O Altar dos Mortos
Talvez a estratégia para superar o sufoco totalitário que nos rodeia esteja na própria incompetência dos “liberais do bolso alheio”.
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O dia 19 de julho de 2020 entrará para a história do Brasil como o momento em que o presidente da República decidiu substituir definitivamente o Deus que protege os direitos constitucionais do país por um outro tipo de divindade. Em plena pandemia do coronavírus, no meio de uma aglomeração de pessoas – evangélicos, em sua maioria – que o esperava em um cercadinho a separá-lo no Palácio do Alvorada, o governante maior da nação conversou com seus apoiadores, discursou e fez uma saudação a uma caixa de comprimidos de hidroxicloroquina – um remédio que curaria a covid-19, a peste que então matara mais de 100 mil brasileiros (e 500 mil a mais nesta semana), e vendido pela mídia governamental como a “solução mágica” para mitigar o impacto da doença, especialmente no âmbito econômico.
Não, o novo deus não é a cloroquina. Ela simboliza algo mais sério e mais perigoso. Trata-se da representação da religião que realmente dominou o mundo moderno nos últimos quinhentos anos, pelo menos. Seu nome seria capitalismo; sua substância é a fé no progresso ético, tecnológico e financeiro; sua ideologia favorita, entre outras, é o liberalismo; e o nome do deus saudado pelo nosso presidente da República é nada mais, nada menos que Mammon – o demônio viciado em riqueza e posses materiais.
Eis a conclusão a que se chega depois de ler o volumoso tomo (mais de 800 páginas), escrito pelo professor americano Eugene McCarraher, intitulado The Enchantments of Mammon: How Capitalism Became the Religion of Modernity (Harvard University Press, R$ 203,66). Resultado de duas décadas de trabalho minucioso de pesquisa, é possivelmente o livro do ano, já que, se não explica como chegamos à crise sanitária da covid-19, sem dúvida mostra como a negação do real diante do flagelo, feita em particular pelos governos de Jair Bolsonaro, no Brasil, e de Donald Trump, nos EUA, tem origem específica naquilo que Max Weber chamava de “desencantamento do mundo”.
Contudo, aqui já começa a ousadia da obra: McCarraher afirma que Weber – e os seus seguidores – erraram desde o início nas análises sobre os fundamentos do capitalismo. A partir do antológico verso do poeta Gerald Manley Hopkins – “O mundo está carregado da grandeza de Deus” –, o historiador pretende mostrar que a economia capitalista é “uma forma substituta de transcendência”, uma outra “metamorfose de sacralização” que contamina o nosso imaginário moral – um novo tipo de feitiço o qual, justamente por causa do engano do “desencantamento”, não nos faz perceber dois fatos perturbadores.
O primeiro é que, graças a este mito deletério, não vimos que os sacramentos do capitalismo são os bens de consumo e suas respectivas tecnologias, junto com as justificativas comerciais promovidas pelo jornalismo corporativo de negócios, as teorias de gestão de empresas e os economistas que brincam de serem intelectuais, além da iconografia criada pela publicidade, cinema e os departamentos de relações públicas. O outro fato é uma falsa existência inspirada naquilo que foi chamado de “evangelho de Mammon”, cuja força está na atribuição de um poder ontológico ao dinheiro e a quem o conquista, seja lá por qual meio.
McCarraher não só se contrapõe a Weber, mas, paradoxalmente, o aprofunda em suas descobertas teóricas. Por meio do uso do conceito da “imaginação sacramental”, que vai além das limitações da “imaginação liberal” de Lionel Trilling ou da “imaginação moral” de Russell Kirk, ele reconta a história da modernidade sob uma nova perspectiva. Tudo teria começado com a aliança religiosa do Protestantismo, alimentada pelos puritanos dos séculos XVI e XVII; ela rompe com os moldes tradicionais de transcendência (leia-se: Igreja Católica) e, impedida de realizar um sacramento adequado no modo como atua e observa o mundo, transfere a linguagem metafísica para uma fé no progresso ético e material. Quem conquistar isso torna-se alguém que se “salvou” perante as iniquidades da condição humana. A riqueza passa a ser a parte explícita dessa vitória – e tudo o que a envolva adquire características mágicas que, pouco a pouco, encobrem o fato de que o fiel cristão deixa de louvar ao seu deus e não vê outra alternativa senão defender, indiretamente, as seduções de Mammon.
A partir daí, existem três tipos de grupos que se cruzam no decorrer deste drama. O primeiros são os que se ajoelham à “metafísica do dinheiro” que, conforme o transcorrer do tempo, se apossa das virtudes das comunidades orgânicas, vinculadas por motivos de afeição entre seus pares, e as deforma na mentalidade corporativista que, no fim, culminará nas gigantescas companhias que hoje movimentam o mercado capitalista da globalização (neste círculo, coloquem agit-props como Peter Drucker e economistas como Ludwig Von Mises e Friedrich von Hayek) . Os segundos são os ingênuos que, na crença de serem opositores a esta bíblia da cupidez, são absorvidos por ela, justamente porque a ilusão da riqueza os torna cada vez mais indiferenciados em relação aos seus inimigos, pois ficaram também obcecados por um sacramento que perverte o uso da natureza (aqui temos os exemplos dos comunistas, socialistas e da boemia anarquista). E os terceiros são os artesãos, indivíduos que tentam prevalecer como podem neste mundo tomado pelo corporativismo onipresente, e os quais, cada um ao seu modo, formam sem saber uma espécie de “comunidade sagrada” a preservar o pouco que ainda resta de uma liberdade interior a nos proteger das mandíbulas de Mammon (no livro, seus líderes são James Agee, Scott Fitzgerald, Lewis Mumford, Henry Miller e Thomas Merton).
O que une toda essa galeria de ideias e personagens é a ideologia sorrateira do liberalismo que, conforme a modernidade surge como a única regra a ser obedecida, alimenta a própria vitória – e, ironicamente, a derrota iminente. Aqui, o estudo de McCarraher converge para a conclusão do admirável livro de Patrick Deneen, Por que o liberalismo fracassou? (Editora Âyiné, 258 págs., R$41,93), cujo raciocínio é articulado da seguinte forma: “Uma filosofia política que foi lançada para criar maior igualdade, defender uma tapeçaria pluralista de diferentes culturas e crenças, proteger a dignidade humana e, é claro, expandir a liberdade, na prática gera uma desigualdade titânica, reforça a uniformidade e a homogeneidade, incentiva a degradação material e espiritual e fragiliza a liberdade”. Ora, esta é justamente a meta de Mammon, que se vangloria constantemente do fato de que as “ruínas que ele produziu são justamente os sinais de seu êxito”.
Tanto para McCarraher como para Deneen, o que está em risco é o modo prático de como resistiremos a esse feitiço. Será que as comunidades são uma via alternativa efetiva? Ou será que o iliberalismo que surge como resposta ao falhanço da democracia liberal – com as vitórias de Bolsonaro, Trump e Boris Johnson, na Inglaterra – indica uma fadiga popular sobre a concentração de poder que Mammon sutilmente nos impôs na nossa idolatria pelo progresso humano? Neste aspecto, talvez a estratégia para superar esse sufoco esteja na própria incompetência desses “liberais do bolso alheio” (uma expressão de João Cézar de Castro Rocha), que, em vez de criarem políticas públicas para proteger a sociedade no meio de uma pandemia, resolveram endeusar placebos farmacêuticos como a cloroquina, com a ajuda do Estado que tanto idolatram inconscientemente, para depois salvarem um mercado que se alimenta somente do colapso inevitável da população.
Afinal de contas, quando “todo o reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda a cidade, ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá”, o que resta para essa suposta elite é contemplar um altar dos mortos. Ou, como dramatizou o francês Éric Vuillard em seu pequeno romance, A ordem do dia, sobre a união previsível entre os sacerdotes de Mammon da elite empresarial alemã e a ralé do partido nazista, “nunca se cai duas vezes no mesmo abismo. Mas se cai sempre de uma mesma maneira, em uma mistura de ridículo e de terror”. Foi o que assistimos naquela saudação à cloroquina, com o presidente da República a abraçar as forças do subsolo. E, graças às obras-primas de Eugene McCarraher e Patrick Deneen, talvez tenhamos alguma saída para não nos encantar mais pela luz sem perdão deste astro frio que se tornou o nosso sol.