Os Pioneiros Da América
Na semana do dia 04 de julho, é sempre bom lembrar qual é a essência dos EUA
Toda vez que sai uma biografia de alguém que não passou a sua vida na ribalta, mas simplesmente nos bastidores do sangue, suor e lágrimas — também chamado de “trabalho” —, a pergunta que se faz é a seguinte: Qual será a relevância disso? Será que ler sobre a vida de uma pessoa que sempre fez as coisas para os outros e não apenas ficou no mundo maravilhoso da vida contemplativa é um exemplo instrutivo para o leitor comum? Este humilde escriba ousa dizer que sim. Toda a vida, em especial as vidas de homens que deixam os seus depoimentos nas páginas dos livros, vale a pena ser conhecida.
Principalmente se forem as vidas de Bill Graham e de Chuck Ramikissoon. Quem são? (Nunca ouvi falar, responde o impaciente leitor.) Vamos com calma. O primeiro foi o homem que transformou o rock-n´-roll em um negócio lucrativo, com seus concertos, camisetas, planos megalomaníacos que se tornaram realidade, conseguindo uma delicada harmonia entre os desejos dos promotores de shows e os anseios ególatras destes seres tão sensíveis que são os artistas de palco. O segundo veio de Trinidad, tem ascendência indiana, vive como um magnata na Nova York pós-11 de setembro e sua ideia fixa é fundar um clube internacional de cricket, aquele esporte que, quando seus jogadores não são atingidos por atentados terroristas das células da Al-Qaeda (como o que aconteceu em Mumbai em 2008), é de uma chatice insuportável.
A única diferença entre eles é que Graham existiu de fato, enquanto Chuck é um personagem inventado pelo escritor irlandês, criado na Holanda e residente em Nova York, chamado Joseph O´Neill, especialmente para seu badalado livro Netherland. O depoimento de Bill Graham foi coletado por Robert Greenfield, jornalista especializado em relatos sobre as grandes lendas do rock (é também dele Uma Temporada no Inferno com os Rolling Stones); os gestos e as falas grandiloquentes de Chuck são observados pelo analista corporativo Hans van der Broeck, que, como se não bastasse, encontra-se no meio de uma crise conjugal provocada pelos terrores dos ataques contra o World Trade Center. Cada homem tem a ideia fixa que merece e, consequentemente, o seu Nick Carraway particular, o único que sobreviveu para contar a história — no caso, a história deles.
Da mesma forma que Jay Gatsby no clássico livro de Scott Fitzgerald, tanto Graham como Ramikissoon começam os seus respectivos livros mortos. O primeiro foi vítima de um acidente de helicóptero após ter assistido um show da banda Huey Lewis and the News; Chuck é encontrado assassinado embaixo de um rio, amarrado nas pernas e nos braços, depois de ser dado como desaparecido durante dois anos. A citação a Gatsby não é frescura erudita deste escriba; como o bootlegger charmoso dos anos 20, Graham e Chuck são homens de visão — ou melhor, de uma única visão. Eles são aquilo que chamamos de “empresários” ou “empreendedores”. Mas também podemos chamá-los de um nome mais apropriado para o papel que cada um quer representar no seu país de adoção, os Estados Unidos da América — “pioneiros”.
Chuck quer unir um mundo em pedaços através do cricket; Bill Graham quer garantir ao público um evento em que tudo está sob o controle dele, dos artistas aos seguranças, simplesmente para que você diga a si mesmo que aquela foi uma das melhores noites da sua vida. Atravessarão todos os obstáculos para conseguirem o que desejam — mesmo que seja à custa dos outros. Para isso, Chuck trabalha junto com um comerciante russo que resolve seus problemas usando um método duvidoso: por meio de um taco de beisebol, especialmente empunhado contra seus concorrentes; Graham deixa a vida pessoal de lado e concentra-se somente no trabalho, alienando as mulheres e os filhos, e permite que uma “voz sombria” (palavras do próprio) domine os seus atos e pensamentos até que uma depressão severa o paralisa quase por completo. Enfim, não são vidas que terminam com um final feliz.
Mas talvez o que importa nessas vidas não é a forma como terminam e sim como elas foram feitas, como elas foram narradas. Em Bill Graham Apresenta, sabemos da trajetória deste inovador dos grandes concertos de rock por meio de depoimentos de quase todas as pessoas com quem ele se encontrou. Se o final não foi feliz, o início poderia ser muito pior: Graham nasceu como Wolfgang Grajonca, na Alemanha dos anos 30, e, se o leitor fez a sua lição-de-casa direito, sabe que o rapaz poderia ter sido evaporado em algum Auschwitz da esquina se não fugisse para a fronteira da França. Suas irmãs mais velhas também se espalharam pela Europa; os pais não tiveram a mesma sorte: terminaram nos campos de concentração. Da França para os EUA, Grajonca foi adotado por uma família judia do Brooklyn e transformou-se em William Graham, ergo Bill. Seu desejo maior era ser ator; imitava James Dean, Marlon Brando e Eli Wallach (o Feio de Três Homens em Conflito, de Sergio Leone), mas quase virou garçom e coletor de apostas nas pousadas dos montes Catskill pelo resto da vida, se ele não se deparasse com um grupo de teatro alternativo em São Francisco, a Mime Troupe, e ter tido a ideia de organizar eventos musicais beneficentes. A partir daí, o resto é mais do que história: é uma galeria de personagens, em que identificamos como Otis Redding (uma máquina de vulcão erótico), Jimi Hendrix (grande inalador de pó branco), Janis Joplin (a mais solitárias das rock stars), Bob Dylan (temperamental como sempre), The Band (o Não É Imprensa do rock), Led Zeppelin (um bando de rufiões e criminosos), Rolling Stones (arrogantes e, no caso de Mick Jagger, extremamente desleal na hora de fechar um negócio), The Who (que, apesar das drogas e das guitarras quebradas, é uma das poucas bandas que tem a imagem de “boazinha”) e, last but not least, uma participação de Sting, que, chato como sempre, prova que a sua imagem de bom moço é apenas uma fachada para garantir mais negócios no Japão. Todos passaram ou dependeram alguma vez da visão e do profissionalismo de Bill Graham.
A biografia de Graham é uma série de depoimentos alternados, uma espécie de história oral do rock, na qual as versões se sucedem e se complementam, apesar de jamais acentuar o lado sombrio do empresário. Não é o que acontece em Netherland. No romance de Joseph O´Neill, o que temos são dados e insinuações sobre Chuck Ramikissoon que só nos levam a crer que ele era um rematado gangster, a versão hindu dos wiseguys retratados por Martin Scorsese em Os bons companheiros (1997). Aclamado pela crítica americana — especialmente por James Wood, o crítico literário de maior influência no establishment cultural nos anos 2000 — , Netherland é um livro planejado em minúcias para que o leitor se sinta na paisagem emocional de suas personagens, narrado por um Hans van der Broek que, apesar de ser estrangeiro, usa o idioma inglês como se fosse um Saul Bellow ou um John Updike, deliciando o leitor em passagens de descrições urbanas onde o homem e a cidade se unem em uma desolação ímpar, típica dos exilados que não sabem mais onde está o seu lugar de repouso. Temos a impressão de que o enredo é quase um fiapo e envolve mais as divagações do flying dutchman sobre sua vida emocional devastada. Em um recurso supremo de ironia, não há um único americano na trama: todos são ingleses, holandeses, russos, indianos, gregos. O povo nativo aparece numa cena em que a sua imagem fica um pouco manchada: quando van der Broek vai a uma repartição pública para ter uma nova carteira de motorista, ele é tratado pelo burocrata americano como se fosse um intruso, um verdadeiro pária. A piada é óbvia: Nova York foi fundada, em sua maioria, por holandeses; Hans agora é apenas mais um estranho no próprio ninho que seus antepassados ajudaram a construir. Seria uma piscadela de O´Neill à atitude do governo Bush no trato com os imigrantes — ou mais uma amostra de uma Bush Derangement Syndrome (hoje atualizada para Trump Derangement Syndrome)?
O próprio O´Neill classificou o seu romance como um “livro pós-americano”. Talvez ele quis homenagear aquele grande picareta das relações internacionais que é Fareed Zakaria, mas também nos faz crer que não entendeu o que escreveu. Hans e Chuck podem ser sujeitos conectados ao mundo através das descobertas tecnológicas (e Netherland é um dos primeiros romances do século XXI a utilizar, com propriedade, recursos como o e-mail e o Google Satellite Camera); contudo, o que eles realmente desejam é fazer parte da América — e quando percebem que o preço para tal integração é alto demais (nada mais, nada menos que a desistência da sua própria história e da sua própria individualidade), ambos falham nos seus intentos. Chuck fica obcecado com a idéia de seu clube internacional de cricket e morre assassinado; Hans tem de voltar para a Inglaterra e reconquistar a esposa antes que ela se envolva com outro homem. No fundo, a ideia fixa de ambos — que também é a mesma de Bill Graham — é a América, a terra das oportunidades, o novo mundo onde alguém sempre pode ser uma outra pessoa e ter enfim uma nova vida.
Wolfgang Grajonca e Chuck Ramikissoon são os pioneiros da América; mas são os pioneiros que, no confronto com o daimon do empreendedorismo, formam uma categoria à parte na atual leva de imigrantes que vivem nos EUA. Suas visões nos remetem aos settlers que primeiro araram a terra americana e prepararam o cultivo para seus descendentes. Não precisaram de ações afirmativas ou de políticas identitárias, muito menos de favores governamentais para se sentirem incluídos. Conquistaram tudo o que tiveram, para o bem ou para o mal, graças ao trabalho que realizaram e pelo qual se sentiram responsáveis. E, por isso mesmo, talvez sejam uma raça em extinção — a dos pioneiros que ousam atravessar esta terra que poucos querem caminhar nela e a qual, por falta de nome melhor, chamamos de exílio interior, onde, ao mesmo tempo, encontramos a maior das liberdades ou a pior das desgraças. Cabe agora ao leitor decidir qual dessas vidas vale a pena ser lida.
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