All along the watchtower, princes kept the view
While all the women came and went, barefoot servants, too.
Outside in the distance a wildcat did growl,
Two riders were approaching, the wind began to howl.
"All Along The Watchtower" - Bob Dylan
I'll be speaking to you sweetly
From a window in the Tower of Song.
"Tower of Song" - Leonard Cohen
Um dos poemas que sempre volto a ler em tempos conturbados é "The Tower", de William Butler Yeats, escrito entre 1925 e 1928. Seus célebres versos iniciais são:
WHAT shall I do with this absurdity -
O heart, O troubled heart - this caricature,
Decrepit age that has been tied to me
As to a dog's tail?
[O que farei com esta absurdidade,
Esta caricatura, coração?
Decrepitude atada à minha idade
Como à cauda de um cão?][1]
Quando Yeats escreveu o poema, já tinha atravessado a crise de meia-idade (contava então com 63 anos) e enfrentava a luta interior de querer conciliar o mundo de sonho - no qual uma futura Irlanda surgiria como um novo mito europeu - com o mundo em que a velhice, o efêmero e a morte são inevitáveis. Em 1928, ele vivera a Primeira Guerra Mundial, a Guerra Civil Irlandesa e testemunhava a ascensão do fascismo e do nazismo, o que lhe dava perfeita consciência de que o sonho não seria mais possível, simplesmente porque nunca existiu. Além disso, havia um outro problema: Como lidar com os primeiros sinais de uma velhice que não dava amostras de trégua? Como recomeçar em um mundo onde tudo iria morrer?
"The Tower" é um desses questionamentos em que o ser humano, sufocado pelo absurdo de uma vida condenada a um fim injusto, tenta deixar alguma marca, algum vínculo duradouro na Terra. What shall I do with this absurdity - O heart, O troubled heart?, pergunta Yeats que, durante a sua travessia como poeta, criou inúmeras personas para disfarçar seus verdadeiros sentimentos, para tornar sua obra mais impessoal, mas que, agora, próximo do fim, percebe que deve retratar-se como é, para aceitar o mundo de fato. O coração quer saber deste absurdo, a memória se lembra dos tempos de infância, ainda que a escolha do presente seja entre a Musa, Platão e Plotino, e a realidade do campo da Irlanda. E é nesta escolha que Yeats vai meditar sobre a torre que mora na sua alma.
Logo depois de seu casamento com Georgia Hill, Yeats se tornou senador pela República Irlandesa, ganhou o Prêmio Nobel e se envolveu numa das maiores charlatanices já realizadas. Ao que parece, sua esposa era uma médium, que psicografava mensagens do além, e Yeats, espantado com a descoberta, viu esse evento como uma espécie de revelação e decidiu escrever um livro sobre isso. A vision também foi publicado no mesmo ano de "The Tower" e pode-se dizer que são obras gêmeas - apesar de que a última perdura justamente por sua riqueza poética, enquanto a primeira é apenas um documento sobre como um gênio também pode ser enganado. A vision apresenta as teorias de Yeats sobre a imortalidade da alma, sobre a História e sobre a psicologia humana - completas alucinações que não possuem nenhuma relação com a realidade. Entretanto, serviu ao poeta para que sua imaginação simbólica se expandisse em níveis extremos, dando a oportunidade para que criasse uma poesia de alto nível - o que prova os caminhos misteriosos da Providência. Yeats acreditava em reencarnação e seu envolvimento com o movimento teosofista de Madame Blavatsky permeou a redação de A vision, mas não interferiu na qualidade dos versos de "The Tower". Se no seu livro "filosófico", Yeats queria uma explicação de todo o mistério que a sua futura poesia retrataria, nos seus versos ele aceitava o enigma da vida como parte do absurdo e, principalmente, como parte da sua ascese espiritual.
Assim, o que surpreende ao ler "The Tower" é a nobreza de Yeats - sem nenhum disfarce, expondo de maneira sincera os dilemas de seu coração - em aceitar a sua finitude. Contudo, a aceitação não vem fácil: Yeats precisa se lembrar dos tempos antigos em que outras pessoas moravam na sua torre, a Thoor Ballylee que comprou perto de Sligo, província irlandesa, para se proteger do caos do mundo. E deste mergulho anamnético - no melhor estilo de Eliot em “The Waste Land” e Proust em A lá recherche du temps perdu -, o poeta também se lembra do seu passado, com alusões ao seu caso conturbado com Maud Gonne, aos amigos já mortos e aos inimigos que se foram, até o momento em que ele fala, com a maior clareza possível: It is time to wrote my will. [É tempo do meu testamento].
O passado da sua torre é também o passado de sua alma para reencontrar o sentido da sua vida. O simbolismo não é aleatório. Além de representar uma maneira de manter a ordem do espírito num mundo em que a destruição era iminente, a torre é também um símbolo da linguagem que quer tocar o Paraíso (vejam o episódio da Torre de Babel) e figura constante nas variações do mito cristão, conforme nos explica Jean Chevalier e Alain Gheerbrant em seu Dicionário dos Símbolos:
Na tradição cristã, inspirada nas construções militares e feudais, eriçadas de torres, atalaias e torreões, a torre tornou-se símbolo de vigilância e ascensão. O símbolo da torre que encontramos nas litanias da Virgem (turris Davidica, turris eburnea) - e não esqueçamos que os termos Virgem e Igreja estão associados - envolve um símbolo bastante preciso. As torres, na Idade Média, podiam servir para espreitar eventuais inimigos, mas tinham ainda um sentido de escada: relações entre céu e terra, que recordavam por degraus. Cada degrau da escada, cada andar da torre marcava uma etapa na ascensão. Até mesmo a Torre de Babel - onde Deus confundiu a linguagem dos homens - quis tocar o céu. Reencontramos esse tema em um afresco de Saint-Savin, em que vemos companheiros caminharem um ritmo de dança, apesar dos blocos de pedra que carregam sobre os ombros. Fixada em um centro (centro do mundo), a torre é um mito ascensional e, como o campanário, traduz uma energia solar geradora transmitida à terra.
De certa forma, a torre é uma espécie de ligação em que o homem voltaria a ter contato com Deus, uma vez que ele é um ser danado pela Queda. Com Yeats, a torre torna-se também um símbolo de resistência, de afirmação da vida sobre a certeza da morte: Now shall I make my soul/ Compelling it to study/ In a learned school/ Till the wreck of body/ Slow decay of blood/ Testy delirium/ Or dull decrepitude/ Or what worse evil come - / The death of friends, or death/ Os every brilliant eye/ That made a catch in the breath -/ Seem but the clouds of the sky/ When the horizon fades; / Or a bird´s sleepy cry/ Among the deepening shades. [Preparo a alma, agora,/ Votando-a ao estudo/ Numa douta demora,/ Até o fim de tudo./ Sangue que deteriora,/ Desgaste da memória,/ Estancamento mudo./ Ou, ainda pior,/ A morte dos que outrora/ Foram grandes, do olhar/ Que fez sustar o alento –/ Como as nuvens no ar/ Quando o sol cai e um lento/ Grito de ave ressoa/ Na sombra que se escoa]
O absurdo da velhice é a fagulha do triunfo da experiência, do homem maduro (o spoudaios de Aristóteles) que viu de tudo, sobreviveu a tudo, perdeu de tudo e, ainda assim, está aqui para contar a sua história. A torre de Yeats é a nossa alma frente à iniqüidade de um mundo que fez a opção preferencial pela loucura, um mundo que, apesar de toda a sua ingratidão com a própria experiência dos tempos passados (aqui não podemos nos esquecer dos versos de "Sailing to Bizantium": That is no country for old man - Este não é um país para os velhos), prezamos bastante, talvez em demasia.
History is on the move again, dizia Raymond Aron parafraseando Toynbee ao ver a vitória nazista na Alemanha de 1933, e a História, assim como a natureza, é implacável, e não admite perdão àqueles que não deram ouvidos aos seus avisos. Somente quem mergulhou nos vãos de sua torre, para depois subir cautelosamente cada degrau, sentindo a vertigem do Mal que nos toma a cada momento em que encaramos a espiral da vida, mas sempre resistindo, sempre indo em frente, suportando a perda de uma alma que poderia ter dado certo nesta vida miserável, mas que se perdeu na ambição e no medo, somente quem viu o horizonte de sangue terá a coragem da revolta justa, de resistir quando a peste atacar todos para sempre, de descobrir a dignidade ao deparar-se com as únicas certezas da vida: o amor, o sofrimento e o exílio. A torre de Yeats é a prova viva de que todos temos de perseverar, para que a alma possa enfim subir, ainda que estejamos amarrados nesta Terra com grilhões de chumbo e dilacerados na escolha entre o Tudo e o Nada.
O ano de 2022 representa um desses desafios históricos (especialmente para quem vive no Brasil) e, por isso mesmo, decidi transformar esta newsletter em uma espécie de torre para mim. Portanto, a partir dos próximos meses, as únicas pessoas que receberão os meus textos inéditos serão os assinantes exclusivos. E os outros assinantes? Bem, estes ficarão a ver navios (exceto, claro, se pagarem pela assinatura).
A razão para isto é muito simples: cansei de escrever de graça na internet. Meu trabalho como polemista e provocador gratuito (em todos os sentidos da palavra) continuará no Twitter; e divulgarei cursos e a newsletter no Instagram; mas quem quiser saber realmente o que penso (e não as deformações que foram publicadas pelos meus algozes nos últimos anos) terá de pagar pela assinatura dos textos ou então comprar algum dos meus livros (pesquisem).
Já tenho um percurso de vinte anos na minha trajetória intelectual (comecei em 2001) e, entre acertos e erros (mais os segundos do que os primeiros, com certeza), creio que não perdi aquilo que se chama “a virtude da consistência”. Logo, acho que tenho mais do que direito de cobrar por aquilo que produzo, mesmo que o valor seja pouco ou quase insignificante. Será assim, a partir de agora, com a newsletter; e já era um modelo que testei com o podcast Extremistão e os meus dois cursos lançados na Hotmart (O perigo do Great Reset e o mais recente, A Tragédia Como Farsa – A Cultura Brasileira de 2013 a 2022).
Ainda neste ano, serão lançados os primeiros volumes das obras completas de Mario Vieira de Mello e Herberto Sales, das quais sou o coordenador, além do meu próximo livro, A Disciplina do Deserto – todos pela É Realizações. E, se tudo der certo, continuarei a escrever artigos e resenhas para O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo.
Se os assinantes não pagos quiserem saber sobre os novos textos, aqui vai uma lista de temas que tentarei abordar no correr dos seus respectivos meses e que podem servir para estímulo de futuros pagamentos:
Abril - Vida e obra de Maquiavel
Maio – A pedagogia do Holocausto
Junho – O espaço sagrado no mundo contemporâneo
Julho – Vida e obra de William Shakespeare
Agosto – Vida e obra de Padre Antonio Vieira
Setembro – As origens da lenda do Doutor Fausto
Outubro – Vida e obra de Enrique Vila-Matas
Novembro – Declínio e queda do Jornalismo
Dezembro – Vida e obra de Ted Hughes e Sylvia Plath
E é isso: na próxima semana, os assinantes exclusivos receberão em suas caixas postais um longo ensaio meu sobre Nicolau Maquiavel. Quem quiser saber o que meditei a respeito do grande florentino, as opções de assinatura estão no botão laranja logo abaixo; quem não quiser saber – bem, sinceramente, eu não estou nem aí para o que você pensa a meu respeito.
[1] Todas as traduções citadas do poema são de Augusto de Campos.