O Elogio da Astúcia
Niccolò Machiavelli, também conhecido como Maquiavel, anteviu o colapso do seu mundo, mas não o da sua própria existência.
1.
Machiavelli tinha uma capacidade incrível de se alinhar com os notáveis do seu tempo. Todos eram famosos, gostavam de contar piadas sujas, tinham uma visão pessoal do mundo e um fascínio pelo poder, seja o sexual, o psicológico ou o que domina “as artes do Estado”. No entanto, Machiavelli se diferenciava de seus contemporâneos (exceto Da Vinci e Michelangelo) por um grande detalhe: a angústia em relação ao “outro mundo”. Para a maioria dos ilustres do Renascimento, Deus existe para lhes dar mais cortesãs (ou cortesãos), algum conforto material e uma prece ou outra para não ser assassinado por algum rival iminente. Já Niccòlo Machiavelli sabe que o mundo desandou, e quer entender o porquê.
As pessoas gostam de serem chamadas pelos seus nomes corretamente, e Machiavelli seguia esta regra à risca. Chamá-lo de Maquiavel – um costume que mostra a falta de respeito dos estudiosos – não é apenas uma tradução desleixada, mas também uma forma de continuar a sucessão de erros que criaram em torno desse homem. Nascido em 3 de Maio de 1469, na cidade de Florença, Niccòlo Machiavelli faz parte de uma tradicional família, os Machiavegli, e isso facilita na entrada dos negócios públicos florentinos. Seu pai, Bernardo, está sempre preocupado com sua educação intelectual e moral, o que fica anotado em um livro de despesas que cobre dos seis aos dezoito anos do filho. Ele aprende o ábaco, o latim e as primeiras noções de filosofia com as obras de Aristóteles e Cícero. Desde o inicio, nasce um fascínio pelo passado de Florença – já que seus antepassados tiveram um papel importante no anedotário popular – e também o da Itália, levando-o ao estudo da Roma Antiga.
Para Machiavelli, a Roma que lhe parece ser mais próxima do real é a de Tito Lívio. Sua admiração por este historiador é tamanha que, no futuro, dedicará um livro inteiro apenas para os comentários da chamada Primeira Década. Claro que isso tem um propósito. Tito Lívio conta como surgiu Roma, e Machiavelli quer retratar o que pode ser o início de uma nova Itália. Se antes o Estado era visto como uma obra de arte, para Niccòlo Machiavelli o Estado deve tornar-se uma Pátria, um corpo humano com ossos, músculos e alma, um organismo único que nunca deveria ter sido dividido.
Essa ideia o perseguirá por toda a vida – assim como o seu fascínio por Florença. Machiavelli é um típico florentino: é certeiro nas suas argumentações, cético em relação a padres e igrejas, e um excelente contador de histórias e piadas. Também tem suas pretensões artísticas, escrevendo esboços de sonetos, épicos e peças de teatro. Todos elogiam seu talento promissor no estilo, no vocabulário, na elegância das frases. Em 1498, aos 29 anos, consegue, após várias cartas de reclamação e de um golpe de sorte, o cargo de chefe da segunda chancelaria de Florença. E apesar de nunca ter saído oficialmente deste cargo, Machiavelli praticará os serviços que um embaixador ou um capitão deveria fazer, sempre assinando seus relatos como “Niccòlo Machiavelli, secretário e cidadão florentino”.
Para conseguir tal emprego, ele teve de enfrentar uma outra figura que teria presença marcante na sua futura obra: o frade dominicano Gerolamo Savonarola. À princípio mais um desses pregadores apocalípticos, Savonarola tem o mistério próprio dos prestidigitadores da fé que causam uma adesão popular impressionante. Como Florença está sempre no meio das disputas entre o que sobra da Itália e da França dominadora, com a morte de Lorenzo, o Magnífico e o avanço do rei francês Carlos VIII, tudo isso leva Savonarola a tomar partido da situação e se auto-intitular “o arbítrio da vida florentina”.
Machiavelli só consegue o seu cargo de segundo secretário porque, no dia 23 de Maio de 1498, Gerolano Savonarola é acusado de heresia, processado e enforcado na Piazza della Signoria. No início deste mesmo ano, Machiavelli tenta, pela primeira vez, o cargo de secretário, mas é derrotado por um aliado do frade. Cartas enviadas ao embaixador florentino em Roma não resolvem o problema e somente a Igreja Católica – a mesma que Machiavelli faz tanto troça – para dar a reviravolta que ele tanto precisa e conseguir o que deseja.
Ser chefe da Segunda Chancelaria é importante para os planos de Machiavelli. Mas, como dissemos, ele não será um simples secretário. Em 14 de julho, consegue se tornar secretário dos Dez, o grupo de magistrados que supervisiona a relação diplomática entre Florença e os outros estados. Assim, com seu faro de historiador, Machiavelli chega ao centro do poder e, cautelosamente, coleta informações e material para “futuros estudos”, como escreve em uma carta para um amigo fiel.
Esses “futuros estudos” são aqueles que ele chamava de “a arte do Estado”. Outra vez, o estetismo renascentista volta, mas Machiavelli não é um esteta qualquer. Há algo que o preocupa. Ele quer saber como se cria um Estado, como se mantém uma Pátria; no entanto, deve conhecer o que move estes elementos – o poder – e sua cobaia – o ser humano. E aqui Machiavelli percebe que alguma coisa aconteceu de errado. Seu primeiro passo é investigar este mistério, um mistério que nunca seria resolvido e por isso o transforma não em um historiador ou um cientista político, mas em um moralista.
Em seus tempos de funcionário público, Niccòlo Machiavelli aprende bastante sobre a natureza humana. A primeira conclusão a que chega é a do mal inerente. Ele está por toda a parte, seja no coração do homem, no seio da mulher ou no vento que sopra. E o poder é apenas uma variação deste mal. A bondade é uma coisa rara e, para se chegar a ela, deve-se conhecer o caminho da corrupção. Mas muitos não terminam esta trilha, e o seu fim aparentemente benéfico não passa de uma ilusão.
Contudo, de ilusões vivem também os homens que se envolvem com o poder. Por isso, eles se agrupam em rebanhos e matilhas e planejam aquilo que Machiavelli tem mais gosto em contar: uma conspiração. Aos nove anos de idade, ele escuta de seus pais sobre a trama que a família Pazzi planejou contra Lorenzo de Medici. Tanto os Pazzi como os Medici eram rivais em Florença, e a situação chegou a um limite quando Lorenzo, “ardente de juventude e poder”, exigia taxas vultuosas de outras famílias. Sentindo-se acuados, os Pazzi resolveram executar Lorenzo e também o seu irmão Giuliano. Tudo aconteceria durante a missa na catedral de Santa Reparta onde os irmãos se encontrariam junto ao cardeal. Os assassinos foram escolhidos a dedo, mas a ruína começou quando o encarregado de matar Lorenzo disse que se recusava apunhalar alguém no templo sagrado que é a igreja. Substituiu-se este covarde por dois infelizes que nunca viram uma gota de sangue na vida.
Estava tudo planejado: o ataque ocorreria durante a comunhão. Seguindo juntos para a catedral, os Pazzi e os Medici demonstravam suas respectivas hipocrisias realizando brincadeiras joviais. Um dos Pazzi abraçou Giuliano pelo pescoço, “para descobrir se vestia um colete de proteção”. Os assassinos se posicionavam lentamente ao lado de Lorenzo, entre um solavanco e outro da multidão. E quando começou a cerimônia, algo atravessou o peito de Giuliano de Medici, que caiu morto sem soltar um suspiro. Lorenzo agiu rapidamente e se desvencilhou dos assassinos, apesar de um dos Pazzi ter saltado sobre suas costas e ferir sua garganta. Com o auxílio de amigos, ele conseguiu escapar da catedral para, minutos depois, dar a ordem imediata de matar cada um dos conspiradores.
Conforme Machiavelli contaria nas suas Histórias de Florença, o plano não se limitava apenas aos Pazzi. O arcebispo de Pisa era um dos mandantes e, no exato momento em que fracassava o plano, ele tentava ocupar com seus homens o Palazzo della Signoria, a sede do governo florentino. Os soldados de Medici chegaram rapidamente e, sem hesitar, enforcaram o arcebispo e vários conspiradores nas janelas do Palazzo, deixando-os pendendo para o povo ver. Francesco Pazzi, o homem que tentou assassinar Lorenzo, foi arrancado nu de sua casa e conduzido ao Palazzo para ser decapitado e enforcado.
A cidade de Florença estava em confusão e adoração a Lorenzo. Todos os cidadãos doaram suas armas para caçar o restante dos conspiradores. E Lorenzo, sentindo o gosto do temor que o poder provoca, vai mais além: ele quer que cada florentino se lembre desse fato, em todos os seus detalhes. Encomenda a Sandro Botticelli uma pintura mostrando sete homens enforcados e um pendurado pelo pé. Este último não foi ainda capturado, mas Lorenzo o encontra em Constantinopla, onde convence o sultão a mandá-lo de volta para Florença. Um ano depois da tragédia na catedral, o assassino é enforcado no Palácio do Capitão, e sua posteridade na história se deve simplesmente porque Leonardo Da Vinci fez um esboço anatômico do seu cadáver.
Machiavelli viu os quadros de Botticelli durante a vida toda e consta que travou alguns encontros com Da Vinci. Mas sua preocupação eram os seus estudos - e como eles seriam úteis na prática. As conspirações, para ele, eram excelentes exemplos de como o poder age na natureza humana e como o “outro mundo” se manifestava. Seu fascínio pelos complôs – a maneira deles serem elaborados, executados e fracassados – era tanto que, numa dessas viradas irônicas da vida, o próprio Machiavelli se tornou vítima de um.
Aqui chegamos ao ponto decisivo na trajetória deste homem. Durante 15 anos, Niccòlo Machiavelli foi um competente secretário e um dos mais eficazes funcionários que Florença já teve. Contratou e supervisionou o treinamento de mercenários que iriam formar as tropas florentinas na guerra contra a cidade de Pisa; vai até a França falar com rei Luís XII para propor “um sistema de alianças” com Florença, no que é recusado; observou meticulosamente os atos de Cesare Borgia, missão que provoca uma grande impressão no secretário florentino. Foi braço direito de Pier Soderini, o homem que administra Florença depois da expulsão dos Medici, mas é um braço direito relegado ao esquecimento. Soderini não acata a sugestão de Machiavelli para criar uma milícia militar própria e não depender apenas dos mercenários, provocando assim a derrota de Florença na guerra contra Pisa. Também não ouve o secretário na questão de se aliar aos cardeais franceses enquanto o papa Júlio II (Giuliano de Medici II) se recuperava de uma doença quase fatal. O resultado é uma Florença à mercê da Igreja Católica, a expulsão de Soderini e a volta dos Medici.
Entre todas essas atividades, Machiavelli encontra tempo para casar com Marieta di Luigi Corsini, ter cinco filhos com ela e ainda se engraçar com uma cantora chamada Barbera, que se tornou uma espécie de cortesã fiel (“Hoje estou entrando na Barberalândia”, afirmava em carta ao seu amigo Vettori quando ia passar uma temporada com a amante). Cuida das terras herdadas após a morte do pai, tendo uma produção excelente de leite, queijo e algumas verduras. E viaja, sempre viaja, sempre em serviço de Florença, indo à França, Roma, dialogar com reis e papas, propondo suas alianças, descrevendo seus relatos como se fossem diagnósticos de um médico, frios, implacáveis, não poupando a arrogante ingenuidade de amigos como Soderini.
Contudo, sua honestidade não será bem interpretada. Mesmo depois da demissão de Pier Soderini, Machiavelli ainda tenta um acordo com a família Medici. Obviamente, tudo dá errado. Os Medici são implacáveis, e o secretário é expurgado de seu cargo, além ter de pagar 1.000 florins de ouro de multa e não pisar mais no Palazzo Vecchio durante um ano. Mas nada disso é uma previsão do que acontecerá. A sociedade dos boatos é uma referência para os homens do Estado do Renascimento e, em fevereiro de 1513, descobre-se um complô contra os Medici. Pessoas são investigadas, e uma lista é divulgada. Nela se encontram vinte nomes, entre eles o de Nicolaum domini Bernardi de Machiavellis. Os conspiradores são detidos, e o ex-secretário é um dos poucos que se apresentam voluntariamente. “Sou inocente”, protesta. Para os Medici, isto é uma declaração de culpado – e Niccòlo Machiavelli é imediatamente preso e colocado sob tortura para fornecer as informações que eles acharem necessárias.
2.
Os dois homens puxam a corda até vê-lo subir, subir, quase pendendo para a horizontal, e chegar ao teto. Então, soltam a corda rapidamente e o outro homem cai como uma pedra, mas não atinge o chão. Este infeliz é Niccòlo Machiavelli e ele está enfrentando o medo e a dor que lhe corrói a alma sem emitir um som. A corda é puxada de novo; ele vai até o teto e cai novamente, apenas alguns centímetros separando-o do solo. À sua frente estão sentados, atrás de um rústico balcão, três questionadores que encaram Machiavelli como se fosse qualquer um. Fazem as perguntas que lhes interessam e todas voltam ao mesmo ponto: se teve ou não alguma participação no complô contra a família Medici. Machiavelli reafirma sua inocência a cada questão e, mesmo assim, a corda faz o seu corpo exaurido subir e descer mais oito vezes.