O Gigante Invertebrado
Uma pequena história emocional sobre a revolução fracassada que foi a Operação Lava-Jato.
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These are the words,/ the words that maketh murder.
P.J. Harvey
1.
Desde 2013, muito antes do flagelo do coronavírus nos atingir, o Brasil vive um filme de horror.
Não se trata da adaptação de um livro de Stephen King ou de um conto escrito por Edgar Allan Poe. O horror está mais próximo das peças trágicas de William Shakespeare, Macbeth e Hamlet – e, como disse o jornalista Vinicius Mota no artigo “Hamlet ou Macbeth”, os brasileiros não sabiam se estavam no momento em que o tirano morreria para depois restaurar o país com um novo governo, ou se haveria “algum dinamarquês vivo para assumir a coroa”.
Com a peste, estamos no instante da violência traumática. Mas a “escalada dos extremos” já havia começado a surgir de forma perceptível há alguns anos e impressionou pelo efeito que provocou na deterioração veloz das instituições políticas e econômicas do país. Se, para quem estava no centro do redemoinho, era quase impossível apreender a sucessão vertiginosa de fatos e escândalos surgidos a cada momento, imaginava-se que, principalmente para quem estava fora do Brasil, a situação era inacreditável.
E era mesmo. Pode-se listar a corrente de eventos que levaram ao Brasil chegar a um estado semelhante de um gigante que caminha alquebrado porque descobriu que lhe retiraram as vértebras – mas isso somente tornaria as coisas mais confusas. Se alguém quiser entender minimamente o que aconteceu por aqui, especialmente se for a respeito da investigação da Operação Lava-Jato (assim mesmo, com hífen), que revelou uma rede de corrupção a qual se estende quase ao infinito, sugiro que, antes de tudo, acompanhe as reviravoltas a serem descritas como se você estivesse assistindo a um episódio de The Wire – a série de televisão criada por David Simon e Ed Burns, aplaudida pela crítica por mostrar um “estado de exceção” que operava dentro da democracia americana.
2.
Mas, para entendermos claramente a origem do horror deste “estado de exceção” à nossa volta, somos obrigados a fazer um resumo do imbróglio que se tornou o Brasil – e começaríamos assim, com uma lista de números e de atos jurídicos que deixariam qualquer um boquiaberto (preparem-se e segurem o fôlego).
Segundo as informações oficiais do Ministério Público Federal de Curitiba (que coordenou nacionalmente a investigação da Operação Lava-Jato, pois forma, junto com a Policia Federal da capital do estado do Paraná, uma unidade especializada em crimes de lavagem de dinheiro), “em 32 fases até agora [2016], a força-tarefa do MPF na Lava Jato já recuperou R$ 2,9 bilhões para os cofres públicos – havendo mais R$ 2,4 bilhões em bens bloqueados dos réus. O montante de ressarcimento pedido, até agora, alcança R$ 21,8 bilhões. O Ministério Público propôs também 37 ações penais contra 179 pessoas e 6 ações de improbidade contra 49 pessoas, sendo 33 físicas e 16 jurídicas. São 93 condenações criminais, incluindo casos de réus que foram condenados mais de uma vez. As penas, somadas, chegam a 990 anos e 7 meses de prisão.”
Batizada com este nome porque tudo começou em um esquema de extorsão que ocorria em um posto de gasolina em Brasília, a Lava-Jato descobriu e desmantelou um dos maiores esquemas de corrupção já feitos, quiçá o maior, baseado na troca de propinas ocorridas nas negociações que envolviam a Petrobrás (uma das mais importantes empresas de petróleo do mundo), as grandes empreiteiras nacionais (como a Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, o Grupo OAS e a UTC Engenharia) e os políticos de partidos como PT (Partido dos Trabalhadores), PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), e PP (Partido Progressista), todos então da base governista entre os anos 2005-2016.
Como se não fosse suficiente caber tudo isso em um único período gramatical, descobriu-se também que o esquema era uma continuação pantagruélica daquilo que foi conhecido como “Mensalão”, objeto de um polêmico julgamento no Superior Tribunal Federal (STF). Nele, foram condenados, entre outros, José Dirceu (petista emérito, ex-chefe da Casa Civil na época do primeiro governo de Luís Inácio Lula da Silva e considerado o chefe do esquema, segundo a maioria dos juízes), José Genoíno (presidente nacional do PT), Delúbio Soares (tesoureiro do PT) e Marcos Valério (publicitário que fazia às vezes de negociante de propinas e de pagamentos alternativos para campanhas políticas – o chamado “caixa 2”). Apesar de muitos afirmarem que este procedimento heterodoxo – o da troca de favores financeiros para a compra de votos de projetos de lei favoráveis aos interesses do Palácio do Planalto, onde trabalha a Presidência da República – iniciou-se no mandato de Fernando Henrique Cardoso (a eterna eminência parda do PSDB, Partido da Social Democracia Brasileira), é de se notar a estranha coincidência de que isto assumiu uma expansão sistêmica justamente no período em que o PT ganhou o poder, combinado com o inchaço da máquina estatal graças à indicação comissionada de militantes que ocuparam mais de 23 mil cargos públicos (5 mil eram filiados diretamente ao partido). Tal fato nos leva a crer que o Brasil testemunhou uma inédita estratégia de aparelhamento que, como bem disse o então presidente Lula ao falar de seus feitos sociais, “nunca antes aconteceu na história deste país”.
Por isso, a imprensa apelidou o esquema descoberto pela Lava-Jato de “Petrolão”. No centro deste emaranhado de conluios investigados e já denunciados pela Procuradoria Geral da República (que chefia o MPF de Curitiba e coordena os processos que estão em foro privilegiado, i.e., os que não são civis) pipocaram nomes da elite política da nação, entre eles senadores como Fernando Collor de Mello (que entrou para a história anteriormente como o primeiro presidente brasileiro a ser quase “impedido” em suas funções), o próprio presidente do Senado, Renan Calheiros (com nove indiciamentos) e o presidente da Câmara dos Deputados, o polêmico Eduardo Cunha (com três indiciamentos, duas acusações de réu, atualmente em prisão domiciliar por causa da pandemia).
Mas também existiu um triunvirato de nomes que disputou o domínio de querer dar à sociedade civil um sentido ao drama apresentado diante dos nossos olhos: o juiz federal da 13ª Vara de Curitiba Sergio Fernando Moro, a então presidente Dilma Vana Rousseff e o seu criador, o ex-presidente Lula.
3.
Foi uma verdadeira batalha de titãs. Comecemos por Moro. Talvez ele não soubesse das incríveis coincidências que giravam ao redor do seu sobrenome, entre eles a relação que há entre Thomas More (Tomás Moro), o autor do clássico Utopia (1516), advogado e, depois, lorde chanceler da Inglaterra que fazia questão de cumprir as leis a qualquer custo (inclusive pondo a sua cabeça literalmente a prêmio quando foi enviado ao cadafalso pelo rei Henrique VIII em 1535); ou então a sinistra referência ao primeiro ministro italiano, Aldo Moro, que foi assassinado pelo grupo comunista Brigadas Vermelhas na década de 70. Além disso, há o fato de que, em latim, Morus significa o tolo, o louco que rompe com o marasmo estabelecido pela ordem social petrificada (como já nos avisava Erasmo de Rotterdam em seu Elogio da Loucura), e é também um nome pleno de trocadilhos ambíguos, já que às vezes soa como Mors - nada mais, nada menos que “morte”.
Contudo, o magistrado sabia exatamente o que estava fazendo ao liderar a Operação Lava-Jato. Considerado um dos juízes mais brilhantes da sua geração, e relativamente jovem (44 anos de idade na época), Sergio Moro era um especialista nos crimes de colarinho branco, em particular o da lavagem de dinheiro. No auge do julgamento do Mensalão pelo STF, a ministra Rosa Weber o chamou para ser uma espécie de consultor e assim orientá-la nos fios aparentemente desordenados de caixas 1, caixas 2, off-shores e pessoas interpostas (ou “laranjas”) que formavam o “complexo esquema de corrupção infiltrado no Estado brasileiro” (segundo palavras do decano do STF, o juiz Celso de Mello).
Mas ele fez mais. Em 2004, Moro publicou um paper acadêmico em uma revista jurídica especializada que tinha um singelo título: “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”.
Trata-se provavelmente do documento mais importante para se estudar o que foi a política brasileira nos últimos anos. Seu assunto era a Operação Mãos Limpas, ocorrida na Itália a partir de 1992, e que devassou todo o mundo político daquele país, demolindo, por exemplo, a alternância de poder dominante que havia entre o PSI (Partido Socialista) e PDC (Partido da Democracia Cristã), revelados como as maiores fontes de corrupção do país. No paper, Moro narra os eventos com o estilo que o tornou característico: frio, distante, polido, no limite da dureza que se espera de um juiz. Entretanto, o que importa no estudo minucioso das Mãos Limpas – e que talvez tenha atraído Moro – foi o uso do instituto legal da “delação premiada” (ou “colaboração premiada”, como alguns membros do MPF chamam, em que o criminoso conta o que sabe para ter, em retorno, uma pena mais branda), além do modo como o uso da imprensa poderia influir na percepção da sociedade civil frente à luta contra a corrupção a qual, no fim, prejudicava os serviços mais básicos que um Estado deveria prover.
Sobre o primeiro assunto, Moro não deixa dúvidas como a “delação premiada” era um instrumento perfeitamente legal que ajudaria o curso das investigações, se fosse usado com critério e prudência:
“Sobre a delação premiada, não se está traindo a pátria ou alguma espécie de ‘resistência francesa’. Um criminoso que confessa um crime e revela a participação de outros, embora movido por interesses próprios, colabora com a Justiça e com a aplicação das leis de um país. Se as leis forem justas e democráticas, não há como condenar moralmente a delação; é condenável nesse caso o silêncio.
Registre-se que crimes contra a Administração Pública são cometidos às ocultas e, na maioria das vezes, com artifícios complexos, sendo difícil desvelá-los sem a colaboração de um dos participantes. Conforme Piercamillo Davigo, um dos membros da equipe milanesa da operação mani pulite: A corrupção envolve quem paga e quem recebe. Se eles se calarem, não vamos descobrir, jamais”’.
E, no segundo assunto, o da relação da imprensa com a sociedade civil, Moro também deixa claro que, sem ela, a Operação Mãos Limpas não teria dado certo, pois foi graças a este “círculo virtuoso” que os cidadãos tiveram conhecimento das intervenções da quadrilha infiltrada dentro do governo italiano, contra a investigação em curso:
“A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como visto, foi de fato tentado.
Há sempre o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado. Cabe aqui, porém, o cuidado na desvelação de fatos relativos à investigação, e não a proibição abstrata de divulgação, pois a publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios. As prisões, confissões e a publicidade conferida às informações obtidas geraram um círculo virtuoso, consistindo na única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação mani pulite”.
Durante o início da Operação Lava-Jato, Moro manobrou os dois aspectos da “delação premiada” e de como elas eram divulgadas pela imprensa com uma perícia digna de estrategista de xadrez. Naqueles tempos, antes de se interessar pelo mundo político e ser ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, ele se recusava a dar entrevistas; dizia o que tinha de dizer apenas nos autos do processo, geralmente escritos em uma linguagem firme, clara e sem insinuações; apenas expressava suas visões sobre a corrupção brasileira em palestras públicas que, de resto, ninguém sabia muito sobre o que comentar porque parecia que ele falava de um outro mundo. A respeito do processo em si e da execução da delação premiada, seus interrogatórios eram um exemplo de contenção, e suas sentenças apavoravam os réus, pois eram dadas com agilidade e com penas consideradas severas (o exemplo mais marcante foi o de Marcelo Odebrecht, presidente da maior empreiteira brasileira batizada com o seu sobrenome, condenado à época a 19 anos de reclusão). Quando o colaborador ajudava, Moro era educado, porém frio, sempre em busca da imparcialidade do processo, mesmo quando podia prejudicar o curso natural de uma revelação bombástica (no meio de uma declaração de um delator que iria contar como Eduardo Cunha pedia propina, Moro parou subitamente o questionamento e falou que aquilo não fazia parte da sua jurisdição). Quando ele errava – como, por exemplo, o que aconteceu com a parente de um dos envolvidos no esquema, citada por acaso e, por isso, teve a prisão temporária decretada –, Moro admitia o equívoco rapidamente e fazia o possível para deixar claro nos autos que a pessoa deveria permanecer com a sua reputação imaculada. E também mostrava uma humanidade rara em relação aos acusados: no dia em que José Carlos Bumlai, o pecuarista amigo de Lula e suspeito de pagar U$$ 2 milhões para uma propina da Petrobrás, foi diagnosticado com um câncer na bexiga, decidiu abrandar o seu cárcere para uma prisão domiciliar, mesmo sem ter feito a delação premiada, e assim pudesse se tratar sem nenhum dano psicológico, desde que sempre fosse acompanhado por uma pulseira eletrônica.
Por alguma ironia do destino, a lei da delação premiada foi sancionada justamente por aquela que mais a criticou – a presidente Dilma Rousseff, responsável por autografar a lei de número 12.850, e também conhecida por seus acólitos como alguém “mandona”, personalista, obsessiva com os detalhes e centralizadora, características que a acompanham desde a época em que carregava baldes cheios de armamentos de um esconderijo para outro, quando era uma das guerrilheiras do grupo de esquerda radical VAR-Palmares. Apesar de todas essas características, na hora em que ela criticou ferozmente esse mesmo instituto legal que levou os seus companheiros de partido para a cadeia, como José Dirceu (o favorito do PT para ser o sucessor de Lula e preso uma segunda vez na Lava-Jato pelos mesmos crimes, entre eles o da formação de quadrilha, mesmo depois de ter sido condenado no julgamento do Mensalão) e João Vaccari (outro tesoureiro do PT e o substituto de Delúbio Soares), alguém da sua assessoria deve ter se perguntado se a representante maior da nação realmente leu o que lhe foi dado para assinar ou se Dilma, por algum descuido, assentiu com algum conselho atrapalhado de um dos seus acólitos.
É provável que tenha sido o último caso. Dilma foi a criação biônica de Luís Inácio Lula da Silva que, impossibilitado de fazer o seu sucessor em 2008, após os sucessivos escândalos que atingiram Dirceu e Antonio Pallocci (também envolvido nas delações da Lava Jato e que, em 2005, teria ordenado o presidente da Caixa Econômica Federal a devassar a conta do caseiro Francenildo dos Santos Costa, testemunha da sua presença em uma orgia regada de aberrações e negociatas), decidiu que investiria na desconhecida Ministra das Minas e Energia e, depois, promovida a Chefe da Casa Civil, como sua herdeira maior.
Deu certo: Dilma foi eleita duas vezes, por meio de um discurso publicitário criado pelo jornalista João Santana, apelidado carinhosamente por seus desafetos como “O Goëbbels do PT” por ser um brilhante spin doctor (e, olhem só outra coincidência, também capturado pela Lava-Jato, junto com sua esposa Monica Moura), ao divulgar que o Brasil passava por um milagre econômico sem precedentes quando, na verdade, começava a vislumbrar o que seria o seu atual abismo financeiro. Nesse meio tempo, a presidente passou por uma transformação que já foi explicada por Mary Shelley em Frankenstein: a da criatura que acredita ter vida própria e rejeita o seu criador.
É claro que o ex-presidente Lula não gostou nada disso. Afinal, ele era, segundo o jornalista Ivo Patarra, “O Chefe” – algo que todos sabiam no Brasil, mas ninguém tinha a coragem de provar ou de afirmar abertamente porque isso implicava em ser trucidado pelo “sistema pós-totalitário” que se instaurou na cultura brasileira. Por “chefe”, entenda-se exatamente isso: de acordo com Patarra, Lula sempre teve o controle de tudo o que acontecia não só dentro do seu governo, mas no próprio partido, uma vez que a intenção primeira do PT foi sempre realizar aquilo que profetizava Antonio Gramsci, um dos ídolos da esquerda: tornar o partido e o governo indistinguíveis, controlando as brechas do Estado e assim transformá-lo em uma máquina completamente aparelhada que sufocaria o resto da sociedade civil. Parece exagerado, mas não é – e as investigações da Lava-Jato só mostraram apenas a ponta do iceberg.
4.
Portanto, tendo Lula como o líder de um projeto de tomada de poder, havia também o conluio ideológico e financeiro com países como Cuba, Venezuela, Bolívia, Uruguai, as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), e a estrutura daquilo que Roberto Saviano chama de “narcocapitalismo”, o PT foi o elemento central de uma organização chamada Foro de São Paulo, descoberta pelo advogado José Carlos de Graça Wagner (falecido em 2002 após um claro processo de “assassinato de reputação”), divulgada depois pelo escritor e jornalista Olavo de Carvalho para futuras intenções espúrias (a saber, defender a eleição de Jair Bolsonaro), e divulgado até mesmo pelo ex-Ministro das Relações Internacionais do governo FHC, Luiz Carlos Lampreia (morto no dia 2 de fevereiro de 2016, de infarto), em pleno programa Painel, do canal de TV a cabo.
Somado a tudo isso, temos de levar em conta não só a capacidade de comando de Lula, mas principalmente a sua personalidade, que emite uma aura de “líder articulador” que talvez só seja comparada, na história da política brasileira, a de Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954). Dissimulado ao extremo, com uma incrível capacidade de se adaptar às circunstâncias, mas ao mesmo tempo com uma tendência latente de se revelar como alguém de temperamento violento se a necessidade exigir, Lula era considerado como o presidente da República mais popular dos últimos tempos, o responsável por ter tirado o Brasil dos índices de miséria graças aos programas sociais que se alimentavam dos impostos federais (os mais famosos são o Bolsa Família e o Fome Zero). Paralelamente a isto, entretanto, foi o político que fez exatamente o que lhe foi pedido pelos companheiros de partido: criou o disfarce de uma economia pró-mercado enquanto destruía lentamente o sistema democrático por dentro.
Logo, era compreensível a adoração que os militantes sentiam a respeito de Lula e a nomenklatura do PT, o que o transformava em uma espécie de “religião política”, segundo os conceitos do filósofo alemão Eric Voegelin. Aqui, conforme já expliquei em meu livro A Poeira da Glória, a ideologia começa a justificar aquilo que podemos classificar como a “pneumopatologia da estupidez” – por sua vez, o fundamento do “sistema pós-totalitário” que molda o horror político vivido recentemente pelos brasileiros, intensificado sobretudo agora pela pandemia da covid-19.
Até então, Lula e Dilma escapavam das garras da Lava-Jato, deixando para que Vaccari e Dirceu se oferecessem como os bodes-expiatórios da história, se não fosse por um elemento imprevisível e inesperado: a prisão em flagrante e a posterior delação premiada do senador Delcídio do Amaral.
Por alguma sugestão digna dos filmes de Oliver Hardy e Stan Laurel, Delcídio resolveu convencer o filho de Nestor Cerveró (o diretor da Petrobrás acusado de negociar e de receber propinas, também preso pela Lava-Jato), Bernardo, de que o pai poderia fugir da prisão domiciliar já acertada com o MPF, e assim não faria uma delação que, certamente, incriminaria várias pessoas da cúpula do governo petista. Ocorre que, talvez por excesso de precaução, talvez porque realmente amasse o seu progenitor, Bernardo gravou toda a conversa (que foi acompanhada pelo advogado de Nestor e por um assessor parlamentar de Delcídio) e entregou-a sem hesitar à Polícia Federal. Três dias depois, a mando do próprio STF (citado pelo senador na gravação como se os seus magistrados fossem capazes de ajudar os membros do governo, graças ao fato de que eles foram, em sua maioria, indicados pela presidente Dilma e por Lula nos últimos doze anos), Delcídio foi preso, numa operação mirabolante que incluiu também a prisão do banqueiro André Esteves (dono do BTG Pactual, o maior banco de investimentos do Brasil e que, segundo o político boquirroto, pagaria o dinheiro necessário para a manutenção mensal da família de Cerveró enquanto este praticava a sua fuga cinematográfica).
E aqui o leitor deve ter algo em mente para exercitar a sua imaginação. Ficar preso, em qualquer lugar no mundo, mas especialmente no Brasil, não é algo agradável. Aqui, as prisões são geralmente infectas, lotadas de pessoas que ninguém gostaria de ver logo pela manhã durante o café da manhã. Obviamente, por ter foro privilegiado (e ser um dos raros senadores presos em flagrante na história da República), Delcídio teve uma cela privativa, o que o impediu de viver essa experiência desagradável. Mas a impossibilidade de ver o sol do amanhecer, de andar quando quiser, de tomar um café na padaria da esquina – tudo isso transforma a vida de um prisioneiro amador num inferno em quatro paredes.
Todavia, a situação vai muito além de um mero “desconforto” material. O Brasil é um país que tem uma taxa inacreditavelmente alta de homicídios em relação à população total do país: cerca de 60.000 assassinatos por ano (suplantada atualmente pelo mais do que o triplo de mortes por coronavírus). É claro que existe uma lista de razões para isso: desde a falência na infraestrutura e na educação públicas, passando pela falta de preparo na segurança nacional, até chegar à incompetência técnica dos nossos governantes. Contudo, há um fator adicional: a omissão deliberada do partido que se apossou no Governo Federal e que sempre foi um defensor empedernido da mentalidade de que “bandido é sempre vítima”. Essa mentalidade criou um tipo muito específico de comportamento na elite burocrática de Brasília e dos outros estados: seus membros se recusam a enfrentar na carne a epidemia de violência que assola o cidadão comum, protegendo-se com seus seguranças particulares, seus condomínios fechados e seus carros blindados. O resto que se lixe e que deixe o brasileiro comum experimentar a falência do seu cotidiano como se fosse um permanente “estado de exceção”. Por isso, na hora de experimentarem a realidade da cadeia, não hesitam de delatar quem deve ser delatado, a qualquer custo.
Afinal, protegidos pela realidade alternativa construída por eles mesmos, em função de um esquema que dava cada vez mais poder a uma organização criminosa disfarçada de partido político, eles se esqueceram que, no fundo, a existência humana talvez não passe de um palco repleto de horrores, com alguma luz no final de um túnel bem comprido e repleto de escuridão. É muito provável que também lhes faltou uma certa educação cinematográfica, pois, se a tivessem, teriam sempre à mente o famoso diálogo entre Martin Sheen e Marlon Brando no filme Apocalypse Now Redux (2001), de Francis Ford Coppola (baseado na novela O coração das trevas, de Joseph Conrad), em que Brando interpreta o demente Coronel Kurtz. Neste diálogo, não podemos nos esquecer dessas palavras que se tornam dignas de uma reflexão sobre aquilo que mais importa nos momentos de trevas: “Não se têm palavras para descrever o que significa o horror”, murmura Kurtz. “Devemos fazer do horror e do terror moral nossos amigos, senão sucumbimos a eles. O que nos destrói na verdade é o julgamento das coisas”.
Não à toa que as últimas palavras do Coronel Kurtz foram “o horror, o horror”. Para ele, viver é um fardo. A mesma coisa pode-se dizer de um Marco Willians Camacho, o Marcola, o antigo chefe do Primeiro Comando da Capital de São Paulo (o PCC), que teria dado uma suposta antológica entrevista dada ao jornal O Globo, em maio de 2006 (enquanto a sua quadrilha paralisava o cotidiano da capital paulistana). O único problema é que ela é uma primorosa peça de ficção. Neste prenúncio de fake news antes do nosso tempo, ao ouvir a pergunta feita pelo jornalista de que “não haveria solução [para a situação em que o país se encontra]?”, ele teria dito o seguinte: “Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem de defender a ‘normalidade’. Não há mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria incompetência. Mas vou ser franco…na boa… na moral… Estamos todos no centro do Insolúvel. Só que nós vivemos dele e vocês… não têm saída. Só a merda. E nós já trabalhamos dentro dela. Olha aqui, mano, não há solução. Sabem por quê? Porque vocês não entendem nem a extensão do problema. Como escreveu o divino Dante: ‘Lasciate ogna speranza voi che entrate!’ Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno.”
Numa linguagem direta, sem adornos – e com direito a uma referência a Dante Alighieri –, o personagem Marcola personificava a atitude já retratada por um outro poeta, o francês Paul Valéry, nesses versos enigmáticos: “Suas ideias são terríveis e seus corações são fracos. Seus atos de misericórdia e crueldade são absurdos, feitos sem nenhuma calma, como se fossem irresistíveis. Finalmente, você teme o sangue cada vez mais. O sangue e o tempo”. (Não por acaso, o escritor americano Cormac McCarthy usaria essas mesmas palavras de Valéry como epígrafe da sua violentíssima obra-prima, Meridiano de Sangue.)
Queremos extirpar este suposto Marcola (e os demais políticos acusados de corrupção na Lava-Jato) da nossa categoria biológica como se ele não fosse um ser humano. Entretanto, é tão humano quanto nós, já que também somos capazes de cometer os mesmos atos de crueldade. Também temos medo do sangue e do tempo, pois estes dois elementos são o eixo do horror que nos domina nestes dias.
No Brasil, a violência determina o acaso, como o único sentido possível para se continuar vivendo. Não se pergunta mais “Como você está? Tudo bem?”; agora se pergunta “Você será o próximo?”, e a resposta é “Nem sei se haverá um próximo”. Se o Marcola & Cia. Ltda. fictícia tornaram-se o nosso Coronel Kurtz, isto aconteceu porque o horror e o terror moral foram convidados a entrar na nossa sala de jantar, com toda a displicência que a ausência de uma responsabilidade moral nos traz de brinde.
A imprensa brasileira, em sua maioria, cobre o assunto da violência entrevistando suas vítimas, combatentes e viúvas. Todos, sem exceção, se sentem desamparados pelo Estado. “A Justiça deveria mudar as leis”, “A Polícia deveria ser mais eficiente”, “O Governador foi ineficaz em sua atuação”, “Não recebo dinheiro suficiente do Estado” – uma série de lorotas que os administradores repetem incessantemente, e que as vítimas fazem o mesmo, talvez pelo motivo que, por causa do trauma, a alma se ampara ao jogar a culpa no outro.
Mas a pergunta que deveria ser feita, ninguém tem a coragem de fazê-la: “O que eu, como indivíduo, devo realizar para impedir a violência contra os meus próximos?”. Devo entrar numa ONG (Organização Não-Governamental) composta de pessoas que querem intervenção estatal, só para viverem numa ordem ilusória? Devo fugir do lugar onde nasci, esquecendo-me que o mundo sempre foi perigoso desde o início dos tempos? Devo me filiar a um partido que se vende como vítima de um golpe de estado quando, na verdade, tem relações mal explicadas com movimentos de guerrilha, de vandalismo urbano e invasão de terras - ou então com milícias militares? Devo sentar-me e esperar pela mamãe Estado, que virá me alimentar com seu leite venenoso e sua teta murcha?
Nenhuma das alternativas, caro leitor. A resposta é dar uma banana ao Estado e criar a sua própria segurança. Há um nome para isso: legítima defesa, e seu único requisito é ter total consciência de que não há muita diferença entre o político burocrata que anda de carro blindado e os sujeitos que são os capangas de Marcola. Ou seja, nós somos também capazes de realizar o mesmo horror descrito pelo Coronel Kurtz. E então, a partir desta sinistra conclusão, construir um caminho em que o dom de fazer um julgamento moral termine na compreensão de que o outro pode ser seu amigo ou inimigo, conforme a escolha dele.
É um direito universal se defender ao se sentir acuado. Quando o indivíduo se encontra com a bandidagem do crime e a bandidagem do Estado, o que resta é esperar por uma reação extrema das massas ignaras. O sangue é precioso demais para ser desperdiçado numa guerra liderada por oportunistas, e o tempo é curto demais para uma salvação próxima. Temos de nos apoiar em nós mesmos, em nossa família e numa educação criteriosa de valores, na qual devemos separar o altruísmo para as organizações que louvam a bandidagem.
E onde fica o perdão nessa história? Não há espaço para perdão em um mundo onde a violência impera. Estamos num círculo vicioso em que esperamos por um milagre ou por uma guerra civil. Ficamos totalmente à mercê do horror. Sim, temos medo do sangue e do tempo, e nossas vidas estão sob o tênue fio do acaso, dependendo apenas da vontade arbitrária de quem comanda o “estado de exceção” em que vivemos. Mas não podemos nos render – é isso o que o horror deseja, é assim que ele se infiltra em nossas almas. O sentido da vida está na dignidade do sofrimento quando nos confrontamos com a escuridão, e a vida deve ser aproveitada com todas as suas alegrias, dores e ambiguidades. O medo elimina o sabor doce do sangue e o frescor do passar do tempo. Render-se aos seus caprichos é deixar que o mundo acabe com o suspiro dos moribundos, e não com a explosão do bom combate.
5.
Assim, pessoas como Delcídio do Amaral, Marcelo Odebrecht, Ricardo Pessoa (dono da UTC e que fez delação premiada), Otávio Azevedo (presidente da Andrade Gutierrez e igualmente delator) e tantos outros são incapazes de ter a fortaleza interior para suportar tamanho horror existencial, principalmente quando encaram uma única noite na prisão. Afinal, ao serem os construtores (e também as vítimas) de um sistema pós-totalitário, eles fazem aquilo que Václav Havel chamava de “viver na mentira”. E quem vive na mentira, não tem como perceber que a cadeia só é um refúgio para quem sabe que é injustiçado. Não é o caso. A perda da liberdade exterior é algo muito traumático para eles – e resta-lhes então a única saída ao ver a luz do sol: dizer tudo o que sabem em troca de um pouco de paz fora do cárcere, mesmo que isto seja uma ilusão.
Foi o que fez Delcídio. Segundo os procuradores da Lava-Jato, ele não foi apenas um pequeno pássaro que cantou como poucos; foi uma verdadeira ema. O resultado é uma conversa registrada em mais de 400 páginas, com 29 anexos, todos minuciosamente documentados com a agenda de trabalho do senador, validada numa petição de outras 200 páginas. É também uma verdadeira anatomia de como a Nova República do Brasil, iniciada após o fim da ditadura militar com a Constituição de 1988, estava completamente apodrecida – e de como o PT dominou o Estado em (quase) todos os seus braços e tentáculos.
Neste relato, Delcídio conta o óbvio ululante que todo mundo sabia, mas não tinha como provar: Lula passa a ser o principal suspeito de chefiar toda a operação orquestrada dentro do governo federal – e Dilma seria sua cúmplice, principalmente na indicação de diretores da Petrobrás, como Nestor Cerveró e Renato Duque (indicado por José Dirceu, segundo as investigações), que tinham de conseguir a propina com as empreiteiras, para depois repassarem o dinheiro ao caixa 2 do partido. O senador era quem fazia a operação política do esquema em Brasília, sabendo de tudo e de todos.
A delação de Delcídio mostra igualmente que o PT não é o único culpado pelo o que acontece no país. Em seu relato, ele afirma que a maioria dos grandes partidos políticos participava do “Petrolão” – em especial, a suposta nemesis dos petistas, o PSDB, chefiado pelo ex-governador de Minas Gerais, Aécio Neves (e que foi o candidato presidencial que perdeu para Dilma em 2014), e antes pelo ex-presidente da República, agora rascunho de elder statesman, Fernando Henrique Cardoso.
6.
O duelo entre PT e PSDB é um dos maiores mitos da história política brasileira – inclusive exportado para o resto do mundo, especialmente quando lemos as reportagens escritas por correspondentes estrangeiros.
Tudo isso não passa de uma grande mentira. Ambos os partidos têm um mesmo fundo comum ideológico: a social democracia obscurantista, segundo as palavras de Paulo Mercadante em seu livro A coerência das incertezas. Trata-se de uma ideologia pusilânime que, protegida pelas belas palavras de uma esquerda aparentemente moderada, está disposta a aplicar alguns procedimentos do que seria um liberalismo capitalista (confundidos por epígonos e agitadores esquerdistas como algo de “direita”), preparando assim o terreno para o pior subdesenvolvimento de todos: o de que é melhor renunciar à liberdade individual em função de certa estabilidade financeira e material, sempre promovida pelo Estado, é claro. No fundo, trata-se da síntese entre socialismo e democracia, uma moeda de troca para a manutenção de poder nas mãos da nova nomenclatura que finge brigar entre seus integrantes e que, no fundo, quer manter a realidade alternativa onde vive porque ambos os partidos desejam continuar no status quo sem pensarem nas consequências para a sociedade.
Sem dúvida, os quatro primeiros anos do governo FHC foram algo inédito na história do país, em especial devido à laboriosa vitória que ocorreu com o Plano Real, que estabilizou uma economia antes carcomida pela hiperinflação. Porém, pouco a pouco, o próprio FHC foi indo para uma vertente mais social e esqueceu-se que, para ter os programas assistenciais bem azeitados, era obrigatório fazer uma reforma estrutural no Estado brasileiro – o que, infelizmente, não ocorreu. Paralelo a isto, o presidente se mostrou muito benevolente com a figura de Lula na eleição de 2002 e, quando o primeiro metalúrgico foi eleito, ele parecia ser o primeiro a estar satisfeito com a vitória do PT, sem saber que, no futuro, este mesmo partido praticaria nos anos seguintes um sistemático “assassinato de reputação” sobre a sua figura pública – uma traição habitual para quem segue os preceitos socialistas.
Não há nenhuma oposição entre o PT e o PSDB porque ambos os partidos praticam uma política que se baseia em uma “aparência de vida”. É só ver o que os últimos vinte anos dos seus respectivos governos fizeram com a juventude do país: para esses jovens, tudo funcionava, tudo estava consolidado, a economia finalmente era uma maravilha, ninguém mais passava fome, não havia mais conflitos ou guerras, tudo se encaminhava para a paz e para o amor, mas a corrente sanguínea da vida se petrificou de tal forma que, hoje, não conseguimos mais saber quando começou a nossa desgraça e como podemos sair desse impasse atual.
O fato da delação de Delcídio do Amaral informar que o presidente nacional do PSDB, o senador Aécio Neves, também recebia propinas do esquema de corrupção que acontecia na usina hidroelétrica de Furnas, jogou uma sombra muito escura sobre as hesitações do partido que, no fim das contas, deveria ser o principal opositor contra o projeto totalitário do PT. Suspeita-se que não só o PSDB suportou o PT por afinidades ideológicas, mas também porque era cúmplice no esquema criminoso. Entretanto, é importante ressaltar um detalhe fundamental: se o PSDB tem parte na rede de conluio descoberta pela Lava Jato, sua motivação é nada mais, nada menos que a corrupção fisiológica, em que um político faz isso para o seu enriquecimento pessoal e dos seus próximos, enquanto a motivação do PT era muito mais perigosa: a de manter, a qualquer custo, um projeto de poder e permanecer indefinidamente no Estado brasileiro, sem ter nenhum obstáculo.
7.
Ambas as atitudes são crimes graves e devem ser punidas sem hesitação, se forem provadas adequadamente. Todavia, há uma distinção de grau quando elas atingem as instituições públicas – e, por mais bizarro que isso pareça, essas atitudes possuem uma mesma raiz de mentalidade, que atende pelo nome de patrimonialismo.
Segundo o cientista político Antônio Paim no livro A querela do estatismo, o patrimonialismo difere daquilo que costumamos conhecer como governo representativo e caracteriza-se por ser uma estrutura mais forte do que a sociedade civil, muitas vezes engolindo-a, numa centralização de poder nas mãos de poucos sujeitos que têm as melhores intenções, mas são justamente elas que nos levaram para o horror que estamos vivendo.
Podemos dividir esse tipo de mentalidade em dois ramos: o patrimonialismo tecnocrata, de influência positivista e progressista, preocupado com a melhoria da sociedade por meio da técnica e com o aperfeiçoamento do homem; e o revolucionário, cujos os pais são o socialismo e o comunismo, obcecado em mudar a natureza humana porque tem a certeza de que só ele pode fazer isso, como se fosse “um fogo que queima as mentes dos homens”.
E, apesar das diferenças de método e de procedimento, os dois tipos de patrimonialismo fazem o que lhes é pedido: transformam o que seria a coisa pública em um assunto privado.
O que testemunhamos na explosão da crise política que atingiu o Brasil foi justamente a luta do patrimonialismo tecnocrático – às vezes representado pelas figuras de Sergio Moro, do MPF, da Polícia Federal e de uma boa parte do Poder Judiciário, mantenedores da ordem social e da lei; outras vezes representado pelo PSDB, em especial no governo de FHC que, com seus sutis planos econômicos, conseguiram trazer uma certa estabilidade ao mercado financeiro e ao cotidiano do povo – contra o patrimonialismo revolucionário, aqui claramente representado pelo PT e seus asseclas.
Cada parte quer ter uma parte do butim do Estado, para o bem ou para o mal, e cada um tem a sua intenção de não ceder enquanto puder. A diferença entre Sergio Moro e o resto do Judiciário é que, se este último quer manter as suas regalias (com pedido de aumento salarial de 72%), o primeiro mostra uma prudência idiossincrática, extremamente rara para quem é brasileiro, e prova a cada despacho que assina que é a sua honra pessoal que está em risco, desafiando a lógica do “estado de exceção” no jogo imposto à sociedade. Contudo, é de se notar que, ao mesmo tempo, Moro só poderia realizar o que está a fazer justamente porque ele está protegido pela capa negra da magistratura federal e, portanto, como membro do patrimonialismo tecnocrata.
8.
Como se fosse um preparativo desta guerra pelo coração do Estado, ocorreram as manifestações de massa de 2013. Elas surgiram no mês de Junho daquele ano e poderiam entrar para a história como a “Revolta do Vintém”, mas, no fundo, foram um fiasco por um simples motivo: em vez de defenderem a causa aparente – o aumento de 0,20 centavos nas passagens dos transportes públicos nas cidades brasileiras –, ficou claro que o principal motivador desses eventos, o Movimento Passe Livre (MPL), era mais uma organização que funcionava como “massa de manobra”, sendo financiado e fomentado ideologicamente por linhas auxiliares ao PT, como o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e o PCB (Partido Comunista Brasileiro, o antigo “Partidão” de Luís Carlos Prestes). Sua intenção primeira de causar o caos foi adiada após a morte trágica do cinegrafista Santiago Andrade que, ao cobrir um dos protestos em fevereiro de 2014, teve a sua cabeça literalmente estourada quando um rojão explodiu em suas costas, lançado por dois rapazes que eram protegidos e pagos pelo PSOL apenas para criar desordem no evento.
Contudo, outra reviravolta aconteceu: ainda em junho de 2013, a própria sociedade civil resolveu sequestrar a reinvindicação central dessas manifestações de massa e, no dia 15 de junho, fez uma passeata em que todos gritavam “O gigante acordou”, “O povo acordou”, mostrando assim uma completa inquietude com o governo que comandava a nação.
A esquerda não esperava por isso. A presidente Dilma Rousseff foi praticamente obrigada a criar do nada um plano “contra a corrupção” e um projeto de “reforma política” que, na verdade, não tinham nenhuma eficácia. Em seus pronunciamentos, era nítido que ela parecia mais mandar um recado a algum chefe superior (Lula? Alguém do Foro de São Paulo?) em vez de querer se comunicar à população. Resumo da ópera: se antes Dilma poderia seguir o mesmo caminho de popularidade do seu antecessor, a partir de junho de 2013 ela começou a cair nas pesquisas de satisfação.
Ela recuperaria algum fôlego nas eleições de 2014, cujo resultado da sua vitória, apesar de ser aceita oficialmente, ainda deixa muitas pontas soltas. Os problemas do seu segundo governo começaram mesmo quando, após as prisões e das delações premiadas do diretor da Petrobrás Paulo Roberto da Costa e do doleiro Alberto Yousseff, estes afirmaram que tanto Dilma como Lula sabiam o que acontecia no esquema de corrupção desvelado pela Lava-Jato. Entre Outubro de 2014 e Março de 2015, a inquietação popular foi num crescendo, até estourar subitamente na passeata do dia 15 de março, quando, segundo a Polícia Militar de São Paulo, mais de 1,5 milhão de pessoas foram à Avenida Paulista para protestarem contra o governo de Dilma, o Partido dos Trabalhadores e a presença de Lula em todo esse aparente cambalacho.
9.
Sempre fui um cético sobre agrupamentos com mais de três pessoas, mas, por dever de ofício, estive nessa manifestação e percebi que foi algo muito diferente (e, obviamente, sem nenhuma violência) do que aconteceu nos protestos de 2013. Em primeiro lugar, observei que, ao contrário das reinvindicações do Movimento Passe Livre, pedinte por mais intervenção estatal para resolver o problema do transporte urbano, chegando ao ponto de exigir a passagem grátis, o clamor geral da sociedade civil que foi às ruas era o de que o Estado se afastasse cada vez mais das suas vidas particulares.
Em segundo lugar, o que me surpreendeu na manifestação do dia 15 de março de 2015 – e nas que se seguiram – foi o fato de que não era um movimento dominado pela retórica de esquerda e sim uma reunião da “maioria silenciosa" – a maioria dos brasileiros, que trabalha e paga impostos e que, sobretudo, suporta até um certo limite a interferência da política. Contudo, naquele dia ficou evidente que, quando este limite estoura – como era precisamente o caso daquele momento –, a reação é a da justa indignação.
Outra coisa que me deixou sensibilizado foi o que eu chamo de “o mimetismo do bem”. As pessoas que estavam lá poderiam não ser honestas ou boas todos os dias e todas as horas da sua vida; mas, naquele momento, todos queriam ser bons, todos queriam ser honestos. Lembro-me que minha esposa foi comprar duas Coca-Colas em uma banca de jornal que estava aberta e achou que o vendedor errara no troco. Informei que ele estava certo – e o sujeito respondeu: “Aqui ninguém quer roubar não, aqui ninguém é PT”.
Além disso, era de se notar a ausência de um clima de violência e de ressentimento, comuns a qualquer manifestação de massa coordenada pelas esquerdas. Havia famílias e gerações inteiras ali: desde o avô até o neto pequeno, passando pela mulher, pelo filho, pelo sobrinho. Um detalhe significativo foi a presença de muitos negros, vários homossexuais, vários travestis. Isso significava que o discurso do “politicamente correto” – habitualmente sequestrado pelo PT e sua comitiva – estava prestes a se esgotar, além de mostrar que decência não tem gênero, raça ou escolha sexual.
Ficou cristalino que, para aquele público, não só o PT, mas todo o establishment da Nova República (em especial o PSDB), não enganava mais ninguém. Como nos protestos que a sociedade civil fez no dia 16 de junho de 2013, todos gritavam sem exceção que Dilma e o PT deveriam ir embora da vida pública – e isto chegou ao seu ápice na manifestação do dia 13 de março de 2016, a maior da história do Brasil, com 2,2 milhões de pessoas por todo o país, segundo a PM de cada federação.
Naquele momento, a saída imediata do PT no governo seria o ideal. Porém, não foi o que aconteceu. Em um processo agonizante que durou um ano e meio, as idas e as vindas da política centralizada em Brasília fizeram Dilma ser rifada pelo seu próprio partido para este permanecer no poder, perdendo simbolicamente a sua representação institucional ora em função de Lula, ora em função do vice-presidente Michel Temer, do PMDB (que até escreveu uma patética carta de rompimento, mas depois teve que recuar). Enquanto isso, o Partido dos Trabalhadores se desintegrava em outros pequenos partidos, como o Rede (comandada por uma ex-petista, Marina Silva) ou até mesmo dentro do PMDB (com a presença de outra ex-petista, Marta Suplicy), na esperança de continuar com o seu trabalho hegemônico de aviltamento das consciências.
O fiel da balança de todo esse tumulto institucional deveria ser o PMDB, tendo como eixo a luta entre Eduardo Cunha e Renan Calheiros, tanto pela manutenção do poder como também para que os dois ficassem fora das denúncias criminosas, especialmente as produzidas pela Lava-Jato. Michel Temer quis ser o aglutinador de todas essas tendências, e seu primeiro passo foi tentar se unir com o PSDB para governar minimamente o país se acontecesse uma renúncia ou um impeachment de Dilma; mas o partido de FHC e de Aécio Neves preferiu uma máscara de imparcialidade, alegando que ainda não era o momento para apresentar um pedido de afastamento da presidente ao Congresso, mesmo com as manobras contábeis evidentes (as chamadas “pedaladas fiscais”), para fingir que o governo cumpriu com as metas do orçamento da União – o que implicaria em crime de responsabilidade contra administração pública.
A estratégia do PSDB tinha uma razão: com o cenário apresentado acima, não é um exagero aceitar a conclusão de que o Brasil assistia a uma reviravolta política que, no fundo, significava a morte da Nova República – e que o partido liderado por Fernando Henrique Cardoso dependia da continuidade desse sistema político para manter o seu ninho de poder. E, depois, tínhamos um problema maior: Quem seria o líder desse redemoinho que arrasava o país? O PSDB perdeu a sua chance porque a sua pusilanimidade lhe custou caro nas eleições municipais que aconteceram em outubro de 2016 (exceto no caso de São Paulo, que deu vitória ao prefeito João Dória). E o PT teve de se metamorfosear urgentemente, mas isso levou algum tempo até assumir uma nova máscara, principalmente devido aos escândalos recentes, envolvendo a publicação dos grampos e a manobra surrealista do ex-presidente Lula de querer ser ministro da Casa Civil para escapar do laço de Sergio Moro, tendo assim foro privilegiado. Sobrou o PMDB, que, infelizmente, é o modelo supremo do patrimonialismo tecnocrata, mas é infinitamente muito melhor do que o modelo estabelecido pelo Foro de São Paulo (e, na verdade, foi a única oposição real, mesmo com tons dissimulados, que o PT teve em seus doze anos de governo).
Na época, o que mudaria essa situação era se Sergio Moro, com a Operação Lava-Jato, limpasse a estrutura política do país, colocando a cúpula do PT (especialmente Lula e José Dirceu) no cerco da cadeia. No caso de Dirceu, a prisão aconteceu antes que ele pudesse esboçar qualquer reação; já no de Lula, depois do mandado de condução coercitiva assinado por Moro e que criou um agudo tumulto político nas semanas seguintes, chegou o momento em que ele finalmente entrou pela porta do cárcere em 2018.
Contudo, para isso dar certo, tudo dependeria não apenas da força-tarefa de Curitiba, mas também dos representantes do patrimonialismo tecnocrata que foram cooptados pelo patrimonialismo revolucionário, como os ministros do STF José Dias Toffoli, José Roberto Barroso, Teori Zavascki e Luiz Edson Facchin, cada um indicado especialmente por Lula e Dilma para suas vagas e também com relacionamentos afetivos com a ideologia defendida pelo PT. Nesse sentido, deve-se observar que o comportamento desses juízes, talvez com a exceção de Barroso, foi surpreendente: Teori Zavascki (falecido em um acidente de avião em 2017) era o relator da Lava-Jato no Supremo e se mostrou publicamente escandalizado com o que já foi descoberto pelas investigações, afirmando que “ao puxar uma pena, encontra-se uma galinha” (por outro lado, ele criticou constantemente os procedimentos ousados de Moro, especialmente sobre a publicação dos grampos de Lula com a presidente); Toffoli, também presidente do Tribunal Superior Eleitoral, mandou abrir um procedimento investigatório para verificar se a chapa de Dilma e Temer foi financiada com dinheiro oriundo de propina da Petrobrás via Odebrecht; e, no início de dezembro de 2015, Facchin foi o relator que ousou ir contra um pedido do governo para apressar o rito de impeachment, que fora aberto por Eduardo Cunha na semana anterior.
É claro que tudo isso era um baile de máscaras, mas não se deve negar o fato de que havia uma tensão extrema na luta entre os dois tipos de patrimonialismo já descritos. A questão crucial era saber se cada um cumpriria o seu papel, como se esperou durante meses com a decisão do plenário do STF sobre a liminar que impediu a posse de Lula como ministro, o que o levaria a ser novamente investigado por Moro (o que não ocorreu já que, depois, Dilma Rousseff foi afastada da Presidência pelo plenário do Senado) – ou se eles se confundiriam entre suas togas e suas ideologias.
Esta ciranda de interesses nos faz lembrar daquilo que Frederic Bastiat escreveu em seu ensaio A Lei, de 1850, ao perceber, com uma clarividência assustadora, qual era o centro da questão que envolve toda e qualquer legislação que aparenta ser democrática: Como uma lei pode garantir os direitos individuais do ser humano, se ela é também uma faca de dois gumes, que facilita a expansão estatal nos assuntos privados e sistematiza o roubo (permitindo assim a corrupção sistêmica revelada pela Operação Lava-Jato)?
Ao mesmo tempo em que Bastiat aponta os meios de como o Estado faz isso, usando as manobras da “falsa filantropia”, que provoca uma união insólita entre os homens da lei e os necessitados de uma assistência amparada no bolso do governo, ele também comete um erro terrível de análise, identificando a lei com nada mais, nada menos do que a própria justiça.
Essa visão utilitarista da lei – disseminada no mundo jurídico brasileiro – é tão perigosa quanto à socialista que ela tenta denunciar e é uma das grandes causas de como a Justiça é feita neste país – em sua maioria, sempre do modo errado, com uma burocracia que emperra o devido processo legal e com decisões que nos parecem cheias de rombos, pois o direito é visto como algo transitório ou então como algo o qual visa somente o poder político.
Esta encruzilhada a que chegamos é uma das maiores vitórias do Leviatã contra os poderes da consciência individual. Durante anos, filósofos, intelectuais e juristas contribuíram para que o grande legislador fosse o Estado, com seu sistema jurídico aparentemente lógico e ordenado, mas, na verdade, corroído por dentro e repleto de lacunas, já que evita qualquer processo dialético que coloque a verdade acima das contendas, principalmente das que interessam somente ao governo.
Assim, o que deveria ser um problema de todo e qualquer cidadão que se preze – cidadão no sentido de ter uma responsabilidade com o outro, não no sentido de Rousseau, que legitima a pessoa só se ela estiver dentro do jogo do “contrato social” –, se restringe a uma preocupação de alguns doutores que, encastelados em uma visão que tenta alterar a correspondência entre norma e realidade, sempre querendo prever a última em função da primeira, esquecem-se de que a justiça não é uma complicada ilusão (como pensava Kelsen) e que ela consiste apenas numa boa dose de equilíbrio e bom senso.
O problema com a legislação de um país que se diz democrático é que todos perdem a noção de que o direito tem um fim proporcional e que este fim deve ser extraído, interpretado e não reduzido a um mero termo lógico. Depois de séculos de aperfeiçoamento, parecemos que ainda vivemos na Israel antes da Revolução Profética, em que o que importava era a letra morta da Torá e não a letra morta do espírito. A lei se antecipa à realidade, mas o jurista que tenta aplicá-la sempre se vê com o problema de que a realidade nem sempre se adequa aos caprichos da lei.
Isso provoca as confusões em que Bastiat e os socialistas se enredaram (camuflados em social-democratas obscurantistas, em especial com os Bancos Centrais das suas respectivas nações, seja aqui, nos EUA ou na Europa, ávidos em unir suas forças para continuarem a pilhagem e a centralização do poder estatal). Quem perde com isso é o direito que cada indivíduo possui, amordaçado na perversão da lei, manipulada para favorecer quem nunca trabalhou para pagar um dígito de uma taxa fiscal ou alguém que, da súbita clandestinidade, ascende para o calculado populismo (como foi o caso de Barack Obama na América, ou do próprio Lula), sempre amparado pela couraça da máquina governamental.
A função da lei seria a de esclarecer quais são os nossos limites na sociedade, para que o direito divida de forma proporcional o que é de cada um. Seu fim é conseguir distinguir, entre dois opostos, a metade que harmoniza as partes contraditórias. Aristóteles e Santo Tomás de Aquino davam a essa atitude o nome de “justa”, a característica básica de uma ação que busca o que é o correto, e este é o fim do direito, sem mais, nem menos. Contudo, como bem observou Bastiat, o Estado usa da “falsa filantropia” para criar uma ilusão que, se bem observada, é o início de qualquer governo totalitário: a distribuição igualitária, em que cada um recebe não o que é seu, mas sim o que a intensidade de sua reclamação insinuou.
Mesmo com a reviravolta política impulsionada pela retidão de Sergio Moro e a Lava-Jato, o que vemos no Brasil é que a justiça se confundiu com o próprio direito, com a própria lei e, por mais que isso pareça, com o próprio Estado, já completamente contaminado pelos dois tipos de patrimonialismos descritos acima. Na verdade, ela é independente desses três – e o correto seria que estes deveriam ficar amparadas nela. Mas quando o desastre se aproxima, naquela névoa de inconsciência que antecede as revoluções que espalham a corrupção da lei e a insensibilidade do ser humano, a justiça se torna o valor menos importante, especialmente quando está no conhecimento de poucos. Em um país onde o direito virou uma forma de poder político, tudo está perdido – e talvez a única forma de purgar o ambiente seja a realização de uma verdadeira reviravolta, que saiba fazer a síntese entre passado e futuro, naquele equilíbrio que só a justiça é capaz de realizar.
Contudo, não seria essa mesma expectativa por uma Jerusalém celeste, disfarçada de perfeição legalista, um mesmo sintoma do perigo que se avizinha entre aqueles que deveriam se opor ao projeto totalitário do PT? Sem dúvida nenhuma: não por acaso, a revolução da Lava-Jato seria destruída, entre 2020 e 2021, pelos mesmos membros do patrimonialismo tecnocrata que deram combustível a ela. Como se essa história de horror não fosse o suficiente, jamais podemos nos esquecer do pano de fundo do colapso econômico que atinge o bolso de cada cidadão desde 2013 – e que afeta, direta ou indiretamente, as suas decisões cotidianas. Como relatou Bruno Garschagen na época, o projeto de igualdade social concebido pelo PT nos anos 2000 tinha tudo para se transformar na mais nova distopia do século XXI (infelizmente, ele mal sabia que o governo de Jair Bolsonaro pioraria tudo isso): “A crise política brasileira é o resultado daquele que talvez seja o mais desastroso governo da história do país. O país regista sete trimestres consecutivos de redução do PIB, a pior marca desde que o índice começou a ser calculado em 1947. De 2014 até o fim de 2016, a projeção é de queda acumulada de 8,7%. E a taxa de desemprego está em 8,5%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)” (dois meses depois, a taxa de desemprego já estava em torno de 10%, com tendência para cima e, no início de 2017, já estava em 12,5%).
Neste cenário que se aproximava cada vez mais do final de Hamlet e não o de Macbeth, uma vez que, com a peste do coronavírus, todos nós podemos morrer no final da peça, ainda aconteceu outro fato que não podia ser desprezado: o PT demorou a ir embora da vida pública. Era claro que não se tratava de um mero partido político – e sim de uma forma de pensamento, uma maneira de ver o mundo, uma existência que faria o possível e o impossível para permanecer, principalmente ao sentir que corria perigo de ser desmantelada como pó. E o palco ideal para se perceber isso foi nada mais, nada menos que o ambiente cultural – em especial, a imprensa que, em sua maioria simpatizante da pauta progressista, estava desesperada porque via o seu mundo ruir, partindo para a desinformação pura e simples, sem ter a coragem de admitir para si mesma que, após tantos anos de hegemonia da esquerda no domínio das manifestações de massa, nas universidades e nas redações, o feitiço finalmente virara contra o feiticeiro.