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O Bicho das Palavras

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A vida e a obra de Graciliano Ramos.

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Martim Vasques da Cunha
Nov 24, 2023
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Graciliano Ramos aparentemente sabia das coisas. Ao comentar sobre a Semana da Arte Moderna de 1922, cujo acontecimento acompanhou pelos jornais que chegavam com algum atraso em Palmeira dos Índios, Alagoas, ele foi direto ao ponto, bem ao modo “sertanejo”, como depois o classificariam os seus colegas do Rio de Janeiro: “Os modernistas, confundindo o ambiente literário do país com a Academia [Brasileira de Letras], traçaram linhas divisórias, rígidas (mas arbitrárias) entre o bem e o mal. E, querendo destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser salva”.

E insistia para quem quisesse ouvi-lo: “Como podem escrever tão mal?”. Mas ele tinha outras preocupações mais urgentes do que a importância de escrever bem. Graciliano perdera a primeira esposa, Maria Augusta, falecida aos 24 anos de idade devido a complicações no parto da quarta criança que tiveram; estava tendo problemas financeiros com a loja Sincera, que herdou de seu pai, Sebastião, um homem conhecido pelo aspecto duro e sofrido; e com essas mesmas complicações que a vida lhe dava, flertava aos poucos com a ideia de suicídio. “Encontrei dificuldade séria, pus-me a ver inimigos em toda parte e desejei suicidar-me”, escreveu a um amigo nessa época. “Realmente julgo que me suicidei. Talvez isto não seja tão idiota como parece. Abandonando contas correntes, o diário, outros objetos da minha profissão [...]. Que me induziu a isso? Teria querido matar alguns fantasmas que me perseguiam?”

Em outra carta que registra um novo momento de perturbação extrema, Graciliano parecia torcer que o destino de sua filha Maria Augusta (batizada assim em homenagem à mãe) fosse o mesmo da falecida esposa: “Pedes-me que te fale da minha vida e de meus filhos. Que te posso eu dizer, meu bom amigo? Sou um pobre-diabo. Vou por aqui, arrastando-me, mal. Há cinco anos eu não abro um livro. Doente, triste, só, só – um bicho. Tenho quatro filhos: Márcio, Júnio, Múcio e Maria [Augusta]. Esta, coitadinha, provavelmente não viverá muito: está à morte. Se morrer, será uma felicidade. Para que viver uma criaturinha sem mãe?”

A pequena Maria Augusta sobreviveria – e a “imaginação do desastre” jamais se despediria de seu pai. Entre uma atribulação e outra, Graciliano ainda tinha um sonho: “fazer livros”, como se definiria muitos anos depois ao diretor da Colônia Correcional do presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, quando foi preso em 1936 porque, segundo alguns relatórios que só poderiam ter sido redigidos por integralistas próximos do analfabetismo funcional, ele teria colaborado com a Intentona Comunista de 1935. Esta obsessão de transformar a palavra escrita em um objeto palpável o perseguiu por toda a sua obra – e seria a sua meta de sobrevivência enquanto pensava o livro que escreveria sobre a temporada na prisão.

A ideia fixa pela pureza e correção da língua portuguesa e da linguagem literária o tirava literalmente do sério. Todos relatam os famosos chiliques que Graciliano – em geral, um homem conhecido pelo seu temperamento sóbrio e seco – tinha quando deparava com um erro grotesco de português. Uma vez, quando era revisor do jornal Correio da Manhã, interrompeu a leitura de um artigo que ia para a prensa e gritou para toda a redação: “Outrossim... outrossim é a puta que o pariu!”. Outra vez disse sem papas na língua a um jovem revisor, Luciano de Moraes, que substituíra “silvícola” por “selvícola” em um texto que já tinha sido revisado por Graciliano: “O senhor é muito ignorante. Pensou que silvícola viesse da selva, e por isso emendou a palavra. Se o senhor soubesse o latim, saberia que silvícola, com i, vem de silvicola”.

Muito provavelmente este tenha sido o verdadeiro motivo da sua prisão em 1936. No ano anterior, quando ocupava o cargo de diretor de Instrução Pública (algo como secretário municipal de Educação) em Maceió, nomeado pelo interventor da época graças à sua administração impecável na prefeitura de Palmeira dos Índios, decidiu que os alunos das escolas não cantariam mais o Hino de Alagoas porque era “uma bobagem com solecismos”. Um ato antipatriótico para muitos, sem dúvida.

Este rigor pela expressão exata das palavras, sem gordura, o acompanhou na própria Colônia Correcional, quando um integrante do Partido Comunista Brasileiro se aproximou com o pedido de corrigir um manifesto que os presos escreveram na cadeia, a ser enviado ao Congresso Nacional. Assim que deu uma primeira lida no papel, Graciliano começou a fazer as alterações que julgava necessárias. “Não, senhor”, se opôs o companheiro. “Esse troço foi discutido e vai como está. Nós desejamos é que você bote as vírgulas e endireite os verbos”. O escritor argumentou com desânimo: “É impossível, meu caro. Isso não tem sentido. A correção é indispensável”. O prisioneiro decidiu levar novamente o texto ao coletivo que o compôs; após inúmeras idas e vindas, graças às correções de Graciliano, percebeu que o método esdrúxulo levaria a todos à loucura – e dessa forma o coletivo da cadeia deu carta branca para todas as alterações que deviam ser feitas. Mesmo assim, Graciliano ficava chocado com “as alterações de forma e sentido” e tinha de se convencer lentamente, por exemplo, que o uso da palavra proleta era uma redução de proletário. A língua de pau usada nesses manifestos era, segundo ele, a defesa de criaturas perseguidas e, na cadeia, “juntavam-se naquele meio o vocabulário dos malandros e o dos militantes de organismos políticos ilegais; pouco a pouco esse aglomerado caótico invadia a língua comum”.

É deste caos que Graciliano Ramos tenta tirar algum sentido para a sua obra literária e para a sua própria vida. Mas não se trata de um caos qualquer. Para ele, não é a palavra por si só que dá forma a este “aglomerado caótico” e sim uma ética da estética literária, uma moral das palavras que, se não se trata do esteticismo estéril de um Lima Barreto ou de boa parte do Modernismo Brasileiro, também ainda não é a imaginação moral que a literatura necessita para ser permanente e persuasiva. É por esta moral que ele transita entre os vários mundos criados por seus romances, em especial o mundo fechado em si mesmo, antecipado pela ficção, e que a realidade o transformou no inferno nacional da prisão. Com as Memórias do Cárcere, escritas dez anos depois dos acontecimentos na cadeia, concebidas em segredo, como se fossem uma espécie de carta de alforria da sua própria consciência perante a vigilância do governo brasileiro e do Partido Comunista do qual era um leal militante, ele tentava perceber para si mesmo que o mundo subterrâneo criado por seu estilo rigoroso atingia sem nenhum aviso a superfície da História do país. E foi neste mundo inferior, um mundo onde a morte parecia ter o único comando, como observou Otto Maria Carpeaux, que Graciliano Ramos teceu sua precária forma de sobrevivência.

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