"No hay banda. There’s no orchestra. Il n’y a pas de orchestra. It’s all recorded. It’s all in the tape".
Você não sabe o que é mais absurdo: se o próprio filme de David Lynch, chamado Mulholland Drive (considerado pela BBC como o melhor filme já feito neste incipiente século XXI), ou a tradução brasileira idiota que fizeram dele - "Cidade dos Sonhos". Como se não bastasse, fizeram questão de criar um cartaz que coloca em primeiro plano os rostos de duas mulheres, aparentemente ingênuas, olhando para o céu, à procura dos seus ideais com o máximo de pureza e dignidade. A distribuidora nacional deveria ser enquadrada no artigo 171 do Código Penal porque aquelas moças não possuem nada de pureza e dignidade - aliás, algo óbvio ao se tratar de um filme de David Lynch, falecido ontem aos 78 anos de idade.
Muitos não suportam Lynch pelo seu gosto do bizarro. O apelido mais carinhoso que seus opositores lhe deram foi "charlatão". É verdade que ele teve seus momentos de aparente picaretagem - vide Wild at Heart (1992), um filme insuportável à primeira vista, mas que ganha muito em uma segunda revisão. Todavia, algo aconteceu com Lynch nos últimos anos. É como se o cineasta não se importasse mais em fazer filmes segundo as regras dos outros, e sim segundo suas próprias regras, muito particulares. Nesta atitude quase terrorista, Lynch resolveu implodir com a gramática cinematográfica tradicional, para fazer apenas o que sempre desejou: cinema puro, baseado na manipulação sutil de som, imagem e atuação. Com a ajuda de seus fiéis escudeiros, como o músico Angelo Badalamenti, a editora e então esposa Mary Sweeney, e o diretor de fotografia Peter Deming, ele usa o cinema para uma investigação em torno de um tema que o preocupa permanentemente - o avesso do ser humano.
Mulholland Drive é uma espécie de continuação mais radical de Lost Highway (1997), o filme em que Lynch começou a acabar com os alicerces do que seria uma história com começo, meio e fim para o espectador ameba dos nossos dias. Com o intento de provar que era um sujeito realmente perigoso, Lynch fez um parêntesis enganoso, The Straight Story (1999), na superfície uma parábola sobre a perseverança, mas na verdade um estudo sobre como um homem pode vencer o avesso que o corrói por dentro da alma. Mas, com Mulholland Drive, Lynch volta a investigar o Mal com uma inventividade quase doentia, e seu sucesso artístico talvez se deva ao fato de que este filme sempre foi aquilo que ele procurou durante toda a sua obra.
Apesar da sua estrutura insólita, Mulholland Drive é um filme bem conservador na crítica que faz das pessoas que rodeiam Los Angeles, a tal cidade dos sonhos. Mas para entender o que Lynch quis dizer com seu nó górdio cinematográfico, teremos que dividir a história em dois níveis: o da realidade e o da fantasia. A primeira história é sobre Diane Selwyn (Naomi Watts), que chega a Hollywood após vencer um concurso de dança, disposta a se tornar atriz. Num teste de elenco, conhece outra mulher, Camilla (Laura Elena Harring), que ganha o papel. As duas se tornam amigas e, posteriormente, amantes. Aos poucos, contudo, Camilla se revela como uma carreirista, ficando noiva do diretor de cinema Adam Keshner (Justin Theroux), jogando Diane como uma bola de pingue-pongue, dando papéis secundários a ela em seus filmes, em que é a estrela principal, enquanto Camilla mantém outros casos homossexuais. Sentindo-se humilhada no jantar de noivado de Adam e Camilla, Diane decide contratar um pistoleiro para matar a amante. "Quando vir esta chave, o serviço estará feito", diz ele ao mostrar uma chave azul. Ao ver o objeto em cima da mesa, Diane tem alucinações sobre sua história com Camilla, e a culpa e o remorso de ter matado sua amada a levam cometer suicídio. Enfim, o que temos aqui é David Lynch descrevendo a teoria e as consequências do desejo mimético de René Girard com uma clareza insuperável.
Já a segunda história, mesmo sendo uma aparente distorção da realidade, revela mais do que a primeira, talvez por mostrar, de modo inusitado, como é a alma de Diane Selwyn. Uma mulher misteriosa (Laura Elena Harring) é vítima de um atentado enquanto anda de limousine na Mulholland Drive, mas um acidente com um carro em alta velocidade a salva da morte. No entanto, ela não escapa de uma amnésia, e vai parar no apartamento de Betty (Naomi Watts), uma aspirante à atriz que é irritante de tão boazinha, de quem fica amiga e, depois, amante. Paralelamente, também se conta a história de Adam Keshner, o mesmo diretor de cinema que se envolve com a máfia italiana ao ver que seu longa-metragem não sairá como quer devido à escolha impositiva da próxima estrela, uma modelo desconhecida chamada Camilla Rhodes. Há também a história de um homem que vê monstros em becos de lanchonetes (Winky´s Diner, o mesmo local onde Diane contrata o assassino para matar Camilla), de um tal de Club Silêncio e de uma caixinha azul que parece ser o elo entre a alucinação de Diane e o seu conto de fadas de Betty.
Sim, leitor, o enredo é intricado, e a forma como Lynch o desenvolveu é mais intricada ainda. Várias perguntas surgem enquanto o filme desafia o senso comum do espectador: É tudo uma alucinação? O que significa a caixinha azul e o Club Silêncio? Onde foi parar a Tia Ruth? E o acidente? - Como se explica o atentado na Mulholland Drive, rua sinuosa de Hollywood que dá título ao filme? Ao contrário de Lost Highway, em que não se sabia se tudo foi um sonho do personagem de Bill Pullman ou uma viagem esquizofrênica sem nenhum sentido aparente, Mulholland Drive deixa claro que a primeira parte da história é a consequência da desintegração psíquica de Diane Selwyn, remoída pela culpa de ter matado a sua querida Camilla. Sem este norte na interpretação do filme, não se pode chegar ao ponto em que David Lynch queria realmente falar ao fazer Mulholland Drive (e, talvez, o mesmo pode ser dito de toda a sua obra): a impossibilidade de se fugir da realidade.
Nesse sentido, Lynch é um dos integrantes do panteão de diretores que fazem questão de jogar na cara do espectador uma outra forma de contemplar a vida real como um tortuoso delírio: Stanley Kubrick, Fritz Lang, Alfred Hitchcock, Luís Buñuel, Andrei Tarkovski, David Fincher, Paul Thomas Anderson, Nicholas Winding Refn (em especial, com Only God Forgives) e Terrence Malick (é o caso de um dos seus filmes mais recentes, Knight of Cups). A história de amor entre Diane Selwyn e Camilla Rhodes se torna uma história de vingança e, no fim, de crime e castigo. Os sonhos de Diane, ao querer ser uma estrela, são arrasados em um mundo onde as mulheres manipulam outras mulheres em troca de favores sexuais, e qualquer possibilidade de inocência é vista como a caricatura de uma época que não existe mais. Isso não mostra que Lynch é um pessimista; mostra apenas que a realidade é dessa forma, e a única coisa a se fazer é enfrentá-la.
Enfrentar a realidade é justamente o que Diane Selwyn não fez, assim como Laura Palmer (da pioneira série Twin Peaks), Fred, Renée, Alice (de Lost Highway), e outros personagens famosos da galeria de David Lynch. É nesta recusa que o avesso aparece como a única maneira da pessoa encontrar algum sentido para a vida - o que é, naturalmente, um erro. Minucioso investigador do Mal, Lynch retrata Diane como uma mulher fascinada com aquilo que não pode ser e, ao perceber que não será aquilo de nenhuma maneira, decide eliminar o seu objeto de desejo para ninguém mais o possuir. Aqui deve-se dar os parabéns à atriz Naomi Watts, realmente extraordinária como Betty/Diane, na primeira, uma moça ingênua e, na segunda, uma alma atormentada pela desumanidade que causou. A cena do teste para o seu papel no filme de Adam Keshner é a maior prova deste talento descoberto e que foi consagrado por Lynch: do nada, Betty se torna um vulcão de sensualidade, uma nítida “projeção” (para usar a linguagem psicanalítica) de sua personalidade sobre Camilla e de sua vitória imaginária sobre o mundo real que humilha a verdadeira Diane.
Mas explicar tudo pelas alucinações de Diane não significa que Mulholland Drive se tornou um filme mais apreciável. Como explicar o Club Silêncio? Numa das cenas mais nervosamente divertidas já feitas, Lynch mostra Betty e a mulher misteriosa (agora chamada de Rita, por ter visto um cartaz de Gilda, com Rita Hayworth) indo a um clube misterioso, depois que esta sussurra em espanhol as palavras "silencio" e "no hay banda". No local em questão, as duas, com vestimentas idênticas, como se fossem duplos, veem um apresentador declamar o seguinte texto: "No hay banda. Il n’y a pas de orchestra. There’s no orchestra. It’s all recorded. It’s all in the tape" (Quando chega nessa hora, o espectador pensa seriamente se Lynch teve uma overdose de LSD, tamanha a insanidade da cena). Betty e Rita choram ao escutar a principal atração, uma cantora chamada Rebekah Del Rio (considerada a mais chorona de Los Angeles), que canta uma versão de "Crying", de Roy Orbinson, em castelhano. De repente, Rebekah desmaia, mas, mesmo assim, a canção continua a ecoar pelo palco porque "no hay banda, It’s all recorded, It’s all in the tape". Entenderam?
É claro que não entenderam. Ninguém entendeu. Mas a pergunta certa a se fazer é a seguinte: é importante entender alguma coisa? Não. David Lynch sabia que o avesso da vida é tão inexplicável quanto a própria vida. E aí está a vitória de Mulholland Drive como obra de arte: ela pode ser incompreensível em muitas partes, mas possui uma lógica interna que nunca se rompe ou se vende a concessões alheias. Pertence ao mundo único do seu autor, e ninguém mais poderia criá-lo. Contudo, um aviso deve ser feito ao espectador despreparado. Ao sair após a exibição, ele pode encontrar, na vida real, detalhes assustadores que o levarão a concluir que a luta com a realidade e o avesso que surge da fuga desta mesma luta terminam no silêncio da morte, de acordo com a visão idiossincrática de Lynch. Mais um engano: para ele, a realidade era a coisa mais bela a ser enfrentada, e, mesmo que ela parecesse terrível diante dos seus olhos, deve-se aceitar o seu mistério para não ficarmos presos nos nossos sonhos sem nexo.
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