And may at last my weary age
Find out the peaceful hermitage,
The hairy gown and mossy cell
Where I may sit and rightly spell
Of every star that heav’n doth show,
And every herb that sips the dew;
Till old experience do attain
To something like prophetic strain.
These pleasures, Melancholy, give,
And I with thee will choose to live.
(John Milton, Il Penseroso)
1.
Há livros que absorvem o passado e mostram o que será o nosso futuro. Este é o caso de A anatomia da Melancolia (The anatomy of Melancholy), do clérigo anglicano Robert Burton (1577–1640), um livro que, devido à retórica labiríntica e à ousadia temática, revela a tensão metodológica entre dois mundos que estavam prestes a se separar: o do humanismo europeu, marcado pela paixão por um saber baseado numa natureza humana que, mesmo com vários obstáculos, ainda assim tentava ascender acima deles, e o mundo moderno da ciência, caracterizado pela observação empírica da natureza (physis), apaixonado pela razão implacável da técnica (téchne) e obcecado por uma recém-descoberta precisão matemática. A ousadia temática de Anatomia está no próprio título; sua intenção é ser uma summa que sintetiza o conhecimento do início da Renascença inglesa e que antecipa o talento enciclopédico do século XVIII a respeito de um tópico o qual todos sabem não possuir uma materialidade — a melancolia. Contudo, não se trata de uma summa qualquer, nos moldes da escolástica ultrapassada que um humanista como Burton desprezava. Trata-se de uma anatomia — e nisso consiste uma diferença essencial de método, pois a melancolia é algo impalpável, enquanto o objeto de estudo desse gênero é nada mais nada menos do que o próprio corpo humano.
2.
A anatomia escolhida por Burton não é apenas uma referência ao methodos que remete ao fisicalismo de Hipócrates, Galeno e Demócrito — citado explicitamente na persona usada pelo autor para se disfarçar, Democritus Junior — mas também à influência de Petrus Ramus (1515–1572), um humanista francês que, a partir da física e da retórica aristotélica, divulgou uma forma de desmembrar assuntos filosóficos como se fossem partes de um corpo humano. É o que acontece com a melancolia de Robert Burton: ela é analisada em partes e subpartes, igual a uma máquina que, para ser entendida, tem de ser vista com seus mecanismos expostos. É o vislumbre deste mecanismo que dá graça ao tratado do clérigo inglês. Se não fosse por sua retórica labiríntica e por seu estilo repleto de digressões, o livro seria apenas mais uma curiosidade de antiquário. Seu fascínio se deve à habilidade de Burton em mesclar a tensão que existe, dentro do argumento e da estrutura do próprio livro, entre o “método emprestado de Hipócrates e Galeno com uma teologia da cura tomada de Sto. Agostinho”, como bem observou Geoffrey Hill. O esqueleto retórico de Anatomia nos faz lembrar o procedimento de diagnóstico criado por Galeno, no qual cada parte do tratado nos remete às suas causas, sintomas e prognósticos, com a narração de exemplos ou anedotas que provam ou comprovam o ponto de vista do autor. E, no caso da influência de Hipócrates, a conceituação do que seria a melancolia é feita dentro da doutrina dos quatro humores — a de que cada elemento natural corresponde a um temperamento do corpo humano, i.e., ar (sangue), fogo (bílis amarela), terra (bílis negra, identificada com a melancolia) e água (fleuma) —, além das respectivas idades do homem e das estações do ano. Esta tensão de um mecanismo impalpável é uma das amostras da ironia surpreendente de Burton, sem falar no pseudônimo usado. Por que um clérigo se disfarçaria sob o nome de Democritus Junior, referência a um dos maiores filósofos materialistas? Supõe-se que, na verdade, o que interessava a Burton não era a cosmologia de Demócrito — baseada na existência de átomos, partículas indivisíveis não observáveis a olho nu, sendo necessária uma incrível habilidade de abstração para percebê-las — e sim sua ética supostamente hedonista, que, de certa forma, era compartilhada pelo Demócrito de sua época (pelo menos era assim que os contemporâneos o apelidavam): Francis Bacon (1561–1626).
3.
Bacon tornou-se notório pela defesa da techné como uma nova forma de ver a natureza (physis), colocando o homem no centro das coisas, além de ter sido um grande divulgador da ciência (scientia) como novum organum, um novo organismo capaz de trazer à humanidade uma educação que rompia com o passado e apontava para um futuro certo e seguro — elaborado em sua utopia literária, a Nova Atlantis. Para um homem influenciado pela antropologia agostiniana, como era o caso de Burton, na qual o homem era dependente de Deus e de sua Graça para garantir a imortalidade da alma, este era um raciocínio incômodo. Ainda assim, Bacon e Burton tinham uma coisa em comum: a obsessão de querer possuir o objeto de estudo de todas as formas, custe o que custar. A diferença estava no fato de que o primeiro queria dominar a natureza, enquanto o segundo estava preocupado em compreender a alma. De fato, Robert Burton era um homem de “disposição melancólica”, como o próprio afirma logo no prefácio, intitulado Demócrito fala ao leitor. Isto o levou a uma monomania peculiar, como fica claro ao sabermos que sua Anatomia teve cerca de oito edições corrigidas, entre 1620 até 1638, dois anos antes de sua morte. Na verdade, Burton escrevia o livro para si mesmo: acreditava que, ao analisar a sua doença, analisava também a doença do reino. Os artifícios para a cura eram variados: começava com referências a Erasmo e Thomas More — evidentes na sátira utópica que incluiu no prefácio —, passava pelas citações a médicos antigos e da época — além de Hipócrates e Galeno, temos os nomes de Paracelso, Giordano Bruno e Marsílio Ficino, antecipando assim as influências da escola platônica de Cambridge — e chegava às meditações teológicas de Santo Agostinho e São Bernardo de Clairvaux, habituais para um homem que acreditava, antes de tudo, que a melancolia nascia simplesmente do pecado original. Apesar de ter toda a cultura do mundo, nada disso parece tê-lo curado. John Aubrey, famoso biógrafo inglês do século XVII, suspeita em seu Brief Lives que o clérigo tenha tirado a própria vida, ao ter sido descoberto enforcado dentro do seu quarto. Isso não significa que devamos ler Anatomia da Melancolia como se fosse mais um tratado de alguém que não consegue encontrar a própria cura — um Memórias de um doente dos nervos que antecipa as Guerras Civis inglesas de 1643–1660. Por incrível que pareça, trata-se de um livro divertido e perspicaz — e apresenta certas possibilidades de solução para esta doença que atualmente apelidamos com outro nome: depressão.
4.
Se, no prefácio, Burton apresenta uma sátira política, escrita ao modo do Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdã, em que os homens da Inglaterra e o próprio reino se encontram numa epidemia de melancolia que os aproxima da estupidez (stultitia, em latim — a estupidez de quem se recusa a ver a razão por trás deste mundo), o tom muda na primeira parte do tratado. O estilo se torna menos literário e menos sarcástico; agora, temos a precisão dos conceitos e o desmembramento da doença: o que é, como surge, quais são os sintomas, etc. Para Burton, a melancolia não é apenas um sentimento, uma emoção que vai e volta dentro do ser humano. Ela é, antes de tudo, um hábito, i.e., um comportamento constante que, se for virtuoso, pode ter um lado benéfico, e se for nocivo, certamente se tornará um vício difícil de erradicar: “(…) Melancolia, o assunto do presente discurso, (…) trata-se de um hábito. Por inclinação à melancolia, entendemos ser um estado transitório que vem e vai entre efêmeras ocasiões de tristeza, privação, problema, medo, aflição, paixão, ou outro tipo de perturbação mental e descontentamento que desembocam em angústia, aborrecimento, opressão e inquietação do espírito, e variadas formas de oposição ao prazer, jovialidade, alegria, deleite, causando-nos um pertinaz desagrado. Imprópria e equivocadamente chamaremos o melancólico de tedioso, triste, ácido, indolente, mal-humorado, solitário, ou qualquer outro termo que o aponte como um descontente. No entanto, ninguém está livre destas disposições da melancolia, nem estoico, nem sábio, nem o feliz, nem o paciente, o generoso, o religioso, o eclesiástico, ninguém consegue se proteger, nem mesmo o mais sereno dos homens escapará de em algum momento ter essas sensações. Melancolia é, pois, inerente a todo aquele que tem o caráter da mortalidade.” Portanto, o que está em jogo em Anatomia não é apenas a cura de uma doença passageira do próprio autor, mas também uma meditação sobre a consciência da morte em nossas vidas. Na época de Robert Burton, este não era um assunto qualquer. Como escreveu Johan Huizinga em seu O outono da idade média, a questão da morte na transição para a Renascença — momento do qual a Anatomia é emblemática — só conhecia dois extremos: o lamento pela perecibilidade, pelo fim do poder, da honra e do prazer, pela decadência da beleza; e, por outro lado, o júbilo da alma que foi salva. Tudo que fica no meio permanece não dito. Ora, a melancolia é justamente o que fica no meio, entre o que ainda vive e o que espera a morte na própria vida. Esta característica de intermédio da enfermidade dá a chance a Burton de analisar o comportamento humano em todas as suas ramificações, as fisiológicas e as morais. É a aplicação do princípio antropológico descoberto por Platão em A República: se a polis é o homem por extenso e se os ingleses estão melancólicos, logo o mesmo deve acontecer com o reino — e o resultado final não será nada auspicioso para ambos.
5.
No início do século XVII, a Inglaterra passava por três eventos históricos que marcaram sutilmente a Anatomia: a passagem do trono dos Tudors para os Stuarts; o aumento populacional do reino; e a cisão que aumentava na Igreja Anglicana. Sobre o primeiro fato, os ingleses estavam ansiosos a respeito do novo rei, Jaime I, após o glorioso reinado de Elizabeth I. Jaime era escocês, possuía grande cultura, prezava antes de tudo o direito sagrado de ser rei e tinha grandes ideias para a manutenção do império britânico. Contudo, havia algumas rachaduras no edifício: o rei era também extremamente perdulário, preferia aduladores a verdadeiros conselheiros e, como se não bastasse, o povo não gostava do seu comportamento, obcecado pelos estudos de demonologia, algo considerado impróprio à época. Já sobre o segundo evento, o reino passava um aumento demográfico inédito. As pessoas não paravam de nascer — e não havia mais lugar suficiente para elas. A consequência prática desse fenômeno é o surgimento de mendigos em todos os cantos de Londres e das outras cidades. Não é por acaso que um dos momentos mais comoventes de Anatomia — e também um dos mais engraçados — é quando Burton reflete sobre a melancolia que se origina da pobreza material. Ele logo repreende quem acredita que a riqueza faz bem à alma e usa de um exemplo de Santo Agostinho sobre quem está mais feliz: se o mendigo que cantarola para o povo ao relento ou o rico que o observa e inveja tamanha felicidade. Havia uma outra razão para a pobreza e a mendicância, segundo a opinião pública inglesa — e eis aqui o nosso terceiro fato: a opulência do clero anglicano. Depois de Henrique VIII romper com Roma e criar a Igreja Anglicana, esta cada vez mais se parecia com aquela de quem tinha se separado. Aos poucos, ritos considerados “papistas” pelos próprios anglicanos e por alguns que incendiavam o reino com seus protestos (e que seriam chamados de “puritanos”), criavam polêmica atrás de polêmica. Muitos culpavam o arcebispo William Laud, que recriava muitas das paixões religiosas que já tinham incendiado a Inglaterra entre os anos 1570 e 1580; ele afirmava que a Igreja Católica, apesar de corrupta, tinha de ser respeitada como uma igreja verdadeira, que descendia dos apóstolos, e por isso muitos suspeitavam que o “papismo” se infiltrava sorrateiramente no reino pela porta dos fundos. Além disso, havia promulgado medidas que restauravam o prestígio dos bispos, provocando assim a perda de prestígio dos clérigos laicos que habitavam em seus respectivos vilarejos; como se não bastasse, também introduziu mudanças na leitura do Livro de Preces (o Book of Common Prayer), que se tornara a base de devoção dos puritanos e, por isso mesmo, mais uma causa de discórdias entre os diferentes ramos da igreja.
6.
Contudo, esses problemas eram pequenos perto do verdadeiro espinho que incomodava as melhores mentes do reino: o da natureza humana. Neste tópico, o tratado de Robert Burton é um dos epicentros na mudança de eixo que ocorre no modo como o homem analisa a si mesmo, o que está ao seu redor e o outro que lhe é próximo. No início do século XVII a tensão entre uma concepção humanista e uma concepção racionalista do homem atinge os primeiros sinais de um impasse que deverá ser resolvido de qualquer maneira. A primeira tem o tema da dignidade como base de suas reflexões; é a reiteração consciente de um tópico que provém de Sófocles e da Sofística grega e se tornara um lugar comum na literatura antiga. Como explica Henrique de Lima Vaz no primeiro volume de sua Antropologia Filosófica, “a exaltação de dignitate et praestantia hominis não é, porém, apenas um motivo literário, mas responde, de fato, às exigências profundas da nova sensibilidade em face do homem e de suas obras”. Há, contudo, uma diferença nos modos de celebração da dignidade humana entre a literatura antiga e os humanistas da Renascença: “(…) No primeiro caso, é a atividade da contemplação, o theroein ou o contemplari, que atesta a grandeza do homem e sua eminente dignidade. No segundo caso, é o agir, o operari, a capacidade de transformação do seu mundo que passa a ser o indício incontestável da superioridade do homem, anunciando-se aqui uma das direções fundamentais da antropologia moderna. Desse modo, o topos do homem e sua dignidade constituem uma das fontes mais permanentes de inspiração da obra dos grandes humanistas como Gianozzo Manetti, Marsílio Ficino, o célebre tradutor de Platão e animador da Academia Platônica de Florença, e o genial Pico della Mirandola, autor justamente de um De dignitate hominis. (…) É na Renascença que se dão as condições para que surja uma Antropologia filosófica no sentido moderno do termo. É então que aparece, com efeito, uma consciência da humanidade ou das características essenciais do homem (homo humanus) em sua universalidade abstrata e não mais limitado pelas particularidades segundo as quais o homem antigo ou medieval se considerava (civis, servus, christianus, paganus, etc.). Pode-se dizer que essa consciência da humanidade é, provavelmente, o ponto de vista que reúne todos os aspectos da antropologia renascentista. Com efeito, é a imagem do homo universalis que emerge das profundas transformações do mundo ocidental no tempo da Renascença. Tem lugar, então, uma rápida dilatação dos horizontes estreitos da Cristandade medieval, seja de seu espaço geográfico (ciclo das Descobertas), seja de seu espaço humano (encontro com novas culturas e civilizações). Nesse contexto, põe-se inevitavelmente o problema da unidade e igualdade da natureza humana, a partir da experiência do chamado pluralismo antropológico que, a partir de então, ocupará um lugar sempre mais importante na reflexão sobre o homem, tornando-se um dos campos onde a dialética da identidade na diferença apresenta características mais originais. Essa questão torna-se, na Renascença, uma questão eminentemente política com a urgência com que se impõe no campo jurídico (nascimento do jus gentium, F. de Vitória e a pregação de Bartolomeu de las Casas, como prelúdio ao Direito Natural moderno) e no campo religioso (problema da tolerância no quadro dramático das guerras da religião). É permitido pensar, por outro lado, que essa consciência da humanidade do homem está na origem da enorme curiosidade que o animal humano provoca (nascimento da anatomia com Vésale e da fisiologia com Harvey, já no século XVII). É possível situar igualmente, no campo temático aberto pela abstração do homo universalis e da ideia da natureza humana empiricamente observável que dela deriva, a formação do pensamento político moderno na Renascença, num arco que vai de Maquiavel a Jean Bodin.” É nesta trilha que se constrói o caminho subterrâneo da abstração do homem (por meio do conceito de humanidade, não do indivíduo) para a sua transformação em uma máquina — o fundamento da concepção racionalista da natureza humana que dominará a segunda metade do século XVII e que terá René Descartes (1596–1650) como seu principal representante. É uma outra forma de razão, muito diferente do pensamento antigo, e que se constitui em uma crítica radical ao vitalismo renascentista e à tradição da psyché (alma) e do pneuma (espírito). Ainda segundo Lima Vaz, “a antropologia racionalista prolongará a tradição do zoon logikon, mas dando-lhe um novo conteúdo, pois nela o esquema mecanicista (ou a primazia do modelo da máquina) se estenderá à explicação da vida e do homem”. O homem cartesiano, se é possível chamá-lo assim, invertia o eixo de percepção das coisas deste mundo, privilegiando a Física em vez da Metafísica, como era feito no pensamento aristotélico. Aliás, é na própria Física que ele se vê como um “ser da natureza” (a acepção antiga do conceito de natura humana, he antrophiné physis), ao mesmo tempo que, pelo nôus ou intellectus, ultrapassava as fronteiras da Física e penetrava no terreno da Metafísica, constituindo-se em horizon et confinium (horizonte e limite) entre o corporal e o espiritual ou entre o físico e o metafísico. Em outras palavras: Descartes cindira a unidade humana em duas, provocando um dualismo racionalista — entre o espírito como res cogitans e o corpo como res extensa — que é distinto do dualismo clássico de Platão, uma vez que o primeiro é descoberto por meio de um methodos que ajuda a conhecer e a melhorar o mundo, enquanto o segundo era uma das formas de consciência de uma vida contemplativa que estava ao acesso de poucos. A antropologia de Descartes se divide, ainda segundo as observações de Lima Vaz, “em uma metafísica do espírito e uma física do corpo: a ideia adequada, isto é, clara e distinta das duas substâncias, mostra-as como ‘naturezas completas’ que podem substituir uma sem a outra. A formação da antropologia cartesiana parece acompanhar, assim, os estágios da formação de uma nova ideia de razão que presidirá ao desenvolvimento da filosofia moderna até Kant e mostrará sua fecundidade na construção da ciência galileiana. O núcleo gerador dessa nova ideia na razão é justamente a ideia de método sobre a qual Descartes fundará toda a sua filosofia. Ao abandonar a física escolástica, propósito confirmado na relação com Isaac Beeckman, Descartes se vê em face do problema de uma nova compreensão da natureza segundo o modelo matemático preconizado por Beeckman, o que impunha a necessidade de definição de um novo método, pois a lógica aristotélica, então dominante nas escolas, era aplicável apenas a uma física das substâncias e das qualidades. O primeiro esboço desse método, já delineado em confronto crítico com a tradição aristotélica, são as Regulae ad directionem ingenii redigidas em 1629 e publicadas após a morte de Descartes. O novo método ensaia seus primeiros passos numa obra redigida em 1633 e contendo duas partes, Le monde e Traité de l´Homme, mas que a prudência de Descartes desistiu de publicar em vista da repercussão alcançada pelo processo e condenação de Galileu. Aqui o método cartesiano recebe suas primeiras aplicações, mas não explicita ainda seus pressupostos metafísicos. Descartes só se decide a dar a conhecer seu sistema com a publicação, em 1637, do Discours de la methode e, em 1641, das Meditationes de prima philosophia. Nestes dois livros, o dualismo cartesiano se mostra plenamente constituído e, com ele, define-se a estrutura fundamental da antropologia racionalista: de um lado, o ‘espírito’ cujo existir se manifesta na evidência do Cogito; de outro, o ‘corpo’ obedecendo aos movimentos e às leis que impelem a máquina do mundo. O ‘ponto arquimediano’ que permitirá mover o globus intelectualis do século XVII para colocá-lo na órbita do racionalismo cartesiano é, justamente, o Cogito: nele está implicada uma nova relação do ‘espírito’ com o mundo que define uma nova relação do homem. O mundo não é mais a physis antiga dotada de um princípio imanente de movimento (arquè kineseos, na definição de Aristóteles), mas a grande máquina capaz de ser analisada pela razão e por ela reproduzida na forma de um modelo matemático. Uma consequência importante da antropologia racionalista é o progressivo atenuar-se da distinção entre ‘natural’ e ‘artificial’ (entre a physis e techné) que era um dos fundamentos da visão aristotélica do mundo. O corpo humano é integrado no conjunto dos artefatos e das máquinas, e só a presença do ‘espírito’, manifestando-se sobretudo na linguagem, separa o homem do ‘animal-máquina’.” Apesar de Burton ter morrido em 1640 — portanto, três anos depois de Descartes ter publicado o Discurso do método —, tais ideias já circulavam há algum tempo no meio intelectual europeu, em um fenômeno que Jacques Barzun apelidou de “o colégio invisível”. Filósofos, médicos e teólogos trocavam correspondências com comentários sobre essas últimas descobertas que chocavam toda uma época. Para alguém fascinado com o poder do conhecimento como Burton, tais terremotos do pensamento deveriam fascinar e escandalizar — e não há dúvidas de que a sua Anatomia é um retrato da tensão que existia entre duas visões de natureza humana, sendo que uma venceria a outra, e também de uma tensão que existia dentro da sua própria consciência como scholar e como homo religiosus.
7.
Isso fica evidente na segunda parte do tratado, quando começa a discorrer sobre os diagnósticos e as prováveis curas para o doente que sofre de melancolia. O primeiro parágrafo da primeira parte deixa claro qual é a posição de Burton sobre a sua visão antropológica: “Man the most excellent and noble creature of the world, ‘the principal and mighty work of God, wonder of Nature’” — “O homem é a mais excelsa e a mais nobre criatura do Mundo, ‘a principal e a mais poderosa obra de Deus, a maravilha da Natureza’”. Contudo, na segunda parte parece que essa exaltação se esmaece. Conforme Burton descreve os sintomas da melancolia, tem-se a impressão de que não há uma cura propriamente dita, mas sim “placebos”, paliativos que, no fim, chegam a apenas uma única conclusão: a morte. A consciência deste fim afeta a excelência humana — a melancolia se alastra nas tristezas sociais, psicológicas e morais. Uma das curas mais plausíveis seria um tratamento natural aqui, um aconselhamento acolá, evitar os feitiços e as más influências, e, se quiser ir além, o pensamento de que o suicídio seria uma forma de alívio desta miséria terrena. Tal alívio prematuro se dissipa na terceira parte, dedicada à melancolia amorosa e, depois, à sua consequência mais terrível: o desespero. Burton disseca o que René Girard chamaria no século XX de mentira romântica — a ilusão de que estamos apaixonados pela pessoa quando, na verdade, apenas desejamos o que o outro quer ou o que jamais poderemos ter. Esse desejo nunca alcançado ou conquistado é a razão do ser humano se deixar contaminar pela melancolia. Contudo, as dores de amor são apenas o prenúncio de algo muito pior. Se nas duas primeiras partes havia a dissecação dos mecanismos palpáveis e materiais da melancolia — observado nos fenômenos empíricos e registrados como sintomas e diagnósticos —, agora temos a análise existencial de sentimentos que não podem ser observados como se fizessem parte de uma máquina e que formam uma espécie de “educação sentimental” que, se não for corrigida a tempo, pode levar o indivíduo a algo muito pior do que a morte.
8.
São nessas páginas que Burton funda sem saber o eixo conceitual do materialismo metafísico, o qual seria depois continuado na Inglaterra pelos platonistas de Cambridge, em especial Henry More e Ralph Cudworth, com suas especulações filosóficas que pendiam entre Platão e Descartes. Não há tal indecisão em Burton — no meio da terceira parte logo ataca os “epicuristas, hedonistas e ateus que infestam o reino”. Segundo o clérigo, todos os citados ajudam a acentuar a cisão que há no país e na casa de cada cidadão. Aprofundam a falta de unidade religiosa e aceleram a impressão entre os fiéis de que Deus os abandonou. São a causa do desespero que se alastrava nas paróquias e que fazia a Inglaterra se enfraquecer perante as outras nações. O ateísmo era algo sério para Burton. Afinal, graças à sua “disposição melancólica”, deveria entender muito o desespero — i.e. a perda irreversível da fruição de Deus. Não se tratava apenas de um problema de melancolia religiosa, de algo que podemos recuperar se insistirmos bastante e tivermos os meios necessários para recuperá-lo. Era algo mais profundo, mais trágico: tratava-se de uma questão de consciência. Para Burton, uma consciência amargurada, culpada, sem a possibilidade de arrependimento e de perdão, era a verdadeira raiz do desespero humano. Era a morte em vida, o inferno na terra — um fato que nenhum experimento empírico, nenhum diagnóstico e nenhuma máquina poderia registrar.
9.
Entre o método de Hipócrates e a teologia da cura de Agostinho, Burton decide pela última. Para ele, o desespero humano, a aflição que vem com o sofrimento sobre as coisas terrenas, a melancolia que surge de nossa condição — todas são formas do homem se abrir para a transcendência. Mas esta abertura não é fácil; exige muito, se aperfeiçoa com a dor e é necessário encontrar um delicado equilíbrio, manifestada neste caso na virtude aristotélica da prudência. Será ela que forçará o indivíduo a aceitar o paradoxo da existência, to endure it, como coloca em palavras precisas, a suportá-lo de tal forma que a busca por uma media res, uma medida que harmonize os opostos da existência e o faça enfim admitir que não há outra saída senão viver com a tão temida melancolia.
10.
Não foi uma decisão fácil, mas naquela mesma época Burton podia se consolar e saber que havia outras pessoas que pensavam o mesmo. Ainda assim, não foi algo anunciado aos quatro cantos do mundo — neste caso, a antropologia cartesiana ganhou o seu próprio caminho, o platonismo de Cambridge se tornou mais uma escola entre tantas e Thomas Hobbes dava os primeiros passos na sua visão da natureza humana como um objeto geométrico, prestes a ampliar tudo isso para a concepção de um Estado que depois seria apelidado carinhosamente de Leviatã. Entre os que seguiram o mesmo caminho solitário — para não dizer melancólico — de Burton, estava um jovem poeta inglês chamado John Milton. Em meados da década de 1630, mesmo período em que as primeiras edições de Anatomia eram publicadas, Milton escrevia e publicava dois poemas que se completavam em forma e em temperamento: L’allegro e Il penseroso. O primeiro espantava a melancolia para se concentrar nos prazeres do campo e na alegria da natureza; o segundo pedia que a alegria voltasse, uma vez que ele não conseguia escapar dos tormentos do pensamento sobre a finitude humana. No final do segundo poema, após perceber que nem a poesia o ajudará a escapar dos paradoxos da existência e que, no máximo, a única coisa que conseguirá é um prophetic strain, o eu-lírico chega à conclusão de que a melancolia pode ser a responsável por algumas alegrias — como, por exemplo, a da experiência acumulada com os anos. Portanto, viver com a melancolia é sempre uma escolha arriscada entre dois extremos e é provável que nenhum mecanismo consiga nos ajudar. Ou talvez a própria escolha seja o mecanismo principal e sequer saibamos disso. Mais uma prova de que o trabalho monumental de Robert Burton continuará a ser lido e relido, independentemente do nosso passado e do nosso futuro, até que possamos aprender corretamente a sua lição.
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