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A vida de Ariano Suassuna é marcada pelo trauma de uma tragédia que invadiu a sua família quando ele tinha três anos de idade – e que também foi o resultado direto do maior evento histórico brasileiro na primeira metade do século XX: a Revolução de 1930.
Foi mais menos ou assim: o pai de Ariano, o advogado, juiz de direito e deputado federal João Suassuna, foi presidente do estado da Paraíba entre 1924 e 1928 (na época, a denominação para governador) e era da facção política contra a de outro político que, em 1929, também ocupava o mesmo cargo, chamado João Pessoa e que era candidato a vice-presidente na chapa liderada pelo gaúcho Getúlio Vargas. Como se não bastasse o país estar dividido entre a política do “café-com-leite”, dispensada pelo presidente da República Washington Luiz ao impor seu conterrâneo paulista Júlio Prestes como sucessor, provocando a irritação dos mineiros, a Paraíba estava dilacerada em uma rixa que ninguém sabia quando terminaria, entre a família de Pessoa e a de João Dantas, amigo de Suassuna e ferrenho opositor do primeiro.
João Pessoa se vingou de Dantas ao mandar invadir o escritório deste último, alegando apreensão de armas, e encontrou uma série de correspondências íntimas entre o rival e uma professora chamada Anayde Beiriz. Pessoa não pensou duas vezes e publicou-as na imprensa local. Dantas também não pensou duas vezes: abordou João Pessoa em uma confeitaria que ficava nas proximidades, a Glória, e disparou dois tiros mortais contra o inimigo.
O que era uma tragédia provinciana seria depois usado pelo grupo de Getúlio Vargas para iniciar o que ficou conhecido como a Revolução de 1930 – e continuaria a se alastrar como uma doença para os outros aliados de Dantas, em especial João Suassuna. O redemoinho de violência atingia a todos sem exceção. João Dantas seria degolado na prisão, Anayde Beiriz cometeria suicídio por envenenamento – e Suassuna, obrigado a fugir para o Rio de Janeiro, foi alvejado nas costas em plena rua, em 9 de outubro de 1930, três dias depois da Revolução ter estourado. Como se intuísse o que aconteceria com ele – e imaginando as consequências que isto traria aos filhos, principalmente em uma cultura local que estimulava a honra da vingança –, João Suassuna deixou a seguinte carta para a mulher, encontrada no bolso do seu paletó:
“Se me tirarem a vida os parentes do presidente J. Pessoa, saibam todos os nossos que foi clamorosa a injustiça – eu não sou responsável, de qualquer forma, pela sua morte, nem de pessoa alguma neste mundo. Não alimentem, apesar disso, ideia ou sentimento de vingança contra ninguém. Recorram para Deus, para Deus somente. Não se façam criminosos por minha causa!”
A única lembrança que Ariano Suassuna tem do pai foi aos três anos de idade e os dois caminhavam pela fazenda Acahuan – o nome de um pássaro de cor clara com uma marca negra na cabeça –, perto de um riacho, e, com ambos olhando o horizonte imenso do sertão da Paraíba, ele contaria depois que “ali, num crepúsculo cheio de prenúncios, eu vira o único pôr-do-sol que tive direito de ver ao lado de meu Pai, num dia em que, passeando com ele à beira desse rio, nós dois encontramos, na areia da margem de um riacho seu afluente, uma piranha morta, ainda reluzindo ao sol poente”.
A memória do Pai (assim mesmo, em maiúscula) é a chave principal para entender o enigma quase hermético que Suassuna elabora em seus poemas, suas peças e romances – principalmente o gigantesco Romance d’a Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, publicado em 1971, mas em elaboração desde 1958, quando Ariano já era o dramaturgo celebrado por Auto da Compadecida (1955), a obra que unia a tradução popular do Nordeste com a sofisticação cultural de uma Europa lusitana a qual o Brasil parecia fazer questão de perder os seus laços e as suas raízes.