O Reino do Exílio
Václav Havel, Jan Patocka e Gustav Mahler nos ensinam a como sobreviver no mundo moderno.
1.
Quero avisá-los, logo de cara, que este ensaio não será de leitura leve, muito menos fácil, principalmente para aquelas pessoas que, em uma tarde de sábado, podem achar que, logo após comer a tão abençoada feijoada, ele ajudará a melhorar a digestão. Lamento em informar-lhes que esta não é a minha intenção. Afinal, falarei sobre um assunto gravíssimo: corrupção. Mas não se trata de uma corrupção qualquer, a que você assiste na TV e com a qual você tem todo o direito de ficar indignado – a corrupção pública que contamina o Estado e que afeta a cada um de nós, especialmente referente aos serviços básicos que todos precisamos: saúde, segurança e estabilidade econômica. A corrupção sobre a qual vou falar é algo mais sutil e mais profunda. É uma corrupção que não envolve dinheiro público porque ela é realizada nada mais, nada menos a favor da corrupção em si mesma. Trata-se de uma corrupção extremamente perigosa porque ninguém quer percebê-la: a corrupção da alma.
É certo que todos nós ainda estamos enfurecidos com as revelações feitas pela Operação Lava Jato, comandadas pelo ex-juiz Sergio Moro e os promotores do Ministério Público Federal do Paraná. A corrupção pública ali registrada não pode ser desprezada porque ela tem consequências gravíssimas para a sociedade brasileira, como o fato de que o partido que então permaneceu no poder oficial revelou-se como uma organização criminosa sem precedentes na história da América Latina, responsável diretamente não só por um escândalo gigantesco de pilhagem dentro do Estado brasileiro, como também responsável pela omissão (o que, neste caso, trata-se de um crime gravíssimo) de não fazer nada pelos 60.000 homicídios anuais que assolam o país (infelizmente, o governo seguinte mais do que dobrou a meta com a tragédia de 700.000 vidas perdidas, por causa do seu descaso com a pandemia do coronavírus). Esses massacres diários, dos quais cada um de nós podemos ser vítimas em potencial, são também refletidos na imprensa, nas escolas e nas universidades, sempre com a nítida intenção de assassinar qualquer espécie de amostra de consciência individual – e que é a característica fundamental para entendermos “O Carandiru Intelectual” onde nos encontramos.
Entretanto, apesar dessas graves revelações, isso não significa que tal corrupção tenha sido exorcizada. Muito pelo contrário: ela continua, e muito bem, obrigado. Tive um exemplo disso recentemente. Em um encontro que ocorreu em um banco de investimentos, estava eu lá, assistindo o diagnóstico de um famoso presidente do Banco Central da época do governo Fernando Henrique Cardoso, um verdadeiro gênio da econômica e um dos raros intelectuais realmente brilhantes deste país. O público era composto por aquilo que o pessoal da esquerda chamaria de “as zélite” – vários presidentes de empresas de tecnologia, executivos de bancos que apostam no surgimento do bitcoin, ex-embaixadores que dão seus pareceres no programa Painel (comandado pelo jornalista William Waack no canal por assinatura GloboNews), e diretores financeiros de organizações culturais que buscam unir o sucesso financeiro com a relevância intelectual. Entre estes últimos, havia ninguém menos que o Diretor Financeiro da OSESP, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, talvez a mais conhecida e respeitada do Brasil, tanto pela ousadia do seu repertório como pela excelência técnica dos seus integrantes.
Quando a pauta do evento enveredou para a discussão entre cultura e viabilidade econômica, o primeiro a falar foi justamente este senhor. Ele começou a reclamar do fato de que era muito difícil, no Brasil, investir em músicos internacionais, especialmente pela exigência de tocar determinadas peças sinfônicas que envolviam uma dose considerável de complexidade em sua execução. O sujeito deu alguns exemplos, como Arnold Schöenberg, Bach, Mozart e, finalmente, o compositor alemão Gustav Mahler, que, entre outros feitos, é conhecido pela loucura de ter criado a Oitava Sinfonia, a chamada “Sinfonia dos Mil”, simplesmente porque ela exige essa quantidade exata de músicos para tocar cada nota grandiloquente daquilo que muitos chamam de “a melodia das esferas celestes”.
Ao ouvir o nome de Mahler, não pude deixar de fazer a seguinte observação ao diretor financeiro: tocar as sinfonias do alemão era fácil até a Sétima (detalhe: todas as obras de Mahler são extremamente difíceis de serem realizadas adequadamente); o problema era justamente realizar a Oitava como ela merecia ser feita – ou seja: com os mil integrantes que o compositor sempre exigiu. O sujeito em questão olhou para mim com desprezo e respondeu-me da seguinte forma: “A Oitava de Mahler é uma excrescência”.
Imediatamente, eu retorqui. Disse que ele estava tremendamente equivocado e que a Oitava de Mahler era absolutamente essencial não apenas para a economia de um país, mas sobretudo para aquilo que conhecemos como (pausa para proferir sem nenhuma ironia) Civilização Ocidental. Não sei se o caro leitor conhece a obra em questão; provavelmente, a Oitava Sinfonia de Mahler só pode ser comparada, em termos de escopo e ambição, ao que Beethoven fez com a famosa Nona Sinfonia. A sua importância é tamanha para a nossa sensibilidade moderna que o músico Hans Werner Henze não hesitou em afirmar que
“pela primeira vez na história musical, a música interroga-se a si própria sobre as razões de sua existência e sobre sua natureza […] trata-se de uma música do conhecimento, com a mesma consciência trágica igual a Freud, Kafka, Musil”.
Portanto, obras de arte como estas podem ser caríssimas para a sua perfeita realização; contudo, elas não existem porque são úteis; elas estão aí justamente porque são “excrescências” monstruosas que fazem parte daquilo que o ensaísta belga Simon Leys chamava de “o saguão da inutilidade”. A Oitava de Mahler é “inútil” porque a nossa vida precisa dessa mesma inutilidade para percebermos que, finalmente, temos algum sentido maior a descobrir sobre nós mesmos neste mundo corrompido.
Vejam bem: o meu problema não é com a declaração em si. Afinal de contas, gosto não se discute, etc. e tal. O problema é quem disse isso. Trata-se de um diretor financeiro de uma das maiores orquestras não só do Brasil, mas da América Latina. Para ele, a Oitava de Mahler é uma “excrescência” pelo simples motivo de que ela seria cara demais para ser realizada. Se há um nome para tal visão de mundo míope, só pode ser estupidez. E a estupidez é também uma forma grave de corrupção. O fato desta declaração ter sido feita somente dois meses após o impeachment de Dilma Rousseff mostra que a corrupção já contaminou todo o tecido da sociedade brasileira – e que precisamos encontrar urgentemente uma forma de resistir a isso antes que sejamos infectados, sem saber, por esse mesmo tipo de estupidez.
Por isso, quando desejamos realizar uma resistência contra qualquer poder instituído, e que se prova como injusto, temos sempre ter em mente que, afinal de contas, o inimigo nunca é o outro e sim nós mesmos. A percepção desta realidade dolorida se revela diante dos nossos olhos como uma revolução interior – quiçá, uma reviravolta. Contudo, existem revoluções e revoluções. Segundo Hannah Arendt, em seu livro intitulado singelamente Sobre a Revolução, há as revoluções não-desejadas, como a Russa, que pretendiam alterar a estrutura do mundo, e as desejadas, como a da Independência Americana, que foi uma reação a um governo ilegítimo tanto em termos morais como legais.
2.
E aqui inicio o meu diagnóstico para uma verdadeira resistência contra o mundo corrompido onde nós nos encontramos. Comecemos com o caso da chamada “Revolução de Veludo” da Tchecoslováquia, evento que aconteceu há 27 anos, mas que ultimamente parece estar meio esquecido, especialmente entre os jovens que deveriam aprender como se faz uma autêntica defesa contra o poder corrupto. Afinal, enquanto todos comemoravam a queda do Muro de Berlim, esqueceram-se, por incrível que pareça, do trabalho de liderança feito por Václav Havel, Jan Patocka (morto devido ao rigor dos interrogatórios a que foi submetido pela polícia secreta tcheca, a StB, então comandada pela KGB soviética) e outros do grupo auto-intitulado “Carta 77”.
Havel era um dramaturgo tcheco desconhecido do grande público, mas tornou-se o líder de um movimento que tinha uma denominação ambígua – os dissidentes. Foi justamente sua visão de artista que o permitiu, junto com Alexander Solhzenitsyn, fazer a melhor análise da sociedade totalitária (tanto em seu aspecto político como cultural) em um ensaio definitivo chamado O poder dos sem-poder. Além disso, quando foi condenado a ficar quatro anos preso, acusado de “perturbar a ordem social”, escreveu também uma das obras mais comoventes do final do século XX, as Cartas a Olga, uma reunião de epístolas à sua então esposa, e que guarda em cada linha profundas meditações sobre a responsabilidade humana diante de um horizonte metafísico.