As dificuldades crescem quanto mais próximo se está da meta.
Goethe
Nem sempre há um prêmio Nobel cochilando ao seu lado.
Durou apenas cinco minutos. Enquanto o avião levantava vôo de Porto Alegre a São Paulo, Jorge Mario Vargas Llosa fechou os olhos depois de ter folheado as páginas da revista da TAM. Durante alguns instantes, deteve-se em uma foto sua em cor de sépia, a face angulosa numa expressão próxima de um cowboy de filme de John Ford, sério, impenetrável, viril. Leu algumas linhas, talvez para checar se a entrevista correspondia ao que disse. Depois, reclinou a poltrona estreita do avião e fechou os olhos. Ficou assim por um tempo. O comissário de bordo veio e ofereceu-lhe, em uma cesta de plástico, algumas balinhas de doce de leite, que aceitou prontamente e logo colocou na boca. Voltou a fechar os olhos. Mastigou a bala em um ritmo circular. De repente, acordou, aproximou-se e perguntou à pessoa sentada no lado esquerdo, com seu espanhol cristalino:
“Você trabalha como jornalista e também como professor?”
1
No dia 3 de setembro de 2010, Luciana Villas-Boas, diretora editorial do Grupo Record, nos disse que teria de ir à Feira de Londres e depois à de Frankfurt. Ao ouvir a menção a esta última, logo foi lembrada de que é na mesma época da feira em que se anuncia o Nobel de Literatura.
“Quem você acha que ganha este ano?”, foi a pergunta imediata.
“Ah, são tantos. Têm o Philip Roth, o Don DeLillo, mas acho que desta vez se não derem para o Vargas Llosa seria uma injustiça. Ele é um narrador admirável e tem uma obra muito rica. Não li os últimos livros, como Travessuras da menina má, mas o mais recente que li foi A Festa do Bode, e é algo fantástico. Se não ganhar este ano, acho que não terá outra oportunidade”.
Duas semanas antes, quando a editoria de Dicta&Contradicta se preparava para mais uma reunião de pauta, sabíamos que uma de nossas metas era entrevistar Mario Vargas Llosa, que visitaria o Brasil em outubro para uma palestra na série Fronteiras do Pensamento, realizada em Porto Alegre. Um dos editores, Guilherme Malzoni Rabello, perguntou-se o que aconteceria se Vargas Llosa ganhasse o Nobel.
“Você acha que isso pode acontecer?”, disse para quem estava ao seu lado.
“Pode”, foi a explicação que lhe deram, “a obra dele é muito vasta, abarca romances, ensaios, contos e artigos jornalísticos. Talvez tenha uma qualidade desigual, mas há pelo menos uns quatro livros que merecem estar no panteão da grande literatura – A cidade e os cachorros, A casa verde, Conversa na Catedral e A Festa do Bode – e é um crítico literário invejável – tem um livro maravilhoso sobre Flaubert chamado A orgia perpétua. Além disso, o Nobel precisa premiar alguém que vai contra as suas preferências esquerdistas que todos conhecem, para dar a impressão de que se trata de uma instituição imparcial. E, depois de Gabriel Garcia Márquez, é o único do boom latino-americano que ainda não ganhou o prêmio”.
Guilherme fez uma expressão de que não acreditava muito que tal previsão aconteceria, mas, se ocorresse, seria bom para todos. Por isso foi divertido ouvir sua reação ao telefone quando, no dia 7 de outubro, a internet anunciou que o escritor peruano ganhara o Nobel e ligamos imediatamente às oito e quinze da manhã para avisá-lo.
“Estava dormindo?”, perguntaram-lhe.
“Não. Por quê?”
“Advinha o que aconteceu?...”
“Tá brincando?...”
O que se seguiu foi uma corrida contra o tempo. Guilherme entrou em contato com Pedro Longhi, um dos idealizadores do Fronteiras do Pensamento. Longhi é um sujeito de cerca de 1,70m, olhos castanhos em constante observação, e, quando se está ao seu lado, tem-se a sensação de que está em constante movimento, para cima, para baixo e para todos os ângulos possíveis. Agradeceu aos parabéns de nosso editor por recepcionar um Nobel exatamente uma semana após o anúncio, mas foi direto ao assunto: sim, a agenda estava lotada. Agora, a revista Veja, a Folha de S.Paulo, a GloboNews, até mesmo a TV Brasil queriam entrevistar o peruano. Além disso, quem decidia a agenda não era o próprio Vargas Llosa e sim sua esposa Patrícia, conhecida pela habilidade com a qual organizava a carreira e os compromissos do marido (Llosa disse depois, já no Brasil, que ela decidiria o que fazer com o 1,2 milhão dado pela academia sueca e que ele receberia somente uma “mesada”). E foi taxativa: nem um compromisso a mais. Ou seja, nada de Dicta&Contradicta.
Contudo, isso não foi um obstáculo para Pedro Longhi. Exposto o problema, logo deu a solução. Seria feito o seguinte: a Dicta iria a todos os compromissos públicos de Llosa – as palestras na editora Abril, na Folha de S. Paulo, a coletiva para a imprensa em Porto Alegre, o evento do Fronteiras, uma entrevista agendada com o jornalista Roberto D’Ávila – e, se possível, viajaria ida e volta no mesmo vôo. Conseguiríamos nossa entrevista aos pedacinhos, mas ela seria feita de qualquer maneira. Dependíamos apenas da sorte e do bom humor de Llosa.
2
O humor sempre foi algo ausente nos quatro primeiros livros de Mario Vargas Llosa. E por um motivo muito simples: ele levava a literatura a sério. Desde A cidade e os cachorros, seu primeiro romance publicado em 1962, quando tinha apenas 24 anos, Llosa mostrou uma maturidade invejável e uma voz narrativa única. Unindo a objetividade de Gustave Flaubert e o experimentalismo técnico de William Faulkner – seus grandes heróis literários – conseguiu sair da periferia regionalista da literatura latino-americana e criar uma obra que dialogava com a Europa e os Estados Unidos de igual para igual.
Não foi o único a fazer isso. Junto com ele, havia Gabriel Garcia Márquez, Júlio Cortazar, Carlos Fuentes, um Jorge Luis Borges ancião e já um tanto esquecido, Juan Carlos Onetti, Juan Rulfo – que, independente das diferenças de idade ou geração, formavam o que se chamou de boom latino-americano. Mas se a maioria desses autores – com quem o jovem Llosa teria contato pessoal, em alguns casos tornando-se amigo – tinha a característica principal de usar o recurso literário do “realismo fantástico”, o peruano preferiu a observação da realidade tal como se apresentava, com suas mesquinharias, jogos de poder, confusões sexuais, desilusões amorosas, poucas vitórias e muitos fracassos, transformando-a em uma realidade alternativa e imaginária, que se rebelava contra a vida e criava assim a possibilidade de produzir uma forma radical de literatura: o “romance total”.
Com A casa verde (1965) e Conversa na Catedral (1969) Mario Vargas Llosa almejou a esta ambição desmedida, que, segundo ele, já existia em escritores como Victor Hugo, Balzac, Flaubert, Faulkner e seu então comparsa Garcia Márquez: recriar a vida em uma obra literária como se esta fosse uma esponja que sugasse todas as camadas e todos os vetores da existência. Sem dúvida, conseguiu fazer isso com Conversa, um dos romances mais inovadores já feitos não só na literatura latino-americana como também na mundial. Através de uma conversa de bar entre Santiago Zavala, um jornalista fracassado, e Ambrósio, que fora chofer de seu pai e que então era adestrador de cães raivosos em um canil público, Vargas Llosa mostra como se operou a ditadura de Manuel Ódria no Peru na década de 50, sobrepondo diferentes planos temporais e quebrando a estrutura linear da história; criava assim um quebra-cabeça alucinante para o leitor montar e chegar à conclusão de que qualquer ditadura assassina a mínima possibilidade de liberdade individual, seja na vida pública ou privada.
Depois deste livro tão ambicioso, Llosa operou uma mudança inusitada em sua obra – e é aqui que o humor vem à tona. Talvez desiludido por recentes decepções ideológicas –havia se afastado de suas convicções socialistas, rompido com a admiração que tinha pela Cuba de Fidel Castro e aos poucos se voltava para a defesa do liberalismo econômico e político, o que causou um frisson enorme entre seus colegas escritores e intelectuais – o peruano descobriu em histórias divertidas, como Pantaleão e suas visitadoras (1973) e Tia Júlia e o escrivinhador (1977), um novo prazer em contar uma história. Esta renovação na sua carreira o fez ter mais leitores do que na década anterior –, e, ao que parece, sem comprometer a qualidade da sua escrita.
Voltaria ao “romance total” com A guerra do fim do mundo (1981), que lhe custou quatro anos de trabalho – um épico sobre a mesma revolta de Canudos que já dera ensejo ao clássico de Euclides da Cunha, Os sertões. Não temos mais o Llosa experimental da primeira fase, muito menos o latin lover erudito da década de 70; temos aqui um escritor que descreve suas cenas como um cineasta que filma em um preto-e-branco endurecido – não é à toa que o projeto começou como um roteiro cinematográfico a ser filmado pelo diretor Ruy Guerra – e que tenta compreender uma sociedade da qual não fazia parte, com suas nuances e, principalmente, com uma complexidade religiosa que é difícil de ser decifrada por alguém que se diz agnóstico – como confessou o próprio Vargas Llosa em entrevistas e artigos.
A partir daí, temos o Mario Vargas Llosa que conhecemos atualmente como persona pública: o escritor que trabalha sem descanso, escreve regularmente no El Pais, publica livros de crítica literária (seus estudos sobre Flaubert, A orgia perpétua, Victor Hugo, La tentacíon del impossible, e mais recentemente Juan Carlos Onetti, El viaje a la ficción, são leituras obrigatórias para quem quiser entender as obras desses autores), romances medianos como Lituma nos Andes (1993) e Os cadernos de Don Rigoberto (1997), um livro que podemos considerar como sua obra-prima, A Festa do Bode (2000), e realiza inúmeras intervenções políticas, sempre em defesa da liberdade individual e do pluralismo democrático – conseqüência do impacto de leituras de autores como Isaiah Berlin, Ortega y Gasset, Karl Popper e Friderich von Hayek.
Contudo, no meio desta multiplicidade de ações, opiniões e humores, há uma constante na sua obra: a obsessão pela literatura não como uma mera paixão a ser descartada por qualquer fracasso que aconteça, mas sim como um trabalho sério, feito com extremo profissionalismo. Como escreveu em um ensaio chamado História secreta de uma novela (1971): “É muito difícil pensar em ‘ser um escritor’ quando se nasce em um país onde quase ninguém lê: os pobres porque não sabem ou porque não possuem os meios para adquirir conhecimentos, e os ricos porque não sentem vontade. Numa sociedade assim, querer ser escritor não é optar por uma profissão, mas sim por um ato de loucura”. E para controlar a sua própria loucura, uma agenda regulada nos mínimos detalhes era imprescindível para se ter o rigor necessário e assim escrever os livros que ainda tinha por fazer.
3
Realizar uma reportagem como a que seria feita também envolvia uma considerável dose de loucura. Afinal, a Dicta conseguiria ou não entrevistar o prêmio Nobel de Literatura de 2010? Uma das anedotas mais conhecidas na história do jornalismo é o perfil de Gay Talese sobre Frank Sinatra chamado Frank Sinatra está resfriado, publicado na revista Esquire em 1966. O título diz tudo: a Voz está constipada e, por isso, não quer dar entrevistas. Deveria Talese desistir de sua matéria? Não, claro que não: ele entrevistou os amigos mais próximos, os pais de Sinatra, sua ex-esposa, sua filha Nancy – e então montou um perfil que o mostrava como alguém humano, demasiado humano, sem precisar entrevistá-lo. Faria a Dicta a mesma coisa com Vargas Llosa? Talvez. Na dúvida, sempre vem o temor do fracasso e a solução de que a única coisa a se fazer é escrever uma reportagem chamada justamente Como não entrevistamos Mario Vargas Llosa.
Felizmente, não foi o que aconteceu. Mario Vargas Llosa desembarcou sozinho no aeroporto de Guarulhos na manhã do dia 13 de outubro de 2010, uma semana depois de ter sido anunciado como Nobel de Literatura e com uma agenda que o faria trabalhar como um mouro. Vinha de Nova York, onde morava temporariamente devido às aulas que ministrava na Universidade de Princeton, no estado de New Jersey. Ao recepcioná-lo, Pedro Longhi se surpreendeu com o bom humor do laureado: ele parou várias vezes enquanto saía do aeroporto para o carro; as pessoas o cumprimentavam e o parabenizavam; a resposta era um sorriso e um agradecido muy encantado, muy gentil; assinava folhas com suas iniciais – um M, um V e dois L’s cortados por um traço elegante e preciso – e não parou em nenhum momento nem se sentiu incomodado nas trinta vezes que fez isso durante o percurso.
Foi ao hotel e, por volta das 13 hs, estava na Editora Abril para seu primeiro compromisso, uma palestra especial com os jornalistas da empresa, onde falaria sobre sua carreira e sua vida. O entrevistador era Ricardo Setti, que já conhecia o peruano quando realizou um livro de entrevistas intitulado Conversas com Vargas Llosa, publicado na década de 80 pela Brasiliense e agora esgotado nas livrarias. A entrevista foi uma amostra do que o Nobel enfrentaria nos próximos dois dias em qualquer lugar que tivesse a imprensa por perto. A lista de perguntas repetidas foi grande: ele responderia quatro vezes sobre seu novo romance, O sonho do celta, que foi lançado na Espanha em novembro e que se passa no Congo do início do século XX; comentaria dez vezes sobre a situação da democracia na América Latina; afirmaria três vezes que escrevia à mão e só usava o computador quando começava a corrigir a versão final de seus livros; elucidaria duas vezes sobre o que faria com o dinheiro dado pela academia sueca; seria forçado três vezes a comentar sobre Hugo Chávez e sobre o presidente Lula (classificou-o como “esquizofrênico” devido ao seu apoio ao governo do Irã); até respondeu uma vez sobre o que achava das eleições presidenciais (a resposta foi sincera e honesta: “Acabei de chegar no país e já me perguntam isso!”).
Llosa respondia a tudo isso de maneira gentil, mas era evidente que não queria falar tanto sobre política. O papel de intelectual público o fazia cumprir esta função desde que, em 1990, concorreu à presidência do Peru em uma das eleições mais acirradas que aconteceram no continente. A peripécia foi narrada de forma admirável em suas memórias, Peixe na água (1993), em que se contava, em capítulos alternados, o início de sua carreira como escritor e o seu fracasso na eleição, ao perder para ninguém menos que Alberto Fujimori, um desconhecido engenheiro de descendência nipônica e que depois se transformaria em mais um tirano latino-americano.
Visto de longe, dava amostras de uma vitalidade impressionante para quem está com 74 anos de idade. Andava com um porte elegante, provavelmente desenvolvido em suas andanças de juventude por Paris e Londres, para onde foi quando saiu do Peru com 22 anos, ao tentar dominar a vocação de escritor. Já visto de perto, notava-se um certo cansaço, provavelmente como conseqüência das inúmeras comemorações relativas ao Nobel. A pele clara estava protegida por uma fina camada de protetor solar – evidente na ponta do nariz aquilino – e os olhos castanhos, que se aproximam da cor do mel, tinham um brilho de tranqüilidade, da certeza de uma meta que foi atingida a custa de muito sacrifício e de que era absolutamente natural estar no topo da montanha. Nem por isso deixava de escutar qualquer interlocutor com atenção e se por acaso o conhecia de algum compromisso do passado, lembrava-se imediatamente e logo lhe perguntava sobre alguém que não via há muito tempo ou então se referia a algum livro da pessoa.
Foi apresentado à Dicta por Pedro Longhi e, sem titubear, disse que estava muy encantado, procedimento padrão de qualquer sujeito educado que fale em castelhano. Estávamos então na Folha de S. Paulo e Llosa seria entrevistado por Sylvia Colombo, editora do caderno cultural Ilustrada. Obviamente, a pauta política voltou – até porque era esta o interesse do público, composto em geral de jornalistas da redação – mas Colombo fez o possível para que Llosa comentasse o seu último lançamento no Brasil, a coletânea de ensaios Sabres e Utopias – Visões da América Latina, editado pela Objetiva, e falasse um pouco sobre sua relação com a literatura brasileira, em especial Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Apesar de mostrar entusiasmo por esses autores, afirmando que Rosa era merecedor de um Nobel que nunca veio, era evidente que Llosa estava muito cansado. Sem titubear, pediu à organização do evento que falasse apenas 45 minutos, nem mais, nem menos. Queria voltar ao hotel, descansar e se preparar para um jantar com empresários e políticos, entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Enquanto acontecia a palestra na Folha, Guilherme Malzoni conversava com Pedro Longhi sobre como poderíamos fazer a entrevista. Longhi disse:
“Vamos fazer o seguinte: o seu correspondente chega com uma hora de antecedência na sala de embarque. O vôo é às dez da manhã. Quando eu aparecer com o Llosa, apresento novamente os dois, vou tomar um café, deixo ambos conversando por dez minutos e vamos ver o que acontece. Se o homem gostar dele, coloco-o na poltrona ao lado, sem problemas.”
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Quando se toma um capuccino tirado na máquina de expresso em um dos quiosques de Congonhas por volta das 8h30 da manhã, tenha certeza de um fato: você ficará com a ponta da sua língua ardendo pelo resto do dia. Na sala de embarque, enquanto as pessoas se preparam para embarcar nos aviões como se fossem simples táxis, as únicas companhias de um jornalista que fica de tocaia, esperando um prêmio Nobel surgir a qualquer momento, são um capuccino aguado e um bom romance. No caso do livro que tínhamos em mãos, não era um romance qualquer. Tratava-se de Sartoris, o primeiro épico de William Faulkner que se passa no condado de Yoknapatawpha, lançado recentemente no Brasil. O plano era simples e engenhoso: Pedro Longhi apresentaria a Dicta novamente a Vargas Llosa, e ele, como bom admirador de Faulkner, notaria o livro, começaria a conversar e, pimba!, teríamos a entrevista.
Dito e feito. Cerca de meia hora antes do embarque do vôo para Porto Alegre, Mario Vargas Llosa surgiu evidentemente mais descansado e – o melhor – de extremo bom humor, junto com a comitiva do Fronteiras do Pensamento. Sentou em uma cadeira, cruzou as pernas, começou a conversar com um senhor barbudo, elegantemente vestido, e depois com Sylvia Colombo, que estaria no mesmo vôo para cobrir a palestra de Llosa no Rio Grande do Sul. Pedro Longhi aproximou-se e apresentou o correspondente da Dicta como “um especialista” nas obras do peruano. Ele sorriu com um certo ceticismo. Mas foi então que viu o livro em mãos. Perguntou:
“O que é isso? Es Faulkner?”
“Sim”.
“Está bem traduzido? Porque Faulkner é muito difícil de traduzir...”
O alto-falante anunciou o embarque do vôo. Rapidamente, Llosa se levantou e logo foi para um dos primeiros lugares na fila, com a passagem em mãos. Pedro Longhi disse: “Vai para a poltrona 12 D, ao lado dele!” Entramos no avião, colocamos as malas nos compartimentos, sentamos-nos nos respectivos lugares. Além do livro de Faulkner, também levávamos um exemplar da Dicta&Contradicta 5. Llosa reparou na capa de cor laranja – e a revista lhe foi oferecida imediatamente.
“Don Mario, esta é a nossa revista, chama-se Dicta&Contradicta e gostaríamos que o Sr. ficasse com um exemplar. Es un regalo”.
Muchas gracias, respondeu, e sacou seus óculos de um estojo personalizado onde tinha gravado um hipopótamo de prata – trata-se de uma de suas obsessões, que deu origem à sua peça teatral Kathie e o hipopótamo – e pegou a revista para ler com cuidado. Folheou com calma cada página. Sabíamos que Vargas Llosa lia e entendia português – afinal, ninguém conhece Euclides da Cunha e Guimarães Rosa impunemente. Parou na seção de Filosofia da revista e leu com atenção um artigo sobre um de seus heróis intelectuais, Isaiah Berlin, chamado O paradoxo de Berlin. Depois, viu que tinha um outro artigo sobre o massacre de Katyn. Virou-se e perguntou:
“Você viu o filme de [Andrej] Wajda sobre Katyn?”
“Sim, claro”.
“Belo filme, não? E que massacre terrível, não foi?”
Voltou ao ensaio sobre Berlin e começou a ler as três primeiras páginas. Então fechou a revista, reclinou-se na poltrona e começou a dizer, com sua voz pausada, firme e cristalina, no exato momento em que o avião levantou vôo e cortava as nuvens de São Paulo:
“Isaiah Berlin gostava do formato do texto breve, do tamanho de uma conferência, e nunca escreveu um livro completo. Não, desculpe-me, escreveu um livro completo sim. Foi sobre Karl Marx. É uma maravilha como tentativa de compreensão, porque ele não era um marxista, era um crítico feroz do marxismo. O esforço para compreender, para se colocar na pele de Marx e explicar o que seria o marxismo do ponto de vista filosófico, político e histórico, é algo admirável. Foi o primeiro livro dele que li e fiquei muito impressionado. Gostei tanto que queria ler mais coisas deste senhor. Mas foi difícil porque seus artigos eram publicados em revistas especializadas, acadêmicas, e Berlin resistia em reunir seus ensaios em livros, até que um discípulo seu, Henry Hardy, o convenceu a organizar coletâneas. Devemos muito a este aluno, porque Berlin tinha uma cultura prodigiosa, mas era muito discreto e tinha uma técnica toda especial para difundir suas idéias; nunca dizia que eram suas, sempre as expressava através de outros pensadores, e ele sempre os explicava, os interpretava e desenvolvia seus pensamentos de uma forma tão modesta, que parecia que não era Berlin quem falava e sim os outros que falavam por ele”.
“O Sr. também gosta muito de Ortega y Gasset, certo?”, perguntaram-lhe.
“Sim, admiro muito Ortega. Ele escreveu sobre tudo. Há um ensaio longo dele sobre a caça e os touros, magnífico, que é na verdade sobre o processo da civilização – de como das cavernas chegamos à modernidade. Ortega foi um personagem extraordinário que, desgraçadamente, estava muito à frente do seu tempo na Espanha e que não foi reconhecido como deveria ser em sua época – e as coisas andaram de tal forma que pareciam caminhar para trás! Foi algo muito injusto. Era um liberal e na Espanha do seu tempo não existiam liberais. Havia os conservadores, a tradição católica, os reacionários, e o lado democrático era composto de socialistas, anarquistas, comunistas, de postura radicalmente anti-liberal. Ortega fez coisas extraordinárias para modernizar a Espanha. Criou a Revista del Occidente, uma publicação de primeiro nível, que abriu as janelas e as portas da Espanha para o pensamento europeu, em especial o inglês, o francês e o alemão – pois tinha grande influência do neokantismo. Era a defesa de um pensamento liberal, laico, não-católico, democrático e tolerante que, na Espanha, formava uma vanguarda muito pequena. E então apoiou a República e criou uma associação muito valiosa, com intelectuais como Gregório Marañon e Perez Gálata, e escreveram um manifesto em que apoiavam, por exemplo, Unamuno. Nesta República se produziu uma polarização absolutamente feroz, com os anarquistas e os socialistas de um lado e os tradicionalistas de outro. Era uma violência incrível e, para completar, surgiu o autoritarismo de Franco!
“Com o fim da Segunda Guerra, Ortega achou que, com a vitória dos aliados, a situação poderia melhorar. Mas não foi o que aconteceu! É quando, depois de anos de exílio, resolve voltar à Espanha – e nada melhora. Foi uma situação crítica porque estava entre os fanáticos da direita e os fanáticos da esquerda – e a sua única solução foi entrar em uma espécie de exílio interior. Foi algo muito injusto. Quando caiu Franco, parecia que a Espanha voltaria à razão, com o retorno da democracia e da tolerância, e descobriram que Ortega esteve sempre certo.
“Além disso, era um grande escritor, um grande estilista. A prosa de Ortega é uma das maiores da língua espanhola, mas seu caso é sobretudo trágico, porque ele se antecipou muito em relação ao o que aconteceu na Espanha e não foi compreendido – isso só aconteceu muito tempo depois de sua morte. Por acaso a obra dele é conhecida no Brasil?”
“Sim, em especial A rebelião das massas...”
“Ortega anteviu duas coisas muito importantes de nosso tempo. O primeiro foi a revolução da massa, que será a grande protagonista da história moderna, a presença do homem-massa na vida social e na vida política. Depois foi a revolução da arte, como as mudanças que atraíram um público específico fizeram-na se distanciar do grande público, com as experimentações e os refinamentos que constituíram uma elite muito específica que se distanciou da realidade. Era um verdadeiro visionário!”
“O estilo de Ortega influenciou o seu estilo de ensaísta e de jornalista?”
“Não sei se isso acontece, mas toda vez que o leio tenho um imenso prazer. É um caso muito interessante. Há um ensaio muito bonito, muito lúcido de Octavio Paz chamado Sartre e Ortega. Ele argumenta que Ortega foi o que seria Sartre, mas o existencialismo sartriano já estava de certa forma no pensamento orteguiano. A diferença é que Sartre escreveu na França, onde foi imediatamente adotado e teve um público muito maior – enquanto Ortega escrevia para um cenáculo muito pequeno que quase não teve efeito na vida social de seu país. Se tivesse o mesmo impacto de Sartre, a história da Espanha teria tomado outro rumo. Outra grande diferença em relação a outros filósofos é que ele era um ótimo escritor, que gostava muito da literatura. Uma das críticas que faziam a Ortega é que era muito menos filósofo e muito mais literato, vejam só! E há uma frase maravilhosa sua, que é a seguinte...”
Neste instante, Llosa se ajeitou na poltrona do avião e fez uma pequena pausa, como se quisesse acentuar o que iria dizer, como se fosse algo muito importante e que deveria ser entendido corretamente. Então falou:
“La claridad es la cortesia del filosofo. Isto resumia Ortega! E isso não significa que não fosse profundo – ao contrário, era de uma profundidade extraordinária – mas sempre havia um esforço de comunicação, de escrever em uma prosa clara. Por exemplo, podia escrever sobre um tema muito complexo como a filosofia de Leibniz – que é um filósofo difícil, bem complicado. Ortega transforma isso em algo que você pode entender sem problemas. É o contrário da filosofia pós-moderna em que a incomunicabilidade parece ser a primeira virtude de todo filósofo!”, disse rindo.
“Ortega sempre falava de outro escritor que o Sr. também cita, que é Miguel de Cervantes. Qual a importância de Cervantes para a compreensão da sua própria obra?”
“O primeiro livro de Ortega é sobre Cervantes, Meditaciones del Quijote. Bueno, mira, se você escreve em língua espanhola, a primeira influência é Miguel de Cervantes, porque com ele o espanhol chega a um apogeu, a uma flexibilidade, a uma riqueza de vocabulário e também de reflexão interna que é essencial para a composição do romance. A linguagem narrativa tem um arranque definitivo com Cervantes – não a poesia, que devemos a Quevedo, Góngora e Calderón. Para contar a ficção e recriar as experiências da realidade, sem dúvida Cervantes foi o gênio consumado de seu tempo – ele criou o cânone que será quase impossível de se evitar no futuro. Além disso, o Quixote tem essa ambição do grande romance, de querer competir com o mundo de igual para igual. É claro que já havia isso antes na Espanha, em especial com um livro que admiro muitíssimo – Tirant Lo Blanc, de Joanet Martorell – que é a última aventura de cavalaria. Mas há uma espécie de distância irônica que começou com Cervantes e que rompeu todos os caminhos anteriores na língua espanhola.
“O exemplo de Cervantes é muito interessante. Teve uma vida triste. Sabemos muito pouco a respeito dele, mas o que sabemos é muito triste. Viveu problemas econômicos terríveis. Tudo sempre saiu mal para ele. Lutou na batalha de Lepanto, lesou permanentemente a mão esquerda. Foi capturado e ficou preso cinco anos na Argélia, em um cárcere verdadeiramente atroz. Todos os seus esforços para ser reconhecido, para ser um escritor fracassaram – não conseguiu ser reconhecido como poeta e como dramaturgo, que eram os gêneros nobres da época. Há em sua vida eventos muitos dramáticos, como o assassinato do jovem supostamente morto por ele, a pobreza, a suspeita de que suas filhas eram putas. Podia ser um homem muito amargo mas, apesar disso, apesar de estar cheio de rancor, escreveu um livro repleto de alegria, de generosidade, de calor, que é um canto pela vida, que são as aventuras do Quixote. É um livro que aposta que a vida é boa, que vale a pena de ser vivida, que as frustrações podem ser superadas, que as derrotas podem ser transformadas em vitórias. É uma prova de generosidade natural extraordinária que este romance tenha sido escrito por alguém que teve uma vida sombria, amarga, cheia de frustrações. É formidável!”
“Cervantes é também o exemplo da vocação do escritor, não acha?”
“Totalmente! Dedicou-se a trabalhos muito desagradáveis para ganhar a vida – entre eles, o de coletor de impostos –, porque, afinal, não podia comer de literatura. Foi tudo muito amargo, mas claramente isso foi canalizado para a literatura. É o exemplo da vocação pura porque só recebeu o reconhecimento com o Quixote – e, como se não bastasse, teve de enfrentar uma continuação apócrifa que teve mais sucesso do que o seu romance. Es terrible, no?”, riu.
“O Sr. sempre fala de três modelos de escritores – Cervantes, Faulkner e Flaubert...”
“A ordem de importância é, em primeiro lugar, os romances de aventuras que li quando menino: Alexandre Dumas, Salgaria, Júlio Verne. Mas o primeiro grande escritor que teve uma influência decisiva foi Victor Hugo, com Os miseráveis. Tenho um livro sobre ele, La tentácion del impossible, que é uma homenagem a este autor que me marcou na infância, que é importantíssimo para mim. Depois foi Sartre, em especial quando eu estava na universidade – sobretudo as idéias sobre a literatura, sobre o compromisso do escritor, seus romances e peças, isso tudo me marcou profundamente. Até tenho um livro chamado Entre Sartre y Camus, que fala um pouco desta relação obsessiva com o escritor francês, que era tamanha que meus amigos me apelidavam de sartrecillo valente (sartrezinho valente)!
“Depois veio Camus, que, no fim, foi quem ganhou a batalha em relação a Sartre, apesar de hoje eu ainda ter uma grande admiração por este último. Aí apareceu Faulkner, que li também pela primeira vez na universidade com deslumbramento. Sempre digo que foi o primeiro escritor que li com lápis e papel na mão, com quem aprendi sobre a forma do romance, sobre a maneira de organizar a história, sobre os pontos de vista, sobre o tempo de uma narração. Foi o mestre que me ensinou a importância da técnica e da escritura e que nunca me decepcionou! Cada vez que leio Faulkner sempre descubro coisas novas, insuspeitas.
“E então vem Flaubert, que descobri quando já estava em Paris. Claro que é um escritor importantíssimo pela simples razão de ter escrito Madame Bovary. Mas é importante por outro motivo: é um exemplo para o escritor que está começando, porque é alguém que constrói o seu próprio talento. Não era um grande escritor quando começou, era muito romântico, estava intoxicado pelas influências de sua época. Contudo, quando resolve escrever Madame Bovary, decide que será algo que resultará de esforço, ambição e sobretudo disciplina. Sim, foi um talento construído em cima de muita disciplina. Tinha uma autocrítica implacável!”
“O Sr. aplica esta disciplina flaubertiana em seu trabalho?”
“Sim, claro, não consigo escrever com facilidade. Custa-me muito trabalho. Necessito sempre corrigir, reescrever o que faço. O que eu mais gosto é o processo de escrever, de saber como vai a história enquanto se produz uma espécie de magma – que é um trabalho no qual descubro a história que quero contar. Flaubert dizia com razão que escrever é uma maneira de viver. Isso é pura verdade. Há de se organizar a sua vida inteira para o ato de escrita – porque ela não se resume somente ao momento em que você está sentado. Você escreve a sua vida inteira – tudo o que sente, lê, faz, acontece consigo, tudo isso é canalizado para o trabalho criativo e é a única maneira de realizar as obras autênticas. E é por isso que Flaubert é o exemplo para um jovem que começa a escrever, para a vocação da literatura”.
“Há uma síntese de Flaubert e Faulkner em seu Conversa na Catedral...”
“Sim, não só de Flaubert e Faulkner, mas de todos os autores que mencionei anteriormente e que foram importantes para mim”.
“Como o Sr. chegou àquela forma literária experimental em Conversa na Catedral?”
“Ora, trabajando! Trabajando muchissimo. O primeiro ano de escritura de Conversa na Catedral foi às cegas, não sabia o que fazer, como poderia integrar todo o material. No primeiro ano de qualquer romance, sempre trabalho às cegas. O momento fundamental foi quando pensei que a coluna vertebral da história deveria ser uma conversa, uma conversa central que vai do princípio ao fim da história, que vai e volta – e pouco a pouco esta idéia me levou a adentrar em diversos personagens, diversas épocas, diversos meios sociais. Mas para chegar a isso trabalhei muito.
“Desde o início eu tinha algo muito claro sobre o que queria contar no romance. Queria relacionar eventos do meu passado sobre os fatos dos oito anos da ditadura de Ódria. Mas não contar a história da ditadura em si; queria contar como um regime dessa natureza, muito corrompido, podia contaminar e envenenar toda a sociedade; como essa corrupção chega, de alguma maneira, a invadir as atividades menos políticas, como as amizades, a vida profissional, a família, o amor, a universidade, o jornalismo, a vida intelectual. Foram os anos que também vivi com a mesma idade do protagonista, Santiago Zavala; foi toda uma vida que teve a experiência da ditadura. De todos os romances que fiz, foi o que me deu mais trabalho para conseguir uma forma literária adequada, mas só tive consciência dela quando já estava muito avançado no trabalho”.
“O Sr. também faz essa anatomia da ditadura em A Festa do Bode...”
“Sim, com uma diferença: agora a história está sendo narrada a partir do próprio ditador. É o verso e o reverso de uma ditadura. Em Conversa na Catedral, há a ditadura que se projeta na vida de toda uma sociedade; em A Festa do Bode, é a ditadura vista de dentro, na perspectiva do ditador, o próprio Trujillo”.
“Em A Festa, fica uma pergunta no ar, a de se é possível ter uma espécie de resistência em um governo ditatorial...”
“O que queria mostrar em A Festa do Bode é que os ditadores não estão feitos, eles se fazem. Fazem-se com a cumplicidade de seu povo, com a cumplicidade de suas vítimas. Os ditadores têm sempre o apoio de suas vítimas. Não é verdade que ele desce do céu e abraça o povo – isso é uma fórmula, digamos, muito cômoda. Uma coisa é certa: os ditadores são estimulados, criados pelo servilismo. Claro que uma ditadura pode ser resistida, pode ser derrotada, mas desgraçadamente muitas vezes elas não encontram esta resistência. Ao contrário: o povo abre os braços ao ditador porque culpa os problemas sociais que são muitos e alega que a democracia é corrupta. Cria-se o mito do homem providencial. Se esta resistência desaparece, os ditadores se tornam monstros. Obviamente, isso não acontece só na República Dominicana, onde se passa o romance, mas em qualquer ditadura”.
Vargas Llosa parou de falar neste instante porque o comissário de bordo ofereceu a tradicional bebida dos vôos comerciais. “Queria uma água, por favor” – é a única coisa que pediu. “Agora gostaria de parar de falar, se possível, pois não quero cansar a minha voz”, disse com toda a polidez possível.
5
Ernest Hemingway dizia que a principal característica de um escritor é saber onde e como parar. Ele sempre deixava uma frase inacabada para recomeçar no dia seguinte, sem saber para onde ir, enquanto escrevia um conto ou um romance. Saber parar exige, segundo Hemingway, um treino e, sobretudo, uma disciplina peculiar.
Esta é uma das coisas que marcam alguém que conhece Mario Vargas Llosa. Ele sabe quando parar, sabe como se deve parar, sabe muito bem parar sem que você se sinta insultado. Sabe estabelecer seus limites – e quer ser respeitado por isso. Afinal, tinha razão em pedir que parasse de falar depois de meia hora de conversa – ele enfrentaria uma coletiva de imprensa à tarde, uma palestra à noite e provavelmente logo depois outro jantar com investidores ávidos por estarem ao lado do Nobel. Não se trata de um trabalho qualquer: Vargas Llosa vive disso, é o seu pão, o seu sustento.
Isso implica um profissionalismo raras vezes visto e que impressionou os organizadores do Fronteiras do Pensamento. Llosa cumpriu tudo o que estava na agenda sem nenhuma reclamação. Além disso, na coletiva de imprensa em Porto Alegre, mesmo suando em bicas – a sala não estava refrigerada de forma adequada e era demasiado pequena para a quantidade de jornalistas que se aboletavam como chacais em volta de uma presa –, o laureado ainda contou piadas, fez gracejos e agüentou estoicamente todas as perguntas, inclusive uma de uma jornalista de uns quarenta anos que, no final, quase lhe fez uma declaração de amor.
Como se não bastasse, encontrava tempo para escrever. Segundo Pedro Longhi, Llosa dormiu apenas quatro horas por noite durante a sua passagem no Brasil. Acordava por volta das cinco horas da manhã e escrevia até as sete. Só então tomava o seu café da manhã, lia o jornal do dia e estava pronto para as atividades programadas.
É provável que o texto em que ele trabalhava durante essas duas horas matutinas fosse a palestra que iria ler naquela noite. O auditório da UFRGS, também conhecido como Salão de Atos, estava lotado na sua capacidade de 1200 pessoas. Quando Vargas Llosa foi anunciado no palco pelo secretário municipal de Porto Alegre, Sergius Gonzaga, o público aplaudiu de pé, sem saber ainda sobre qual seria o assunto a ser ministrado. De acordo com a organização do evento, foi a primeira vez que aquilo aconteceu em toda a história do Fronteiras.
O público era composto de pessoas da classe alta e média gaúcha. Todos tinham um livro de Llosa nas mãos – era prevista uma sessão de autógrafos logo depois da palestra. Circulavam exemplares de Travessuras da menina má, Tia Júlia e o escrivinhador, Pantaleão e as visitadoras – em geral, acompanhados de gaúchas visivelmente excitadas pela possibilidade de verem o peruano, que já foi um latin lover na década de 70 e que agora posava de elder statesman das letras.
Mal sabiam o que as esperava. Mario Vargas Llosa se postou atrás do púlpito, pegou umas folhas de papel e, com uma voz viril, anunciou o título de sua conferência: Breve discurso sobre la cultura. O começo foi uma série de observações sobre a cultura contemporânea, com um toque de desencanto ali, ceticismo apocalíptico acolá, até que a palestra mostrou a que veio, quando Llosa disparou afirmações politicamente incorretas sobre Michel Foucault, o guru de qualquer curso de graduação de humanidades da UFGRS (“Porto Alegre é um reduto de foucaultianos e derridarianos”, disse o escritor e tradutor gaúcho Pedro Gonzaga). Uma corrente de eletricidade percorreu o público e uma pergunta veio à mente de todos: Até que ponto ele chegaria? Sim, Vargas Llosa criticou Foucault com elegância, mas não deixou a coragem de lado e abordou os pontos polêmicos: sua morte trágica de AIDS, seu envolvimento excessivo com a pesquisa sobre o homossexualismo e, em especial, o reducionismo ao igualar qualquer manifestação cultural a uma grande conspiração para manter sabe-se lá quem no poder. E, sim, o Nobel também deu uma solução, desta vez inspirada nas figuras de Gertrude Himmelfarb (“quem?”, podia-se ouvir em silêncio a pergunta do público) e Lionel Trilling (“quem?” duas vezes, foi o suspiro de outras pessoas que só queriam que a palestra terminasse), representantes de uma cultura humanista que, segundo Llosa, não existia mais no mundo ocidental. Este humanismo era único em sua procura pela experiência original que estimula o artista ou o pensador a ir além das aparências e captar aquilo que só pode ser encontrado “olhando no abismo” – expressão que Trilling usava para estimular seus alunos a ler com atenção os poemas de T.S. Eliot e W.B. Yeats, que Himmelfarb toma emprestado para sua crítica a Foucault e que Llosa também aproveitou para dar o antídoto àquela platéia sulina que não sabia o que fazer com tamanho desafio.
A palestra terminou, os aplausos aconteceram como era esperado e Vargas Llosa começou a ser sabatinado por Sergius Gonzaga, depois pelo público que enviava perguntas embrulhadas em papéis entregues pelos organizadores. O peruano estava completamente à vontade, com a sensação de dever cumprido. Entretanto, houve um momento no qual deu uma amostra que iluminava a palestra que acabara de proferir – e, por conseguinte, iluminava um pouco toda uma visão de mundo. Foi quando lhe perguntaram – talvez pela milésima vez naquela semana – se o prêmio Nobel o deixava satisfeito pelo reconhecimento à sua obra. Llosa poderia ter saído à francesa ou pela tangente, mas desta vez fez algo inusitado: discorreu com vigor e brilhantismo sobre um dos maiores escritores italianos do século XX:
“Os grandes escritores só se tornam catedrais vislumbradas pelo público quando já não estão mais aqui. Penso sempre em um dos casos mais trágicos da literatura moderna: o de Lampedusa, autor de um dos romances mais extraordinários de nosso tempo, Il Gattopardo. Era um homem de extrema cultura, de extremo talento, um nobre aristocrata. E só escreveu este único romance, que nos deslumbra cada vez que lemos, e foi recusado por sete – repito, sete! – editoras italianas. Foi classificado como impublicável. O incrível é que o maior intelectual de sua época – Elio Vittorini, um marxista – escreveu um relatório de leitura para a editora Einaudi dizendo que o livro era ‘um bom romance, mas que, por razões ideológicas, não deveria ser publicado’. Lampedusa morreu sem ver o seu livro nas prateleiras, acreditando que era um escritor medíocre, porque não era adotado pelas editoras. Somente anos depois foi descoberto por um editor – Giorgio Bassani, o autor de O Jardim dos Finzi-Contini – que viu que o romance tinha uma qualidade espantosa e decidiu publicá-lo. Agora afirmam que é o maior romance italiano do século XX. E Lampedusa morreu sem saber disso! Sabe-se lá onde ele está, mas certamente agora está rindo da nossa cara devido à cegueira de uma época que proibiu todo um público ter esse livro em mãos”.
Por que Vargas Llosa defendia Lampedusa com tamanho empenho? O que os dois teriam em comum? Um estava vivendo a glória em vida, o outro quase entrou para a vala do esquecimento quando morreu. Talvez o escritor que leva a sua vocação a sério sempre tenha a frustração como uma sombra que o persegue; e, no caso do laureado, é possível que a sensação de ser alguém que ficava embaixo da roda da fortuna tenha sido um impulso que, de forma paradoxal, o tenha levado a ser cada vez mais ambicioso e ousado em sua obra. Os prêmios, parecia dizer, eram importantes, mas nada mais importava exceto a literatura, sempre aprimorada, mesmo que dificuldades como a cegueira ideológica ou a incompreensão da sociedade onde vive aparecessem cada vez mais.
6
Na manhã seguinte, estávamos no último andar do Hotel Everest, no centro de Porto Alegre, enquanto Mario Vargas Llosa era entrevistado por Roberto D’Ávila. Perguntaram a Pedro Longhi quem iria com o escritor no vôo de Porto Alegre a São Paulo, de onde embarcaria depois direto para Nova York.
“Ninguém. Ele irá sozinho”.
“Escute, e se formos com ele no vôo de volta para São Paulo? Afinal, um Nobel não pode andar sozinho por aí”.
“Boa idéia! Vou avisá-lo agora mesmo”.
Llosa foi informado de que a Dicta o acompanharia no vôo de volta. “Sem problemas, já viajamos na ida, não foi?”, foi sua reação.
Pedimos a Longhi o número da poltrona de Llosa. “4d”, disse.
Com esta informação, fomos ao check-in da TAM, dissemos que acompanharíamos um Prêmio Nobel e a moça foi solícita para nos colocar ao lado dele – na poltrona 4e.
Às 18h30, a Dicta encontrava-se com o laureado na sala de embarque VIP da TAM, esperando pelo vôo JJ 3296. O aeroporto de Porto Alegre estava um caos: pessoas correndo para não perder seus lugares nas filas, outras espremidas entre as cadeiras duras, algumas se distraindo com seus lap-tops e Ipads.
“Olá, Don Mario!”
Sentamo-nos em dois sofás enormes. O som ambiente era dominado por avisos de embarque, canções que faziam parte da trilha sonora da novela das seis e a voz rouca de Luis Inácio Lula da Silva pedindo aos eleitores que votassem na sua candidata na eleição presidencial. Llosa estava muito mais relaxado e seu timbre também demonstrava uma calma que não se via no dia anterior.
Se Hemingway dizia que o que caracteriza um escritor é saber como e onde parar, alguém se esqueceu de lhe dizer que um escritor também deve saber como recomeçar. E foi isso que fez Llosa: começou como se a conversa no vôo de ida não tivesse sido interrompida – e assim voltamos a falar de William Faulkner.
“Você sabe que uma vez fui à casa de Faulkner em Oxford, Mississipi?”, disse como se nada tivesse acontecido nesse meio tempo, “E lá vi o manuscrito de Palmeiras Selvagens, estive com ele em mãos! Uma experiência incrível! Para mim, o melhor livro de Faulkner continua sendo Luz em agosto – aprendi muito com esta narrativa, usei-a bastante em A cidade e os cachorros. Uma das grandes perguntas que ficou comigo quando fui à Oxford era: como foi possível surgir alguém como William Faulkner, porque aquele lugar era um verdadeiro fim de mundo”.
“Deve ter sido um milagre – de certa forma, comparável ao de Jorge Luis Borges na Argentina...”
“Não, com Borges foi diferente, porque havia todo um ambiente intelectual que o estimulava, como os seus amigos da revista Sul, e, mesmo com o caudilhismo e o autoritarismo, a Argentina tinha uma instrução literária superior a qualquer país latino-americano. Mas para o brilhantismo de Faulkner, se ficarmos só em Oxford, Mississipi, não há uma explicação possível!”
“Como estão indo as suas aulas em Princeton? O Sr. escreve um texto antes de cada aula?”
“Não as escrevo, faço algumas fichas. Apresento o tema durante uma hora, uma hora e meia, e depois na segunda metade começamos a discutir em grupo, fazemos alguns trabalhos práticos. São dois cursos que tenho lá: um sobre Borges e o outro sobre técnicas do romance. Faço tudo em um único dia, do contrário teria de ficar três dias em Princeton – e não gosto nada disso. Vou um dia antes, durmo em um albergue para professores, dou as aulas e volto para Nova York no dia seguinte, logo pela manhã, quando fico livre o resto da semana. É uma universidade muito bonita, tem uma excelente biblioteca.
“Agora, diga-me uma coisa: você escreve?”, disse ele. “Contos, romances, ensaios?”
“Sim, escrevo ensaios e contos.”, foi a resposta. “Agora estou escrevendo um romance”.
“É o seu primeiro?”
“Sim”.
“Já foi publicado?”
“Não, sou muito recatado nessas coisas. Acho que sofro de um perfeccionismo flaubertiano”.
“É uma mania sempre boa, mas há de se ter um certo limite. Claro que se deve ter um perfeccionismo, escrever, reescrever. Contudo, não se pode ficar nessa insegurança porque senão você fica paralisado”.
“O meu problema não é a insegurança. Acho o que escrevo bom”.
“Ah, sim...”
“Em especial no Brasil, porque a literatura ficou um tanto provinciana nos últimos anos. Não temos mais exemplos de escritores disciplinados, como tínhamos nos anos 50 e 60, como um Osman Lins, um Herberto Sales, um Lúcio Cardoso”.
“Diga-me uma coisa: aqui também tem essa mania da literatura light?”
“Sim, aqui há uma indústria da auto-ajuda. Mas o que acontece principalmente é o fato de pessoas que não têm nada a ver com a literatura serem alçados como escritores da noite para o dia”.
“Vendem por causa da publicidade e não pela qualidade literária em si, não?”
Já eram 19h10 e não fomos chamados ao embarque. Este era o horário de partida do vôo para São Paulo. Perguntamos o que aconteceu à hostess da TAM.
“Realmente, houve um atraso. Os senhores podem se sentar novamente que, assim que receber o anúncio, avisarei o mais rápido possível”, ela respondeu.
Voltamos a nos sentar. Vargas Llosa começava a mostrar sinais de preocupação.
“Não posso perder o avião para Nova York em hipótese alguma...”, disse.
“São 19h30. Temos ainda duas horas de vantagem, porque o vôo demora só uma hora”.
“Esses atrasos sempre ocorrem?”
“Sempre. Advinha de quem é a culpa? Do governo, é claro. Ele não soube prever o aumento de passageiros – e todos estão apreensivos em relação à Copa do Mundo e às Olimpíadas, que acontecerão em breve. Aqui no Brasil ocorre aquilo que Octavio Paz chama de o ogro filantrópico...”
“Ah, sim, o ogro filantrópico... Grande ensaio, não?”
“O Brasil tem um estado onde os tentáculos da burocracia atrapalham tudo. Foi o que Sr. tentou impedir no Peru com a sua candidatura à presidência, não foi?”
“Sim, era o que eu queria. Mas não deu certo”.
“Um dos trechos mais interessantes de sua autobiografia, Peixe na água, é o seu encontro com o ex-presidente Fernando Collor de Mello...”
“Sim, era um presidente que queria fazer as mesmas coisas que eu, parecia ser um verdadeiro liberal. Pena que os escândalos de corrupção mostraram uma outra face!”
“Um dos mentores de Collor foi José Guilherme Merquior...”
“Sim, foi um grande amigo! Um homem muito inteligente, culto, um dos primeiros a apresentar as mesmas críticas a Foucault que fiz na palestra de ontem”.
“Se não me engano, o livro de Merquior sobre Foucault foi um dos únicos escritos por um brasileiro para uma coleção estrangeira – a Routledge Classics...”
“E encontrava tempo para escrever inúmeros ensaios, artigos jornalísticos, aprender línguas! Sabia sobre quase tudo. Era muito impressionante, porque eu sempre me perguntava, cada vez que o encontrava, como ele arranjava tempo para tudo isso...”
“Aliás, a sua palestra de ontem foi muito corajosa, em especial a parte sobre Foucault”.
“É o primeiro texto que escrevi sobre uma série de ensaios que quero fazer a respeito do tema da cultura contemporânea. Trabalho nele há algum tempo e acho que vai demorar para fazer algo mais completo. Mas queria apresentar alguma coisa ao público”.
“Disseram que, com o Prêmio Nobel, ofereceram novos convites para o Sr. se candidatar à presidência da República no Peru. Voltaria a encarar a mesma situação de vinte anos atrás?”
“Claro que não! Precisaria ter condições especiais que nunca tive e não tenho”.
“Aquela deve ter sido uma experiência terrível para o senhor. Ainda mais com o Sendero Luminoso em cada esquina...”
“Sim, havia toda a violência que infestava o país e não podia se fazer muita coisa”.
“O Sr. acha que tinha condições para ser um bom estadista?”
“Bueno, mira, eu tinha uma equipe excelente e um bom plano de governo. Então sempre achei que, nesse sentido, poderia ser um bom governante. Ocorre que fiquei a campanha inteira elaborando o plano de governo e então descobri que não se ganham as eleições com planos de governo e sim com coisas mais superficiais”.
“Em suas memórias há uma conversa que teve com sua esposa Patrícia. Nela, o Sr. argumenta que entrou na disputa política por uma ‘obrigação moral’. Mas ela diz que o Sr. entrou na eleição porque queria viver o seu ‘romance total’. Acha que é verdade?”
Llosa riu ao relembrar este momento de sua vida:
“Sim, é verdade! Era a tentativa de escrever o meu romance na vida real – e por que não, é uma possibilidade de ver as coisas por essa ótica, hem?
“E, de certa forma, as suas memórias podem ser vistas como um ‘romance total’ que explica a história do Peru nos últimos cinqüenta anos, culminando com a sua própria história como escritor...”
“Concordo plenamente, as minhas memórias podem ser lidas dessa forma, sem dúvida. Agora tudo isso que vivi deve ser entendido da seguinte maneira: todas as idéias que defendi nessa eleição eram muito impopulares. Agora, são extremamente populares e aceitas por todos. É curioso como muda a cultura política de uma época, não?”
“Quando o Sr. perdeu a eleição, John Updike escreveu um artigo na New Yorker agradecendo ao povo do Peru pela sua derrota, afirmando que assim a literatura ficaria mais contente com seus romances”.
“Conheci Updike uma vez em Miami, em uma dessas feiras de livros. Era um homem divertido, muito esperto, com uma paixão por música e pintura. E, uma coisa que me impressionou, era um homem com grandes preocupações religiosas, um leitor de Karl Barth”.
“Há um romance da fase tardia dele chamado Na beleza dos lírios, que é magnífico...”
“Updike escreveu muitíssimo. Li alguns de seus contos – era um excelente escritor nesse gênero –, muitos de seus ensaios”.
“E depois das eleições no Peru, o Sr. escreveu Lituma nos Andes”.
“Sim, Lituma nos Andes foi o romance que escrevi logo depois da minha derrota, Foi baseado em todas aquelas experiências que vivi na campanha, com a violência irracional que rondava o país. Não era só o Sendero Luminoso, mas também os sacrifícios humanos que ocorriam naquele lugar dos Andes, além de, obviamente, toda a desigualdade social que existia por todo o país e da qual não se podia escapar.
“Mas acho melhor verificarmos como está esse vôo, porque não posso me atrasar em Nova York”.
Neste instante, surgiu a hostess, avisando-nos de que o embarque para o avião em direção a São Paulo já estava pronto e que podíamos ir. Rapidamente, pegamos nossas malas e fomos para a fila – que serpenteava por todo o salão em uma desordem que ninguém parecia entender.
Na dúvida, Vargas Llosa resolveu ir para o início da fila, em um ritmo bem apressado. Avisaram-no: “Mario, você tem de ir para o final da fila”.
Ele voltou. O fim da fila ficava muito longe, mas ela andava rapidamente. Enquanto Llosa caminhava com passos ágeis, um chileno cholo, um daqueles tipos que poderiam fazer parte de um de seus livros sobre as selvas peruanas ou os colégios militares onde todos são humilhados, o abordou no meio do caminho:
“Congratulaciones, Vargas Llosa! Viva el Chile!”
E eis que ele sorriu para o chileno, agradeceu, mas logo em seguida virou-se para trás e comentou, em um tom terno e também irônico:
“Mas yo no soy chileno, soy peruano!”
Uma espanhola cedeu seu lugar na fila para Llosa e o parabenizou pelo Nobel. Novamente, ele sorriu e disse muy encantado, muy gentil.
Ao chegarmos ao avião, sentamos lado a lado. Colocamos a mala do escritor no compartimento acima a pedido do próprio – “Tenho um problema no ombro e tenho medo que o peso da mala o desloque”.
O avião começou a andar pela pista às 20h20 e partiu dez minutos depois. Neste meio tempo, o comissário de bordo e duas aeromoças distribuíram a revista da TAM que tinha entre seus destaques justamente uma entrevista com Vargas Llosa. O próprio pegou a publicação e folheou várias vezes, talvez para checar o que tinha dito ao repórter. Ofereceram também umas balinhas de doce de leite – aceitas prontamente e mastigadas em um ritmo circular. Quando o avião já tinha cruzado a cidade de Porto Alegre, o peruano tentou dormir por cinco minutos. Não conseguiu. Voltou-se para mim e perguntou:
“Você trabalha como jornalista e também como professor?”
“Sim, mas ultimamente deixei de lado as aulas”.
“Por quê?”
“Porque sentia que os alunos não queriam um conteúdo mais profundo. Uma vez dei uma aula sobre Moby Dick e, não sei se foi culpa minha, mas percebi que os alunos queriam algo mais leve, mais light”.
“Bem, gostar de dar aulas também depende muito dos estudantes”.
“Como são os seus alunos em Princeton?”
“São todos interessantes. São cerca de vinte por curso. Trata-se de seminars, conhece o termo?”
“Sim. São cursos específicos para um público selecionado...”
“Isso mesmo. Tenho vinte alunos por curso. Foi uma exigência minha – para não dispersar sobre o tema, entende? O mais interessante é que não são apenas alunos de literatura ou humanidades. Tenho, por exemplo, dois alunos da área de ciências naturais e um outro que faz matemática. A interdisciplinariedade é algo muito estimulado em Princeton.”
“Sei que o Sr. tinha um medo terrível de andar de avião. Continua a ter?”
“Não. Não gosto de aviões, mas tive de me acostumar devido ao meu trabalho. Se você começar a pensar que está a mais de 1000 pés de atitude do chão – mesmo que todas as estatísticas o informem que é um dos meios de transportes mais seguros do mundo – não é a toa que a sua mente começa a ficar apavorada. Tive amigos que tinham verdadeiro pavor de avião – como Carlos Fuentes e Garcia Márquez. O primeiro viajava só de navio, o que causava um atraso considerável em suas andanças pelo mundo – ele era diplomata, o que só complicava – e o segundo se entupia de tranqüilizantes quando era obrigado ir a outro país para uma palestra ou receber um prêmio.
“Havia um outro amigo meu, um romancista e também advogado chamado Carlos Martinez Moreno – era um sujeito brilhante e um dos poucos homens que falava exatamente como escrevia – que, uma vez, quando viajamos juntos de avião, conservou nas mãos, durante todo o trajeto, uma edição toda amarfanhada, de tanto ser manipulada, de Madame Bovary, que ele não lia, mas não parava de alisar. Era como um amuleto que lhe garantia um vôo calmo e seguro. Ele havia levado esse livro na sua primeira viagem de avião e, a partir daí, fez dele o companheiro de todas as viagens. Sua intuição, sua fantasia ou sua loucura lhe diziam que esse talismã livresco, e não o bom funcionamento dos motores ou a experiência dos pilotos, protegia os aviões em que viajava de qualquer contratempo, de qualquer perigo.”, disse rindo.
“Temos também uma mania em comum”.
“Ah, é? E qual?”
“Gostamos de sair de livrarias com pelo menos uns cinco livros embaixo do braço”.
“É verdade? É isso mesmo: gosto sempre de comprar, mesmo que seja um único livro, quando entro em uma livraria, em qualquer país onde estiver”.
“Não implicam com o Sr. sobre essa mania? Sempre implicam comigo quando compro muitos livros numa livraria...”
“Fazem a mesma coisa comigo! Não entendem que é uma questão de princípio! Sempre comprei muitos livros, mesmo que eu saiba que talvez nunca irei lê-los uma vez na vida. O ponto todo é ter sempre um projeto de leitura e não perder a curiosidade sobre o que acontece na literatura e no mundo do pensamento...”
“O Sr. se preocupa com essa onda de livros eletrônicos, de leitura via internet – enfim, com a perda do livro como objeto material?”
“Um pouco, tenho de admitir. Para mim, a leitura é tão importante quanto a escrita. Ela é uma continuação do trabalho, da vocação de escritor. É um daqueles momentos solitários que você precisa para armazenar dentro de si toda a sua experiência, toda a sua vivência – e é uma preparação para o momento seguinte, que é o da criação literária, da escritura, do trabalho braçal propriamente dito. Com o livro eletrônico, tenho o medo de que essa sensação material, táctil, do livro como objeto que pode me acompanhar neste momento de solidão, possa se perder facilmente às custas de uma eficácia técnica que, na verdade, a leitura nunca quis ter na vida dos homens”.
“O Sr. fez várias coisas nesta viagem de três dias no Brasil e parece que ainda encontrou tempo para escrever. Como conseguiu isso?”
“Muito simples: acordo todos os dias às cinco da manhã, seja onde estiver. Das cinco às sete da manhã escrevo o livro de ficção em que estou trabalhando. Depois, vou tomar o café da manhã, caminho um pouco pelos arredores onde estou hospedado, e volto a escrever – desta vez, os artigos e os ensaios que tenho de entregar dentro do prazo estipulado pelas editoras ou pelas redações”.
“Mas se o Sr. acorda todos os dias às cinco da manhã, quanto tempo consegue dormir?”
“Sempre durmo por volta de quatro a cinco horas por noite, não mais do que isso. É algo que consigo fazer desde os tempos que morava em Paris”.
“Desculpe-me perguntar isso, mas a sua esposa também segue o mesmo ritmo de sono?”
“Sim, Patrícia também dorme por volta de quatro a cinco horas por dia. É um ritmo que me impus e que, ao mesmo tempo, veio naturalmente. Escrever das cinco às sete da manhã é o melhor horário para produzir uma ficção: todos ainda estão dormindo, tudo ainda está quieto, a cidade não começou a se movimentar, fico em um estado de vigília que é necessário para o impulso da criação literária”.
“Ainda se mantém atualizado com o que acontece na literatura de língua espanhola? Poderia dar algumas dicas?”
“Olha, há um livro que li recentemente e que me impressionou muitíssimo, chamado El olvido que seremos, de Hector Abad Faciolince. Até escrevi sobre ele em minha coluna no El Pais. É muito bonito: o autor conta a história de seu pai, que foi perseguido e morto pela guerrilha narcoterrorista da Colômbia, e quando foi encontrado tinha um pedaço de papel no bolso do casaco. Era um verso de um poema de Borges e que dá o título ao livro – el olvido que seremos (o esquecimento que seremos). Ao mesmo tempo que se conta a história do pai do autor, temos um panorama do que era viver na Colômbia daquela época, de como o povo enfrentava os problemas da violência e da corrupção política.
“Gostei também muito do que li de Roberto Bolãno, especialmente Os detetives selvagens. E não, ainda não encontrei tempo de ler aquele livro enorme dele, 2666. Mas ele escreve muito bem, tem ambição, sabe construir um romance, contar uma história.
“Um outro autor que me impressionou, que tem livros muito bonitos, é Antonio Moniz Molina. Ele escreveu um prefácio excelente para a edição de contos completos de Juan Carlos Onetti. Por acaso Onetti é publicado no Brasil?”
“Sim, boa parte dos romances e os contos já foram publicados aqui”.
“La vida breve, El astillero, Junta-cadaveres?”
“Isso mesmo. E também os contos completos, não posso me esquecer...”
“Ótimo que isso aconteceu! Onetti é um autor essencial para se entender a América Latina e para mostrar como a língua espanhola atingiu outro patamar. É um autor que acredito ser, em alguns momentos, do mesmo nível de Cervantes, sabe?
“Outro escritor muito bom é Javier Mariás. É muito ambicioso – publicou recentemente um livro enorme, dividido em três partes, Tu rostro mañana (Teu rosto amanhã). Mas gosto muito de um livro dele mais curto, chamado Corazón tan blanco (Coração tão branco), que é um primor de construção novelesca, com umas frases longas, que se repetem, que mostram um domínio admirável da elasticidade do espanhol”.
“E da literatura da língua portuguesa? Está familiarizado com o que é publicado atualmente?”
“Gosto de Antonio Lobo Antunes, apesar de que, às vezes, acredito que há muitas palavras no estilo dele, um problema que também sofria Saramago. Mas acho que isso é uma questão da própria língua portuguesa, que tem essa tendência de ser caudalosa. Exceto, é claro, com Fernando Pessoa, porque com ele isso não acontece.”
“Mas Pessoa foi alfabetizado também na língua inglesa, o que lhe deu um controle da forma e da precisão da língua portuguesa...”
“Sim, é verdade, Pessoa é absolutamente controlado na expressão de suas emoções, algo raro de se ver no português, talvez devido a esta influência do inglês. Mas isso pouco importa: O livro do desassossego é uma coisa magnífica, assombrosa, não?”
“Uma vez o Sr. escreveu uma frase que hoje só pode ser lida de maneira irônica, em um ensaio sobre um conterrâneo seu, Sebastián Salazar Bondy: ‘Todo escritor peruano es un derrotado’. Depois do Nobel, o Sr. ainda tem essa sensação?”
“Bem, depois do que aconteceu na última semana, acho que esta frase só pode ser interpretada como uma brincadeira”, respondeu rindo. “Mas, como já disse em outras vezes, não imaginava ganhar o Nobel, por causa das minhas posições políticas, que eram contrárias as da maioria dos laureados. Ganhar prêmios é muito bom, não tenha dúvida, mas o que importa é continuar o trabalho da escrita, aperfeiçoar-se sempre na técnica e tentar ficar à altura dos nossos modelos, dos nossos exemplos. O que importa é a tentativa, não o fim do percurso. Afinal de contas, escrever é sempre tentar vencer as frustrações de não chegar aos pés de um Faulkner, de um Flaubert, de um Victor Hugo – e reconhecer que, provavelmente, jamais chegaremos aos seus pés”.
Já eram 21h20 quando o avião pousou em Guarulhos, andando calmamente pela pista, como se os pilotos não se importassem com o fato de que Mario Vargas Llosa começava a ficar realmente nervoso com o atraso e com a possibilidade de que poderia perder o vôo para Nova York, marcado para sair às 22hs em ponto.
“Não posso perder o vôo para Nova York, não posso perder...”, repetiu três vezes.
O avião parou na pista às 21h30. Os passageiros começaram a se aboletar no corredor. Estávamos na quarta fileira. Mario novamente pediu para tirar a mala do compartimento. Ele se levantou e, ao ver pela fresta da janela que a escada que se posicionava para o desembarque não estava ligada a um terminal, seu rosto, antes caracterizado por uma compleição calma e serena, ficou vermelho, e seus olhos castanhos cor-de-mel ficaram abertos e subitamente injetados por uma aflição bastante compreensível. Só havia um pensamento em sua mente: Eu vou perder o avião para Nova York. Expressou essa preocupação com uma sentença que o denunciava que, afinal, por trás de todo o cosmopolitismo, toda a elegância, ainda havia ali um latino-americano de primeira cepa, digno de se confessar com a articulação de um melodrama, de uma tragédia da qual não se poderia escapar e que não havia estoicismo possível para enfrentar esta situação sem controle:
“Será uma catástrofe se eu perder esse avião para Nova York porque tenho um compromisso muito urgente!”
Virei para ele e em uma voz pausada disse:
“Calma, Mario, você não vai perder o avião, fique tranqüilo”.
“Por que você acha isso?”, disse, como se estivesse me convidando para um desafio.
Na nossa frente, os passageiros ficaram incomodados com a aflição de Llosa. Eu os pressionava com minha mala, para abrirem caminho e para que pudesse explicar às aeromoças o problema que aconteceria se aquele homem não saísse imediatamente do avião.
“Por que você acha isso?”, ele repetiu.
“Porque ninguém vai querer atrasar os compromissos de um Nobel, só isso”.
Vargas Llosa riu e ficou imóvel por alguns instantes, como se tivesse recebido um choque elétrico. E era mesmo: aquela risada, com a ironia típica de um homem de 74 anos que já tinha visto quase tudo neste mundo, mostrava para si mesmo um evento único na vida de alguém que sempre pensou que a tal da literatura era uma questão de trabalho e nada mais. Ele estava em um outro patamar; atingira o Olimpo das Letras; de alguma forma, seus leitores agora o consideravam como igual aos grandes que ele sempre tentou se equiparar e achou que não conseguiria. A partir daquele momento, o peruano nascido na pequena cidade de Arequipa em 1936, apelidado por seus amigos e parentes de infância de el flaco (o magro), não precisaria mais se preocupar com atrasos de aviões, comidas mal-feitas, atendimentos grosseiros, falsos sorrisos e falsas opiniões.
A única coisa que teria de suportar agora era ouvir errado o seu próprio nome. Pela fresta da janela, no meio da noite coberta pelo frio e pela névoa, via-se uma van se aproximando em alta velocidade. Estacionou com precisão milimétrica. De lá saiu um rapaz magro vestido com um terno maior que o corpo, chamado Abel e que gritava para as aeromoças:
“Sr. Marlo Vargas! Vim buscar o Sr. Marlo Vargas! Onde está o Sr. Marlo Vargas?”
Jorge Mario Vargas Llosa não percebia que alguém tentava dizer o seu nome no amplo espaço da pista de Guarulhos – talvez porque, afinal, haja uma diferença substancial entre Mario e Marlo, talvez porque a sua mente tivesse dois pensamentos contraditórios neste instante, o de que iria perder o avião para Nova York e o de que não iria perdê-lo, porque, olhem só, alguém o informou de que não se faz isso com um prêmio Nobel em lugar nenhum, nem mesmo no Brasil – e quando o alertei disso (“Vamos, Mario, estão chamando o seu nome, vamos!”), a aeromoça complicou ainda mais a confusão ao gritar dentro do avião o nome dito por Abel – “Sr. Marlo Vargas! Onde está o Sr. Marlo Vargas!?” – e assim fui obrigado a avisar às outras pessoas que não, o nome não era Marlo Vargas e sim Mario Vargas Llosa.
“Estão chamando o senhor imediatamente!”, informou a aeromoça.
Com a minha mala, empurrei os passageiros, e Vargas Llosa me seguiu sem reclamar, desculpando-se com todos, informando-os o motivo – “Tenho um vôo urgente para Nova York, não posso perdê-lo, me desculpem...” – enquanto eu dizia aos altos brados, sem me importar com o comentário de alguns resmungões que, ao que parece, resolveram impor o dogma da igualdade social naquela situação insólita, afirmando que não podia se empurrar daquela forma, que tínhamos de esperar como todos etc. e tal. Para estes, só havia uma resposta óbvia:
“Pouco me importa, amigo! O prêmio Nobel está lá atrás e tem de pegar um vôo!”
Descemos rapidamente a estreita escada de desembarque, colocada quase de improviso. Abel nos esperava ansiosamente:
“Sr. Marlo Vargas?”
“Não”, apontei para trás, “Este é Mario Vargas Llosa, e ele é o prêmio Nobel”.
“Vamos comigo que o levaremos até o terminal de embarque para Nova York”, disse Abel.
“Ótimo!”, respondeu Llosa, já aliviado. “Achei que ia perder o avião...”
Dentro da van, ele começou a me dizer, sem nenhum motivo aparente, em um ritmo afobado, como se fosse uma despedida definitiva, como se não pudesse perder tempo para dar um último conselho:
“Trabaja en tuya novela, não se esqueça disso! Não se esqueça de escrever, reescrever todos os dias que puder. É disso que se faz a literatura, não de inspiração, e sim de trabalho, de disciplina, de paciência. Trabaja en tuya novela!”
Quando chegamos ao terminal de embarque para o vôo de Nova York, Abel me informou que minha viagem com Mario Vargas Llosa terminava por ali. “O Sr. pode sair por este lado, por favor”, apontou para uma porta à esquerda. O aeroporto de Guarulhos estava completamente lotado: filas que se misturavam com as pessoas que esperavam pela chegada de seus queridos, placas, folhas de papel com nomes escritos, e outras formas de lembrança para que a chegada não fosse mais um disfarce de despedida, de um longo adeus. No nosso caso, o adeus foi curto, breve e digno de sujeitos que sabem, por causa da vocação que escolheram, que a vida só é feita disso, de partidas e despedidas, de momentos que não voltam mais.
Apertei a mão de Vargas Llosa. Ele me abraçou e disse:
“Foi um prazer conhecê-lo! E lembre-se do que falei: Trabaja en tuya novela!”
“Boa viagem, Mario!”
E assim foi embora, misturado à grande população que, entre terminais de embarque e desembarque, desconhecia que ali caminhava um homem que escolheu, apesar de todos os obstáculos, ser livre. Dias depois – enquanto a imagem de Mario Vargas Llosa desaparecendo na multidão para pegar o vôo para Nova York se transformava nas palavras que terminarão esta reportagem – seu filho, Álvaro, intelectual reconhecido nos meios internacionais pelo livro Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, escreveu um artigo sobre seu pai. Finalmente, Álvaro não tinha mais que explicar aos amigos porque Don Mario não ganhava um prêmio que lhe era prometido há mais de trinta anos. E o elucidou aos leitores com uma simplicidade que só um filho poderia fazer: “O princípio que orientou a vida de meu pai foi o de que não existe atalho para a excelência artística. Nenhuma musa literária guiou a sua pena; cada palavra foi resultado de uma disciplina excruciante”. Só dessa forma, através de um ofício que exigiu uma paciência idiossincrática, é que Vargas Llosa aprendeu na carne o que Goethe dizia: As dificuldades crescem quanto mais próximo se está da meta. Há uma disciplina que a vocação da literatura exige e que só depois de muito tempo pode-se dizer que dá alguma liberdade. Em um mundo que acredita que esta última é dada e não conquistada, é saudável saber que a vida e a obra de Mario Vargas Llosa são um elogio da disciplina. Precisamos disso como se fosse o pão nosso de cada dia – e mesmo quando a meta é impossível ou os desafios parecem invencíveis, é alentador ouvir um conselho digno de um ato de loucura, igual ao comando que o torso arcaico de Apolo deu a Rilke – força é mudares de vida – e que retorna como um imperativo moral que não pode ser esquecido: Trabaja en tuya novela! E, com isso, finita la commedia, sabemos que o resto não é apenas silêncio – é conversa fiada. Não é mesmo, menino?
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