A Revolta da Tecnologia
George Bernanos tem a incrível capacidade de transformar a palavra em um ato de visão imparcial – uma visão que, entretanto, é lançada ao mundo como a lava do vulcão que destrói a cidade ao lado.
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E foi nos confins do mundo, no interior do estado de Minas Gerais, mais precisamente em um bairro miserável da cidade de Barbacena, no início dos anos 1940 – em plena Segunda Guerra Mundial –, que o escritor francês George Bernanos viu nada mais, nada menos que o futuro.
Ele morava em um sítio modesto, exilado da sua querida França e dos espectros políticos – os da direita, os da esquerda, os do centro, enfim, os que não levam a lugar nenhum –, após ter publicado Os Grandes Cemitérios sob a Lua (1938), uma polêmica obra-prima sobre os desastres que levaram à Guerra Civil Espanhola (e, por consequência, à ousadia de Hitler e de Stalin contra a Europa), quando teve uma iluminação assustadora sobre o que motivava a “cólera dos imbecis” então em voga nos quatro cantos da Terra.
Tratava-se do fato de que “os regimes outrora opostos pela ideologia estão agora estreitamente unidos pela técnica”, como ele escreveu em A França Contra os Robôs (É Realizações, 254 págs, trad. Lara Christina de Malimpensa), outra obra-prima de retórica bombástica, lançada em 1945, tão espetacular quanto Os Grandes Cemitérios, com a diferença de que, desta vez, Bernanos não está refletindo sobre o presente ou o passado, como supõem seus detratores. Ele faz o que sempre fez, em especial nos seus magníficos romances, como Diário de um Pároco de Aldeia ou Sob o Sol de Satã (ambos transformados em filmes impecáveis por, respectivamente, Robert Bresson e Maurice Pialat): põe a eternidade à frente do nosso focinho, igual a um trauma do qual não temos como fugir, como se nós fossêmos os cachorros que buscam desesperadamente um pouco de alimento neste chão imundo da existência.
Contudo, há uma inovação (certamente, uma palavra desprezada no vocabulário do criador de Mouchette) neste panfleto aflitivo, escrito por este homem possuído por uma lucidez implacável. Se antes alguém poderia acusá-lo de “reacionarismo” porque Bernanos não queria aceitar o “progresso” da História, agora ele reconhece que não há outra forma exceto aceitar a tal da “técnica” como motor permanente da condição humana, em especial após o término da Segunda Guerra.
Mas ele não vê este fenômeno nem de maneira positiva, nem negativa. Bernanos tem a incrível capacidade de transformar a palavra em um ato de visão imparcial – uma visão que, entretanto, é lançada ao mundo como a lava do vulcão que destrói a cidade ao lado. Machuca, incomoda, dilacera. Infelizmente, não é o que acontece com um conterrâneo seu, Benjamin Loveluck, que, ao escrever sobre o mesmo tema em Redes, Liberdades e Controle – Uma genealogia política da internet (Vozes, 386 págs, trad. Guilherme João de Freitas Teixeira) cerca de setenta anos depois, consegue descrever o “estado da arte” da nossa atual situação tecnológica, mas é incapaz de falar nada demais sobre o “estado da questão” de algo que Bernanos captou com precisão algumas décadas antes.
Loveluck inspirou-se nos trabalhos filosóficos de Michel Foucault e de Marcel Gauchet sobre como a democracia liberal é uma ideologia política que tenta substituir o vazio existencial provocado pelo que Max Weber chamou de “o desencantamento do mundo”. Ao expandir este tema para uma análise detalhada de como a internet se aproveitou do liberalismo clássico para construir uma visão de mundo peculiar, o cientista político francês – também pesquisador na Telécom Paris Tech, um think tank criado por empresas de telecomunicações para refletir sobre o conturbado cenário deste “admirável mundo novo” da política – quer provar ao leitor que jamais se deve identificar “a rede das redes” como integralmente assimilada ao que conhecemos sob o nome de “sociedade civil”.
Porém, é exatamente isso o que nós fazemos no clima de opinião que domina nas universidades, redações e mesas de bar. A internet seria o reino da necessidade transformada no reino da liberdade, onde as pessoas finalmente teriam a autossuficiência para governar suas vidas sem uma instituição centralizadora, que domine a propriedade privada e o fluxo das informações – ou, pelo menos, é o que passamos acreditar como se fosse uma nova “religião política”, digna daquelas ideologias totalitárias sobre as quais Bernanos já achincalhava em Os Grandes Cemitérios sob a Lua.
O livro de Loveluck mostra que tudo isso descrito acima não passa de uma triste ilusão. Apesar do liberalismo metamorfoseado na ideologia californiana do libertarianismo hippie de Silicon Valley – e depois na libertinagem do comportamento humano redimido pela tecnologia –, a internet nunca teve a liberdade como seu fim. Era apenas mais uma ferramenta de controle, cuja intenção primeira jamais foi ajudar o ser humano, mas sim manipulá-lo como poucas vezes foi visto na História, numa revolta da tecnologia que só pode ser compreendida adequadamente como o complemento da revolta que o próprio homem quis realizar contra a sua intrínseca fragilidade.
Um dos pontos mais interessantes de Redes, Liberdades e Controle é que Benjamin Loveluck parece estar realmente surpreso com a conclusão acima, durante a redação do seu tratado. Ora, se ele tivesse lido Bernanos antes, nada disso teria sido uma aparente novidade em seu projeto. Em A França Contra os Robôs, o romancista francês, antes acusado de ser mais um “católico carola” – e mesmo sem ter tido acesso à internet ou ao Facebook, pois morreria em 1948 –, percebeu que a modernidade seria um projeto corrompido em sua essência, dominando o homem em todos os seus graus e estratos, exceto um: o da imbecilidade.
Assim como Raymond Aron e Eric Voegelin, Bernanos reconhece que talvez o principal impulso da história humana é a estupidez dentro de todos nós. E isto não seria uma exceção com o modo como passamos a lidar com a técnica e a tecnologia. Mas um aviso: não se trata da estupidez pura e simples, do néscio que não consegue raciocinar adequadamente por algum impedimento de informação ou cognitivo. É algo mais profundo. Ele fala do imbecil que se considera alguém realmente inteligente, absolutamente incapaz de reconhecer a “inteligência humilhada” de que tanto falou Santo Agostinho em Confissões e que foi meditado recentemente pelo filósofo Jonas Madureira em um livro estupendo de mesmo nome – uma leitura obrigatória para quem quiser escapar deste círculo vicioso do pensamento.
Com sua escrita ferina, Bernanos dá a perfeita definição do que significa ser um estúpido nos dias de hoje: “A experiência me demonstrou há muito tempo que o imbecil nunca é simples, e muito raramente é ignorante. O intelectual deveria, portanto, por definição, parecer-nos suspeito? Certamente. Chamo intelectual ao homem que dá a si mesmo esse título, em razão dos acontecimentos e diplomas que possui. Não falo, evidentemente, do erudito, do artista ou do escritor cuja vocação é criar – para os quais a inteligência não é uma profissão, mas uma vocação. [...] O intelectual é com tanta frequência um imbecil que deveríamos tomá-lo sempre como tal, até que nos tenha provado o contrário”.
Aqui, o centro da questão é que o intelectual se tornou um dependente da técnica e da tecnologia por não assumir as falhas do seu pensamento ao refletir sobre as sutilezas da realidade. Daí sua defesa encarniçada de uma inteligência vendida aos robôs há muito tempo, amputada da vida espiritual que seria o verdadeiro fundamento da nossa sociedade. Muito antes de Benjamin Loveluck, o autor de Diálogo das Carmelitas já tinha percebido a tecnologia como mais uma forma de controlar a liberdade interior do ser humano, dando-lhe em troca uma precária liberdade exterior que se uniria com o pior dos totalitarismos – o do imbecil como o único governante possível.
Sem dúvida, os progressistas acusarão A França Contra os Robôs de ser mais um panfleto “ludita” – uma referência à seita apocalíptica do século XIX, fundada por Ned Ludd, e que pretendia abolir as máquinas no nosso cotidiano –, optando assim pela análise pretensamente mais equilibrada de Benjamin Loveluck. Será também a prova que não entenderam nada do próprio assunto do qual tiram o seu sustento: afinal de contas, a revolta da tecnologia contra o ser humano foi provocada por essa mesma “cólera dos imbecis” que criou as carnificinas globais do nazismo, do comunismo e do fascismo. E se hoje esquecemos desta importante lição, aparentemente protegidos pela liberdade controlada da “rede das redes”, é sinal que merecemos a desgraça que se abate sobre os estúpidos de sempre, profetizada pelo espírito visionário (e perturbador) de George Bernanos.