Shakespeare, ou: A Memória de Deus
O que acontece quando os maiores dramaturgos de todos os tempos brincam com o nosso destino?
1.
No capítulo 3, versículo 14 do Êxodo, Moisés conversa com Deus e olha diretamente para a sarça ardente. Deus lhe pede (pede ou ordena?) que seja o líder do povo judeu escravizado no Egito e que inicie a fuga para a Terra Prometida. Moisés está confuso, angustiado por receber tal missão. Pergunta a Deus: “Eis que quando vier aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a nós; e eles me disseram: Qual é o seu nome? Que lhes direi?”. Então, Deus responde e profere, pela única vez na História, o seu nome: “Eu sou aquilo que é”.
“Eu sou aquilo que é” é uma resposta digna de algo que detém todo o poder e o conhecimento do mundo. A mesma coisa acontece, e sem guardar as devidas proporções, com William Shakespeare. Ele foi aquilo que é e sempre foi e sempre será. Comparar Deus com Shakespeare parece ser uma blasfêmia aos infelizes sem imaginação, mas o leitor precisa lhes dar uma chance para torná-la justamente o que ela deveria ser: uma possível saída para a escravização do nosso espírito.
Deus e William Shakespeare possuem muitas coisas em comum. Ambos se preocupam muito com a questão do tempo. O nome divino “Eu sou aquilo que é” é nada mais, nada menos que a situação do fluxo temporal: Deus é o passado e o presente que se transformam na abstração perpétua do futuro. Já Shakespeare procura, sejam nos sonetos ou nas peças de teatro, quais são os efeitos do tempo sobre a humanidade e como esta pode compreendê-lo e respeitá-lo. A obra shakespereana deve ser vista como uma intensa meditação – meditação no sentido mais profundo, ou seja, uma reflexão em movimento, combinando os opostos contraditórios, os sentimentos e a mente – sobre como o ser humano enfrenta um de seus maiores obstáculos, o tempo, e seus filhotes, a saber: a morte, a memória e a vida.
Shakespeare e Deus gostam também de histórias – no caso, de contar histórias. Os dois são narradores engenhosos, que se aprimoram a cada episódio, dificultando sempre a situação de seus personagens e acrescentando infinitas camadas de complexidade. Se Deus faz poesia com a História, sabemos disso apenas pelos detalhes que poucos notam. Desde o início fica claro que, no entanto, Ele tem um plano traçado, que sabe muito bem o quer. A Bíblia – sua obra-prima, sem dúvida, apesar de muitas que viriam pela frente – é a epopeia do espírito humano, com banidos a procurar o retorno definitivo ao lugar que perderam. Contudo, Deus é também muito exigente: faz seus atores passarem por caminhos insólitos, misteriosos, de extrema provação física, mental, moral, espiritual - e até sexual. Na Bíblia, a vida é um palco dentro do palco, onde a peça é mais uma maneira de se chegar a uma outra existência, talvez mais completa.
Shakespeare é também exigente, mas ele levou algum tempo para chegar nesse tipo de excelência. Começou como aprendiz, leu muito, ouviu o que os outros falavam, viu as peças de seus contemporâneos – havia um que o impressionava de maneira especial, um jovem com sua mesma idade chamado Christopher Marlowe. Aos poucos, Shakespeare dominou seu métier, sentindo-se confortável o suficiente para ousar. É a partir daí que ele se faz de Deus, ao jogar com todos os recursos, todas as possibilidades naquilo que ambos fazem de melhor – criar e contar uma história.
Há várias histórias dentro de uma história. Nisto tanto Deus como William Shakespeare foram mestres absolutos (existe um rival, Homero, mas ele foi o início de tudo, a plenitude disfarçada de esboço). Mas há uma diferença essencial: na verdade, não é Deus quem escreve essas histórias. Ele precisa de um ser humano para que Sua vontade e sabedoria sejam transformadas em linguagem. Deus detém o poder do Verbo, mas deseja que nós o transformemos em um pedaço da realidade. Este é o Seu dom. De certa maneira, Ele quer o ser humano a compartilhar um pouco de sua divindade ao contar uma história. Contudo, mesmo que reunissem os profetas, os visionários e os apóstolos numa sala para uma competição, todos perderiam para William Shakespeare.
2.
Por que esta predileção por um inglês beberrão, que gostava de declamar palavrões e provavelmente nem escovava os dentes? Simplesmente pelo fato de que ninguém superou Shakespeare na arte de contar uma história. Suas obras-primas – Hamlet, Rei Lear, A Tempestade, Muito Barulho Por Nada – serão sempre mistérios que nenhum estudioso conseguirá decifrar pois representam a vida em estado máximo, reordenada em uma unidade implacável, criada em torno de um Absoluto que une tudo e todos. Toda a nossa existência está contida em sua obra. Não se trata de chamá-la de uma “nova Bíblia” – como gosta Harold Bloom –, mas de um outro capítulo numa peça muito maior, na qual a mesma Bíblia é somente o prelúdio de um tema que, na realidade, é uma pergunta: Como conseguir a libertação do espírito?