Thomas Mann, ou: A Música do Apocalipse (trecho)
"Doutor Fausto", do grande autor alemão do século 20, foi o registro espiritual da sua própria vida danificada (e a do seu país).
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No dia de 27 de janeiro de 1947, ao terminar o seu mais recente romance, Thomas Mann escreveu em seu diário: “Se sobrevivi a esta obra, sobreviverei a tudo”. Ele estava falando sério. O romance recém-nascido era Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkünh, contada por um amigo, e Mann trabalhou nele como se fosse seu último fruto. O tema do Fausto perseguia-o desde a época em que se lançou na literatura com Os Buddenbrook (1901) e, apesar de tê-lo esquecido em um esboço escrito quarenta anos atrás, o tema do artista marcado pela danação eterna o acompanharia até o momento em que decidiu transformá-lo em um volume de setecentas páginas.
Houve outros títulos que também giravam em torno deste tema, tratado por Mann como se fosse uma sutil variação musical, até ser levado às últimas consequências em Doutor Fausto. A Morte em Veneza (1912) foi, por assim dizer, a primeira ária. Gustav Von Aschenbach, um escritor que se confronta com a decadência da morte e a beleza de um mundo perdido, é o protótipo do que seria o músico Adrian Leverkünh. O personagem foi inspirado no compositor e maestro Gustav Mahler, conhecido de Mann, um homem ambicioso e de alma torturada, criador de um conjunto de dez sinfonias que forma uma das obras mais ambiciosas da História da Arte. E antes teve Tonio Kroeger (1903), conto sobre um artista exilado do seu meio devido à sua tez de pele, até chegar a hora e a vez de Hans Castorp, o singelo herói de A Montanha Mágica (1924).
Contudo, Hans Castorp não é um artista; é um engenheiro, apenas uma “folha em branco”. Ao visitar o primo Joachim em um sanatório de tuberculosos localizado em Davos, o jovem irá passar por uma educação espiritual, moral, intelectual que transformará sua maneira de ver o mundo.
A Montanha Mágica é o Wilhem Meister de Thomas Mann. Acreditando ser o sucessor natural de Goethe, toda a sua obra é uma procura desesperada para se igualar ao mestre de Weimar. Seus romances, novelas, contos e ensaios cobrem cinquenta anos da história da Alemanha e do mundo. Não há algo que se compare na primeira metade do século, e talvez só seu irmão, Heinrich, autor de O Súdito (1914) e A vida privada de Henrique VIII (1935-38), possa entrar na competição. Existe em cada linha, sentença e parágrafo uma vontade sobre-humana de sintetizar os pensamentos, os sentimentos, as ideias civilizatórias – e como elas se relacionam com o movimento da História.
A saga de Hans Castorp é o melhor exemplo disso. Escrito durante doze anos, começou como uma pequena novela e tornou-se um “romance de formação” dividido em dois tomos. A razão para essa demora foi a Primeira Guerra Mundial – um acontecimento que marcou as vidas alemãs, pois seria, de certa forma, a última “guerra galante” (se alguma vez existiu isso). Mas o combate global provocou em Mann uma reavaliação do curso da sua obra; as discussões que teve com Heinrich – um nacionalista engajado – sobre o seu posicionamento político (considerado alienado) geraram o ensaio Considerações de um Apolítico (1918). A Montanha Mágica seria o resultado dessa reavaliação e também o livro que, ao entrelaçar simbolismo e realismo, recria a Europa antes da Primeira Guerra. Seu personagem principal, o jovem Hans, pode não ter qualquer talento artístico, mas sua ingenuidade o leva a descobrir a vida sem os vícios que a destroem. Esta “revelação” é algo que se espera de um artista: a pureza do olho da mente que vê a existência humana a partir de um novo ângulo.
Entretanto, Castorp é também levado por uma danação – no caso, o tempo. O tempo é tema central de A Montanha Mágica e não apenas por um questionamento filosófico. Será o tempo – “substância da vida”, segundo o próprio narrador – que dará a necessária desenvoltura para Castorp desenvolver sua consciência e também será ele que jogará o mancebo na festa macabra que a História lhe preparou: a guerra.
Esta preocupação do tempo – e, mais precisamente, da História – levou Mann a permitir que os dois interferissem na sua obra, como matéria-prima, para serem retrabalhados do seu modo. Aliás, a História era o único componente que Mann deixava entrar em sua rotina. O resto – a família, a Alemanha, sua homossexualidade reprimida – eram meros apêndices que circulavam em torno da sua sombra e que não poderiam, de forma alguma, atrapalhar o seu projeto de construir uma obra rigorosa e perene. Mann era o autêntico homem de letras: vivia do que escrevia, trabalhando seis horas diárias, nos seus romances, contos e artigos jornalísticos. Uma disciplina maníaca que nunca foi quebrada, nem pelas constantes viagens de exílio, muito menos pelo suicídio de um parente, como o que aconteceu com seu filho Klaus, em 1949.
Contudo, toda a sua ordem e rigor – refletidos na placidez do seu tom, na construção minuciosa das tramas e na irônica serenidade do seu estilo – revelavam também um homem que temia os seus medos internos e, principalmente, o descontrole frente ao Destino. Assim fez da História sua cúmplice, dissecando seus intricados mecanismos e tornando-a sua. Era a uma forma de agradecimento: se não fosse por ela, Mann nunca escreveria A Montanha Mágica, obra que lhe daria a consagração definitiva, mas também Doutor Fausto, o livro que prova que ele foi – na expressão precisa de Otto Maria Carpeaux – “uma tragédia humana”.
Talvez Doutor Fausto nunca poderia ter sido escrito no início do século XX, como queria o jovem Thomas Mann. Em 1901, a Alemanha de Lübeck – cidade natal do escritor – adaptava-se à recente transformação nacional e podia-se respirar uma atmosfera fértil, anunciando uma nova era e uma nova nação. A queda definitiva da aristocracia e o surgimento de uma burguesia de tendência liberal apontavam para um tipo de artista estabelecido no século XIX: sem os habituais mecenas, o artista antes era uma vocação (no sentido de vocare, ser chamado) que se tornava uma profissão. Trabalhando em jornais, escrevendo encomendas por linha e por página para calcular o quanto iria ganhar no mês, o artista, conhecido pela sua postura aristocrática, torna-se um burguês apenas refinado. Do pensamento meditativo passa, de um momento para o outro, para a galhofa instintiva. O artista e o homem do pensamento na Europa são agora “estrelas” e o que importa agora são suas personalidades e não a obra que produziram. Os livros, habituais alimentos do espírito, são vendidos como especiarias. Lê-se simplesmente pelo ato de ler. A obsessão da burguesia pela chamada “democracia” nos faz esquecer que, na República de Weimar, a liberdade de se expressar tem as suas desvantagens. A Primeira Guerra Mundial rachou a Alemanha: a apreensão pela vitória certa, reduzida à humilhante derrota certificada com carimbo e assinatura no Palácio de Versailles, levou os alemães a expirar o gás azedo que seus corpos retinham – o gás da perda.
Dessa forma, as ideias antissemitas e totalitárias que já existiam na Alemanha, desde os tempos de Lutero, brotaram rapidamente. A derrota da Primeira Guerra poderia ter acabado com o desejo de expansão dos alemães; mas a audácia aumentou, e o gosto pela vingança também. Precisava-se apenas de alguém que soubesse captar (e agarrar) o que o povo – este elemento bizarro que muda sempre a corrente da História – desejava.
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