e se eu vejo essas nuvens iluminadas pela poderosa luz do sol, o que faz com que elas tenham uma certa cor dourada, sim, de ouro, cor de um bom vinho branco, logo pensarão que estou imaginando em algum filme para realizar, e isto é verdade, essas nuvens de cores douradas, misturadas com este céu tão límpido, tão claro, somadas a esta paisagem esverdeada, árvores grandes e verdes e pequenas e médias e algumas secas, prontas para morrer ao serem queimadas pela luz deste rei que é o sol, além do mar enjoativo deste lugar, belo e enjoativo, belo porque não há nada melhor do que acordar logo pela manhã e ver o mar azul, enjoativo porque de tanto ver este mar, mar para lá e mar para cá, começo a ter tonturas para cá e para lá, tudo isso me faz pensar e pegar uma câmera e filmar algo, alguma coisa, um passarinho, um carangueijo, você mesmo, por que não?, não há limite para nada, pode-se filmar também esse oceano, mas não gosto disso, odeio, droga, Mario!, por que então resolveu morar nesta ilha? — foi o que me perguntou a Carmen quando disse a todos que eu, Mario Peixoto, iria viver numa ilha e que ninguém me importunasse, pelo amor de Deus, voltaria dentro de uns dez anos para realizar outro filme, mais de vinte anos se passaram e nenhum filme foi feito, não consegui nem o mínimo necessário para Salustre, tenho muito dinheiro, é verdade, mas não o suficiente para realizar algo de tamanha envergadura, eu digo isto e também foi o que alegou o maldito do Ademir, ele olhou para mim naquele escritório empoeirado e falou projeto bonito o seu Mario muito bom mas não entendi nada de um lugar passa para o outro sem nenhum aviso aliás existe personagem nesse filme? claro que existe personagem empresário caipira que não entende nada de arte filisteu cretino, principalmente de cinema, não entende nada de cinema, outro que não entendia nada disso era papai, rico e tal, mas grosso grosso grosso, diferente da minha mãe, bonita, culta, foi ela quem me deu meu primeiro livro o Robinson Crusoé, uma ironia!, agora eu sou Robinson e só não tenho um Sexta-Feira para me acompanhar porque toda essa ilha é minha e nela só existe eu e mais ninguém, uma loucura, sim, Edgar, foi uma loucura ter feito isso, mas loucura mesmo foi nós termos gasto aquela soma de dinheiro no nosso filme, não acha?, é claro que ele achava isso também, lembra-se de nós naquele barco, filmando contra a luz do sol ou então debaixo de uma chuva torrencial, mas valeu a pena, é claro que valeu, pelo menos para mim valeu, creio, realizar aquele filminho foi uma das únicas coisas que valeu a pena na minha vida, houve mais duas coisas, o que seria?, quais?, você está mesmo ficando sem memória, Mario, ficar sem memória é uma grande chatice, muito perigoso, é sempre bom se lembrar de onde você vêm, o que você fez e para onde você vai, apesar de eu não ter nada a fazer neste mundo no momento, só resta-me agora ficar por aqui, no terraço da minha majestosa casa, sentado nesta cadeira de sol e ficar observando as nuvens iluminadas pelo sol dourado, cor do ouro (será que me lembrarei disto, de tudo o que acabei de pensar há alguns minutos?), a vontade de filmar é tanta, sempre foi minha vontade voltar a filmar, então por que será que não consegui mais?, ineficácia?, burrice?, loucura? — certas pessoas, naquela época, me chamavam de louco, pinéu, coisas assim, só porque queria realizar um filme que era também o retrato de várias vidas, ah! mas o Salustre iria ficar tão lindo, posso me lembrar daquele roteiro todinho (pelo menos acho que isto eu consigo lembrar — viva, Mario!, está conseguindo se lembrar! quem sabe você também relembra toda a sua vida num milésimo de segundo, o tempo é tão importante e fascinante e intrigante para mim), cena um um homem lendo jornal e ele toma conhecimento de um naufrágio de um grande transatlântico, cena dois uma mulher lê o mesmo jornal em uma outra parte desconhecida do mundo e fica espantada com o fato pois havia um grande amor do passado que estava naquele navio, o mesmo ocorrendo com o homem da cena um, ficaria tão lindo se Salustre fosse realizado, mas o dinheiro não move sequer as montanhas nem o mar, como poderia mover a vida de um grande artista, não que eu seja isto — um grande artista —, mas uma pessoa que realizou seu filminho quase particular com dinheiro próprio e que foi elogiadíssimo pelo grande Eisenstein deve ter algo para ser minimamente respeitado, é assim que eu penso, droga!, não é nada disso, Mario, você está divagando completamente, o que eu poderia fazer?, ficar numa cadeira de sol, vendo as nuvens de cor de vinho branco com umas lindas pombinhas emoldurando-as dá nisso, delírios e mais delírios, havia uma outra época em que também me chamavam de delirante, lembro-me do Edgar dizendo que aquela câmera era muito pesada para ser colocada em um barco minúsculo onde nós estávamos, mas a colocamos e deu tudo certo, às vezes alguns delírios se concretizam, e quando se concretizam, ou é para o bem, ou é para o mal, vejam o meu exemplo, há muitos anos, na minha longínqua meninice, eu tinha o delírio de pegar na mão de uma garota muito bonita, loira, olhos azuis, una bella ragazza, queria que fosse um namoro, mas sabia que isto era um grandioso delírio, não custava tentar, afinal ela até me olhava de soslaio, naquela época já tinha essas ideias de que nada é impossível, e lá fui eu, o pequeno Mario Peixoto de doze anos e magro e com início de espinhas e com muito filme na cabeça (posso me lembrar o que me fez tomar aquela atitude foi um filme de Chaplin em que ele pediu uma moça em namoro com o simples meneio do olhar), me dirigi à menina, o nome não me recordo, eu não me recordo de várias coisas como já disse, droga!, volto ao assunto, indo e vindo, parece que a minha divagação não tem um fim, mas deve ter, tudo tem um fim, tudo tem o seu limite, o seu limiar, foi o que rezei na hora em que estive menos de vinte centímetros diante dela, olhando no fundo daqueles pequenos olhos verdes cheios de graça, aquela maldita ansiedade que vinha do fundo da minha alma tinha de ter um maldito limite, senão explodiria, e não é que eu explodi, peguei nas mãos de Elena (ou foi Heleno?), este era o nome da garotinha (era mesmo?), agora eu me recordo, e meio gaguejando, meio silente, depois totalmente gaguejando disse com toda a seriedade deste mundo sem fim que eu gostava muito dela, que eu queria namorar com ela e, se possível, num futuro bem próximo casar ter filhos e Elena (ou era Heleno?) sorriu de um modo bem engraçado, respondeu que só tinha doze anos eu também tinha ora qual era o problema? namoraríamos escondidos ninguém saberia somente eu e você eu e ela e Elena (ou foi Heleno?) sorriu novamente e respondeu mas eu não te conheço então como posso namorar com você mas gostei da tua pessoa qual é o seu nome é Mario pois bem Mario fique tranquilo nunca me esquecerei de ti e a pergunta que me faço agora e que faço a essas nuvens iluminadas pela grande luz do sol é a seguinte, será que ela (ele?) se lembra de mim assim como eu me lembro dela (dele?) cada dia da minha vida, vejam agora, eu me lembrei dela (dele? viva Mario! você se lembrou novamente de alguma coisa! continue assim, continue assim!), e o que adianta ficar aqui, nesta cadeira de sol, à espera de um voo ilimitado por essas nuvens, através do céu, e a relembrar e a relembrar se não há possibilidade de se ter ao seu lado a coisa mesma que está a ser lembrada? assim falou um grande filósofo dessas coisas, pelo menos eu acho que era um grande filósofo, ah!, a vontade de filmar tudo isto é enorme! por que não me deixaram a voltar a dirigir?, incompetente eu não era, muito menos péssimo cineasta — vejam o Eisenstein: ele tinha assistido ao meu filme quando vivia na Europa e emocionou-se todo, escreveu de imediato uma linda carta afirmando que o meu longa utilizou de modo exemplar suas teorias de montagem, nunca apresentei esta carta a ninguém por achar que ela deveria ser minha só minha, por isso todos pensaram que eu estava mentindo, chamaram-me até de mitômano, mas não sou, não, não sou, tanto até que tenho de memória algumas passagens do texto do russo, escrito em um francês bem complicado, “sua complexidade de montagem é maravilhosa, seu filme é realmente impressionante, ele é a prova de uma vida inteligente no cinema, minhas congratulações meu caro Mario Peixoto, seu amigo Serguei Mihkalovich Eisenstein, assinado no dia 2 de fevereiro de 1946”, pronto?, querem uma prova maior do que isso?, olhem só!, há alguns pássaros muito bonitos no céu, serão pombas, gaivotas, pardais, não sei, nunca entendi de ornitologia, o Edgar, este sim, gostava muito de passarinhos, ele tinha um viveiro imenso em sua casa, mas também adorava o cinema, como eu, há muito tempo não vejo Edgar, provavelmente deve estar morto, realmente não sei, como vou saber o que acontece no resto do mundo, isolado numa ilha como esta?, só me resta esperar e voar como esses passarinhos, só me resta esperar, esperar e lembrar, não se preocupe Mario nunca me esquecerei de ti, assim disse Elena (ou foi Heleno?), queria tanto que ela (ou ele?) estivesse ao meu lado no dia da estreia do meu filme, várias pessoas no cine Capitólio (era este o nome?), estava tudo lotado, muitas pessoas, todas vieram para ver o meu filhote que fiz apenas com vinte e um anos, e quando ele foi exibido, a luz do projetor na tela prateada mostrando em preto-e-branco mãos acorrentadas por uma algema sobrepostas ao rosto de uma mulher cortando em seguida para a imagem iluminadíssima de um barco no mar, o público olhava para a tela de um modo muito estranho, e eu senti medo, realmente senti medo, queria que alguém estivesse ao meu lado, Elena (Heleno?), minha mãe, meu pai, qualquer um, queria que pelo menos estivesse ao meu lado, mas percebi que estava sozinho, eu ainda estou sozinho, nesta ilha onde não há ninguém, somente eu e as árvores e o mar enjoado e a forte luz do sol refletida nas nuvens e o meu enorme desejo de filmar tudo isso, mas eu me esqueço que não posso mais filmar, não por causa do dinheiro, disso eu tenho de sobra, não por ter não ter uma câmera, eu a trouxe quando resolvi morar para sempre nesta ilha, mas por entender que estou prestes a ir, não posso filmar mais porque estou morrendo e morrendo sem ninguém ao meu lado, sem ninguém a quem posso confiar o meu último desejo, não me lembro de nada, tudo parece truncado, esparso, nublado, minha memória se destrói aos poucos, aliás ela é quem me destrói por completo, a memória e o tempo, essas duas coisas nos exterminam, colocam limites, a memória porque há sempre uma vez ou outra que ela nos trava uma bela ou uma má lembrança, o tempo porque ele limita a duração da nossa vida, de tudo e de todos, maldição!, não deveria existir nenhum limite para a alma do homem, apenas um limiar, o que é isso?, uma pomba! uma pomba negra!, a pomba voa com a mais absoluta segurança neste céu dourado, com uma graça e uma leveza incomparáveis, ao seu lado há um outro passarinho, não me parece ser uma pomba, nem um pardal, ele é bonito também, todo colorido e plumado, seria um avalovara?, apesar desse tipo de pássaro ser muito raro, deve acompanhar agora a pomba, não deixe-a sozinha, não, não deixe-a, porque o avalovara e a pomba negra sabem que a solidão é uma das piores coisas que existe, senão a pior, é péssimo ficar sentado, como estou agora, olhando e esperando, tinha um amigo meu que era apaixonado por uma moça muito bonita mas a tal da menina nem sabia da existência dele e o meu amigo desiludido mas ainda enamorado decidiu que ficaria sozinho, à espera da garota, sentado em um banco de madeira numa praça qualquer, dando milhos aos passarinhos, ri dele quando ele me contou isso, achava que era apenas um delírio, porém antes de vir para esta ilha, passei pela praça que ficava perto do meu cinema favorito quando o reconheci sentado naquele banco de madeira dando milho para os passarinhos, estava lá como havia prometido à moça, eis aí um homem honrado, cumpre sempre o que promete, o contrário de mim, Mario prometa-me que tu não vais me abandonar prometa à sua mãe, prometi mãe, tentei cumprir, pelo menos tentei, mas quando tu estavas prestes a morrer, não suportei, várias coisas ao mesmo tempo, o Salustre bloqueado, a cidade em decadência, o presidente da República dando um tiro no peito, e a volta de Heleno, sim Heleno voltara, revi-o no Colombo, não como reconheci-o, mas o reconheci, será que ele se lembrava de mim como prometera?, fui ver se havia cumprido mesmo, pus-me à sua frente, parecia que tudo se repetia, eu continuava o mesmo Mario esquálido de sempre, talvez fosse por causa dessa esqualidez que fui reconhecido, pois ele me olhou e deu uma risada naquele modo todo próprio dele, e perguntou Mario?, e assim teve início o dia mais bonito da minha vida, convidei-o para um passeio, e passeamos pelas ruas, de barco pela Lagoa, apresentei-o a meus amigos, mostrei o meu filminho que ele disse que era bom apesar de não ser o seu tipo de diversão, e enquanto o filme era exibido, observei-o cuidadosamente, já estava pensando nele para um papel no Salustre, e chorei, pelo menos naquele momento não estava mais sozinho, até a nossa despedida no Catete, ele tinha de ir embora, eu também, todos têm de ir embora de alguma forma, e ele se foi, mas antes apresentou-me a um outro amigo seu, seu companheiro de verdade, um tal de Ricardo, e depois ambos foram embora, sem deixar de afirmar e reafirmar e repetir que cumpriria a promessa de nunca mais me esquecer, adeus Mario a gente se vê, sim a gente se vê, nunca mais o vi, pois duas semanas depois me mudei para esta ilha, que é minha, só minha, onde há somente eu e o céu e o mar enjoado e a pomba escura e o avalovara e todos voam juntos agora, se ele morreu, não sei, se todos morrem, também não sei, talvez eu seja o último dos sobreviventes, o último de uma linhagem que não existe mais, o último dos moicanos, mas em breve este último, este Robinson Crusoé, também irá embora em breve, muito breve, é só o avalovara e a pomba negra se aproximarem de mim, mais perto, mais perto para alcançá-los, e aí vou, e poderei dizer adeus, adeus, mas antes de ir Deus, pelo amor de Deus!, permita-me filmar isto, deixe-me aproveitar que a minha câmera está aqui ao meu lado, isto, muito obrigado, é só engatar o filme e pronto! — o motorzinho faz um barulho que é tão bonito! filmo o mar, azul, azul, o céu também está assim, as árvores verdes e saudáveis e mortas, nuvens douradas, eu, velho, cansado, abatido, muito mais magro do que eu era e sozinho, o céu outra vez, quero aproximar a câmera dos passarinhos, mais detalhadamente, no avalovara e na pomba escura que chegam perto, muito perto, ah!, as proezas da película, mas não é a película que faz isto, sou eu mesmo, alcanço os pássaros, fico junto a eles, filmando tudo, o alto da terra, o mar, o início de um vilarejo e lá longe, a minha ilha, e mais longe ainda, o meu corpo deitado nesta cadeira de sol, a câmera no colo, e as nuvens, o sol a refletir sua poderosa luz nelas, dando-lhes uma luminosidade deliciosa, igual a de um bom vinho branco, que bela tomada dará isto!, ao meu lado direito a pomba escura me olha desconfiada, deve se perguntar se um ser humano pode voar como ela, pode sim pombinha, não há limite para a nossa alma, somente o limiar, tudo é simplesmente ilimitável, o avalovara se encontra à minha frente, ele me guia, aproximo-me dele mais um pouco, sempre mais um pouco, e enfim toco-o e ele me leva e atravesso as nuvens, ainda posso ver em um vilarejo um garotinho pedir a mão de uma menina em namoro, avanti ragazzo!, duas coisas que valeram a pena na minha vida, além do meu filminho, foi também me aproximar duas vezes dele, a vida resume-se apenas a um ou dois fatos realmente importantes, e as nuvens douradas impedem a minha visão, o sol me ilumina, um clarão enorme, e um vento frio percorre o meu corpo e o avalovara ainda me conduz e entro no espaço e atravesso a terra e já tenho saudades daqui e da ilha e de tudo isto que lindo e choro e choro e sei que nunca mais voltarei e que o limite terminou e que o limiar apenas começou e o filme acaba na câmera e lanço-a no limbo e me perco no escuro e me vejo no nada e Heleno (ou seria Elena?) se aproxima e me beija e fico feliz com isto e talvez eu esteja delirando e talvez tudo vote a ser como era antes e tudo se transforma em um círculo e vêm e volta e se eu vejo essas nuvens sendo iluminadas pela poderosa luz do sol escuto depois os sons sibilantes sons dos mais sublimes e sonoros, variados e virtuosos de todos os tons, nas caldas quentes que caem dos caldeirões nos calculados círculos, dos linfáticos limos e dos olfatos oleosos, naqueles tatos que tocam todos os fatos das terras, das teias e dos teus terrores, sempre ternos e tensos, testamentos dos toques totalmente tateantes, vistos como os visionários que viram aquelas visões já vistas das vidas vislumbradas nestes novos voos virulentos, à espera de uma nota que enfim faça a notação definitiva chegar, a se aproximar, a anotar minuciosamente as notas dos filmes que não realizei, dos pecados que paguei, dos pedaços que possuí, das penas que cultivei, naquela sensação de que me aproximo dos cintos luminosos dele ou dela, sim, de Heleno?, ou de Elena?, vindo e indo, a me tocar, a tocar os sons, os cheiros, os tons, o Sono, até o instante, até o limiar em que a pomba escura me busca neste redemoinho, cravando dentro de mim o corte profundo de todos os detalhes daquele fim que sempre encontrou uma forma de me rodear.
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