Contudo, ao ver a terra prometida, também percebeu que seu leite podia tanto ser doce como mel quanto amargo como a cicuta. E o medo, que o paralisou inclusive fisicamente, não deixou que realizasse o salto para entrar nela – o salto que faria os políticos de seu tempo, amortecidos por aspirarem apenas ao Poder, entrarem no território misterioso do espírito.
5.
A vida e a obra de Max Weber são a prova de como o mundo do espírito pode sufocar a grandeza da alma de um homem, se esta não se sentir suficientemente harmonizada com o que ocorre dentro de si. Mas, o que é o espírito, sobre o qual falamos tanto durante a nossa investigação? Aqui entramos no segundo polo que nos interessa, ao lado do Poder. Entretanto, se no caso deste último tivemos de admitir o nosso fascínio para agarrá-lo num conceito minimamente orgânico e, portanto, maleável, temos de reconhecer que, quando se trata da vida do espírito, a única coisa a se fazer é aceitar o mistério que a envolve – um mistério que, por sua vez, abarca a nossa própria existência.
Para isso, temos que diferenciar dois termos que estamos abusando do uso neste estudo. Várias vezes, falamos de “alma”; outras vezes, falamos de “espírito”. Parece que uma coisa é igual à outra, mas veremos que não é tão fácil quanto parece. “Alma” tem vários significados, tanto em grego (psyche), em latim (anima), em francês (ame) e alemão (seele), mas a pluralidade de nomes não faz perder a unidade da experiência que ela possui em todas as religiões e cultos do mundo: a de que a sua existência está intimamente relacionada com a imortalidade e, portanto, o ser humano teria de cuidá-la com muita atenção durante o seu período na Terra. A questão em torno da alma é a sua união com o corpo, assunto que Platão resolveu filosoficamente com seu dualismo, propondo uma teoria muito bonita em termos poéticos – a da reminiscência –, mas que levaria ao um impasse no mundo prático, como bem demonstrou Aristóteles, o qual disse que a alma era “a primeira enteléquia de um corpo físico organizado que possui a potencialidade de uma vida”. Outra vez, nos deparamos com o dilema da unidade do sujeito, fundamental para determinar a responsabilidade dos atos provocados por um homem. Se a alma é a substância imortal e que move por si mesma (como Platão nos ensinou no Fedro) e os bens que a envolvem são os mais preciosos, seria lógico estender esta mesma importância para o corpo que, afinal de contas, é o veículo da alma. Este problema foi resolvido pelo Cristianismo, em que o mistério da Encarnação e depois o da Ressurreição mostram que o ser humano deve não só cuidar da sua alma por causa da imortalidade ou da “abstração de inteligência das potencialidades de cada elemento do real”, mas também pelo fato de que ela é o que torna o homem capaz de renascer inúmeras vezes frente à morte, a partir do momento em que recebe o novo elemento a ser incorporada no mistério da existência – esta força muito tênue chamada fé.
Já o termo “espírito” requer mais atenção. Ele vem do grego pneuma e do latim spiritus, que significam “respirar”. O ato de respiração é o mais importante para viver, logo é óbvio notar a significação entre o mundo do espírito e o mundo da vida. Contudo, que tipo de vida? Os gregos diferenciavam entre bios e zoe, a primeira sendo a vida meramente biológica e a segunda a vida do espírito propriamente dita. Esta seria a mais nobre de todas as vidas porque implicava que o homem realizasse somente os atos mais nobres, de acordo com sua razão e inteligência, fagulhas divinas dentro das almas que os guiariam na ação concreta das virtudes (Aristóteles fala sobre isso na Ética a Nicômaco, quando afirma que somente o spoudaios possui o nous, a partícula divina que o orienta na zoe).
Ao mesmo tempo que há a vida no mundo do espírito, só podemos entender, se seguirmos o raciocínio de Sócrates em Fédon de que cada coisa nasce do seu contrário, que há também morte – aliás, um fato a sugerir justamente a separação entre alma e corpo. Mas se a alma é imortal e o corpo é perecível, o que motiva este último a permanecer como uma espécie de vaso que guarda a primeira e com quem tem uma profunda relação? Só pode ser o espírito, que sabe muito bem de onde veio e para onde vai, que nos rodeia dentro das nossas almas e fora delas, e a qual não se divide apenas em dois mundos, como queria Platão, mas sim em vários mundos, inscritos dentro de um.
Ao chegarmos a esta conclusão, só podemos afirmar, de forma arriscada, que a relação entre corpo e alma é o espírito – e a reação entre esses três fatores da existência forma o que chamamos de consciência. Quando o corpo ou a alma está deficiente e não há uma reação positiva – a autoconsciência, em que o indivíduo examina-se a si mesmo e aos seus atos –, o espírito fica nitidamente enfraquecido, pois o que o motiva é a ligação do ser humano consigo mesmo e com o mundo que o rodeia, em que tanto o material e o espiritual estão imbricados porque ambos fazem parte de uma mesma unidade. O espírito só pode ajudar o homem a transcender da prisão do tempo (que chamamos de História) se esta, dentro de sua consciência, treinar, com ajuda divina e grande colaboração de uma ascese pessoal, o senso de simultaneidade. Com o espírito (isto é, o próprio Deus), ele se liberta do tempo, mesmo tratando este com carinho, para que ele possa costurar o tecido da sua própria vida e encontrar o seu único sentido, aquele que ninguém mais pode ter.
Assim, quando falamos em uma verdadeira política, queremos meditar sobre aquela política realizada por indivíduos singulares, que se propõem a serem mediadores entre o Poder dos homens e o Poder de Deus, para que este último mostre aos homens tanto o seu carinho como o seu sofrimento divino. O político, aqui, não é um mero demagogo que profere clichês ideológicos; ele é, no momento em que batalha pela virtude maior na qual sua ação se dirige – a felicidade –, o centro do mundo, o omphalos onde todos os temores e todas as esperanças da alma humana se depositam. Seu fardo é o sofrimento do mundo que ressurgirá na flor da redenção.
É óbvio que esta definição parece ser um contrassenso ao princípio cristão de que todos estão aptos a receber a mensagem do Deus Encarnado. Contudo, além de encarnado, Deus é também desconhecido – e, portanto, mais do que misterioso, chegando ao ponto de ser inescrutável. O Cristianismo é universal, mas sua fundação está no dom do livre-arbítrio, em que o sujeito escolhe com o que lhe foi dado e faz o possível com isto. O político deve atender ao chamado e também deve escolher se o aceita. E é neste ponto que a vida espiritual apresenta sua cruel ambiguidade, muito maior do que a do Poder.
É no exato instante desta escolha que a alma luta com o corpo naquela guerra que Platão descreveu no mito da parelha alada em Fedro. O espírito tenta atrair a alma para o Bem e a Verdade, mas a alma se sente também atraída para os prazeres do corpo. Esta guerra exige do sujeito uma estrutura formidável para suportar o mistério excruciante que surge – e que qualquer aplicação racional para este fenômeno seria a de uma superficialidade próxima do demoníaco. Isto é o que chamamos de “permanência da perda”, que nada mais, nada menos é a luta pela unidade do próprio espírito humano e de sua preservação na Terra, para manter a verdadeira ordem entre os seres humanos. Sem esta consciência aguda da transitoriedade das coisas, não há uma verdadeira política, mas sim a política diabólica sobre a qual Max Weber falava, em que o pai da mentira fará de tudo para duplicar, distorcer e fragmentar as ações concretas que têm como meta a prática das virtudes divinas.
Entretanto, a política diabólica não deixa de fazer parte da política mesquinha. Uma vez que Deus é absoluto, é bem possível que tanto o Bem como o Mal, a luz e a escuridão, a criação e a destruição, estejam dentro dele. Não podemos nos esquecer do início do Livro de Jó em que Deus autoriza Satanás a atormentar um dos seus homens mais tementes e depois afirmar que sua maior criação não é o ser humano e sim os dois monstros chamados Leviatã e Beemoth. É claro que esta afirmação tinha um propósito: Jó sofria a soberba da fé e Deus tinha de pô-lo no seu devido lugar, mostrando assim, numa revelação aterrorizante, as duas forças que governam a alma humana. Se em Platão temos os cavalos que ora sobem, ora descem, no Livro de Jó há estes dois monstros marinhos, que ora mandam o homem para a bestialidade coletiva (o Leviatã), ora para o individualismo extremo (o Beemoth), que chega às raias do egoísmo. Deus mostra a Jó, de uma maneira não muito ortodoxa, a perversidade oculta em nossos corações, especialmente quando achamos que encontramos a certeza da fé. O que diferencia a fé cristã dos demais dogmas religiosos, como o judaico e o muçulmano, é justamente a sua incerteza, o fato de que ela torna a nossa vida mais complicada e jamais numa solução. E isto está previsto nos planos de Deus quando envia Cristo à Terra, para pescar o Leviatã e o Beemoth dentro de nós, a partir do momento em que Ele é aceito como salvador de todos os nossos pecados.
Dessa forma, com esta convivência de contrários que consomem a existência humana, a única coisa a fazer é procurar não só fazer o Bem, mas também perpetuá-lo. Esta é a função da verdadeira política, mesmo que ela pareça ser a mais difícil de todas – persistir para que a unidade entre pensamento e ação seja a mesma unidade que coordena a consciência e também mova o mundo. Ainda assim, este intento pode ser deformado, muitas vezes, pelos meios ocultos do espírito que, se não for representado por uma alma devidamente equilibrada, dará origem aos excessos pelos quais pagamos o preço até hoje.
[Continua no próximo mês]