1.
John Rawls, o autor do clássico tratado Uma Teoria da Justiça (1971), é um filósofo político elusivo e, ao mesmo tempo, onipresente na discussão pública contemporânea. Elusivo porque, apesar de ter escrito um livro que vendeu cerca de 200 mil exemplares na época em que foi publicado (um feito para um tomo com mais de seiscentas páginas), Rawls conseguiu se manter alheio às intensas polêmicas do seu tempo, tomando o cuidado de redigir uma obra filosófica com tal cautela que a sua minúcia conceitual tornou-se um exemplo para scholars futuros obrigados a lidar com os mesmos temas; e onipresente porque seus livros influenciaram um modo de pensamento político que, se não se transformou na regra geral das universidades, sem dúvida impregnou a mentalidade dos tecnocratas que vivem nas nossas instituições democráticas, obcecados em implementar o seu modelo teórico às custas de um Bem Comum deveras abstrato – e, portanto, extremamente perigoso.
John Bordley Rawls nasceu em 21 de fevereiro de 1921, no seio de uma família americana de tradição sulista, mas que foi obrigada, por causa da Guerra da Secessão, a se mudar para a cidade de Baltimore. Parece ser um fato irrelevante, mas não é, já que o próprio Rawls afirmou que a figura histórica de Abraham Lincoln foi um exemplo ético para a sua vida, junto com a de Immanuel Kant como referência intelectual. As biografias desses modelos moldaram profundamente a visão igualitária de sociedade que ele teria anos depois. O sentimento de culpa pelo fato da família de Rawls ter experimentado, na Carolina do Norte, a escravidão dos negros, e a vivência pessoal de ter sido soldado na Segunda Guerra Mundial, especialmente ao testemunhar os efeitos das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, criaram um impulso fortíssimo ao futuro filósofo – e que teria um efeito duradouro em seu trabalho como scholar e pensador.
Uma Teoria da Justiça foi o resultado de um trabalho que ocupou o espírito de Rawls por mais de dez anos. A partir da década de 1950, ele praticamente ficou possuído pela ideia da “justiça como equidade” (justice as fairness) e de como ela poderia ser transmitida não só para as instituições democráticas de uma sociedade liberal como deveriam ser os Estados Unidos, mas também para a construção completa de uma comunidade bem-ordenada, composta por membros morais que desejavam, acima de tudo, redimi-la das suas iniquidades.
Esta preocupação recorrente é visível a quem for ler os Collected Papers que foram publicados postumamente, após a morte de Rawls, em 4 de novembro de 2002. Ali temos alguém que se preocupou em criar uma obra filosófica de inegável rigor metodológico e que, por isso mesmo, produziu cuidadosamente cada um dos seus argumentos para que não houvesse nenhuma falha lógica. Rawls escrevia e reescrevia cada um dos seus artigos com tamanho cuidado, não porque tivesse problemas de expressão, e sim porque queria cercar todos os lados do seu raciocínio filosófico. Afinal de contas, ele sabia que a sua ideia principal não era apenas impopular entre vários membros do establishment (apesar do próprio ter feito parte desta casta, ao lecionar nas faculdades de Harvard e Stanford); era também absolutamente impraticável se fosse realizada na vida real.
A obra de Rawls é o ápice de duas tradições de pensamento na língua inglesa. A primeira é a da filosofia analítica, cujo intento de não produzir uma “teoria geral” da política era um problema para quem pretendia trilhar um caminho menos contemplativo, mas que foi finalmente resolvido com Uma Teoria da Justiça, graças às virtudes de síntese do próprio Rawls – estimuladas por uma leitura atenta dos ensaios sobre liberdade negativa de Isaiah Berlin e os artigos sobre ética de Bernard Williams; e a segunda é o liberalismo americano, desenvolvido à máxima potência após a Guerra Civil, e posta em prática por juristas como Oliver Wendell Holmes e presidentes como Woodrow Wilson. Eles foram os responsáveis por elaborar um mecanismo exato no qual a atitude de governar um país seria uma mistura da seleção natural banalizada pelos darwinistas, a ausência de fé em um Deus pessoal e a crença absoluta em um Estado Providência que interferisse nas questões de foro íntimo.
A soma dessas duas tradições provocou o que, a partir da década de 1950 – e que depois seria elevada a uma sofisticação inigualável com Uma Teoria da Justiça, em 1971 –, Lionel Trilling chamou de “a imaginação liberal”. A característica principal desse tipo de imaginação é a crença aparentemente racional – mas que, na verdade, guarda uma boa dose de irracionalidade – de que a liberdade humana pode ser aperfeiçoada por meios exclusivamente humanos. Ela não se torna uma realidade através do aprimoramento das virtudes éticas e sim da elaboração lenta e gradual das instituições políticas. Nesse caso, a imaginação liberal é, antes de tudo, algo que permite o triunfo da técnica, o que, se por um lado ajuda o desenvolvimento social, por outro simplifica gravemente os elementos imprevisíveis da vida ao organizá-los de maneira artificial. É por este motivo que, na vida inconsciente do liberalismo como visão de mundo, Trilling explica que
“fracassamos no que se refere à completude crítica se não levarmos em conta o valor e a necessidade de seu impulso organizacional [a do liberalismo]. Mas ao mesmo tempo devemos entender que organização significa delegação, agências, escritórios e técnicos, e que as ideias que podem sobreviver à delegação, que podem ser transmitidas a agências, escritórios e técnicos, tendem a ser ideias de certo tipo e de uma dada simplicidade: elas desistem de uma parte de sua amplitude, modulação e complexidade para poder sobreviver. O sentido vivo de contingência e possibilidade, e o daquelas exceções à regra que podem ser o início do fim da regra, não convém ao impulso de organização”.
2.
Ora, Uma Teoria da Justiça é fundamentado inteiramente neste tipo de imaginação que, graças à proeza técnica de Rawls, transformou-se em um sistema perfeito, pleno, redondo, acabado – e, sobretudo, belo, como reforçou Robert Nozick em seu comentário sobre a obra. E aqui está o principal problema desse colosso do pensamento político do século XX: apesar das suas óbvias qualidades – ao contrário do que seus opositores anti-igualitários pensam, Rawls jamais deixou de ser um sujeito intelectualmente honesto –, a sua beleza é algo que provoca, inadvertidamente, algo próximo do horror.
Como bem descreveu Alan Ryan em On Politics, Uma Teoria da Justiça é a tentativa mais impressionante já feita para justificar, de qualquer jeito, o princípio que marcou a vida do seu autor: o de que a justiça como equidade é a única ideia compatível para se construir uma sociedade bem ordenada. Todos os outros setores, do econômico ao político, passando pelo social, devem girar ao redor desse tema, sem exceção. Para Rawls, se fôssemos requisitados para elaborar um sistema social e político que existe por de trás de um “véu de ignorância” – ou seja, o reconhecimento de que nada saberemos sobre o próprio lugar que ocuparíamos neste mesmo sistema –, teríamos de escolher a sociedade que prefere valorizar a pessoa menos favorecida. Portanto, uma sociedade justa seria a que a pessoa menos favorecida é a que tem mais vantagens de manter a sua dignidade individual.
Não se trata apenas da releitura da igualdade idolatrada por um Rousseau. Rawls levaria isso ao extremo, quando afirma que, ao formalizar o princípio da justiça como equidade, uma pessoa racional que não soubesse da sua posição neste tipo de sociedade concordaria que a desigualdade é legítima apenas para que fizesse a pessoa menos favorecida se transformar na mais favorecida, assim que isso fosse possível, conforme as circunstâncias. Se, em Rousseau, a igualdade é o ponto de partida do seu raciocínio, com Rawls ela é o único compasso moral a ser seguido, do início ao fim de todo o processo político.
3.
Temos aqui o nó górdio de um conflito que domina as reflexões sobre a justiça, a política e, especialmente, o direito desde o que chamamos, na história das ideias políticas, de período clássico. Estas três vertentes da atividade humana implicam sempre nas relações entre o indivíduo e a sociedade – e o grande erro de um acadêmico como Rawls foi privilegiar ora um lado, ora outro lado, quando ambos os polos estão claramente envolvidos nos aspectos centrais dos problemas que surgem dessas três áreas. Contudo, fica muito difícil afirmar uma definição precisa de justiça, num momento histórico em que esta última é confundida com a sociedade, esquecendo-se do indivíduo.
O fato é que a justiça só pode existir na sua aplicação para os bens de uma determinada parcela da sociedade, jamais para ela como um todo. Por isso, ao escutar as palavras “justiça social” (um dos termos favoritos de Rawls, que usa o conceito de “justo” de uma maneira bem idiossincrática, como já foi explicado acima), temos de tomar cuidado, porque a justiça tem eficácia na sociedade, mas sempre observando os interesses da pessoa.
E eis que entra o direito. Da mesma forma que a expressão “justiça social” é um slogan ideológico, “direitos humanos” é mais do que um pleonasmo: é o início da perversão da justiça e do próprio direito, ao confundir os termos para, enfim, expandi-los em um círculo mais sombrio – o do poder. Afinal de contas, não existe direito para cachorro ou árvore. Somente o ser humano possui direito, porque para tê-lo é preciso ter a noção do que seria a justiça.
Mas o que seria essa noção exata? Este é um dos enigmas que perturbam os mais diferentes filósofos – e John Rawls não ficou indiferente a isso. A justiça é uma medida exata, mas invisível, como descobriu o estadista grego Sólon, porque se encontra na alma e, graças à temperança que existe em cada um de nós, ela pode ser expandida para o resto de nossos semelhantes. Todos nós sabemos o que é justiça porque temos uma intuição do que seria ela, e esta intuição origina-se nada mais, nada menos da razão do espírito, que é a consciência da abertura amorosa da alma frente à ordem transcendente e, o mais importante, ao mistério da existência.
Indo por um caminho oposto, a intenção de um Hans Kelsen é a de tentar capturar, em conceitos imanentes, algo que só pode ter sido um dom, nunca algo criado pelo próprio homem. Já a medida invisível de Sólon só se torna visível de duas maneiras: a primeira aconteceu depois que o julgamento dos efeitos do tempo confirmou, de forma trágica, que a justiça dos homens é de natureza falha e inconstante; e a segunda, após o ser humano ter a completa consciência de que a verdadeira justiça só é percebida ao fim de uma vida.
É o que acontece com o velho Céfalo em A República, de Platão, o personagem que dá origem à discussão sobre o que seria a justiça. Ele está no fim de sua existência na Terra e certos assuntos, com os quais nunca se preocupou durante a juventude e a maturidade, começam a incomodá-lo:
“Tu bem sabes, Sócrates, que, depois que uma pessoa se aproxima daquela fase em que pensa que vai morrer, lhe acometem o temor e a preocupação por questões que antes não lhe vinham à mente. Com efeito, as histórias que se contam relativamente ao Hades, de que se têm de expiar lá as injustiças aqui cometidas, histórias essas de que até então zombava, abalam agora a sua alma, com receio de que sejam verdadeiras. E essa pessoa – ou devido à debilidade da velhice, ou porque avista mais claramente as coisas do além, como quem está mais perto delas –, seja qual for a verdade, enche-se de desconfianças e temores, e começa a fazer os seus cálculos e a examinar se cometeu alguma injustiça para com alguém. Portanto, aquele que encontrar na sua vida muitas injustiças atemoriza-se, quer despertando muitas vezes no meio do sono, como as crianças, quer vivendo na expectativa da desgraça. Porém aquele que não tem consciência de ter cometido qualquer injustiça, esse tem sempre junto de si uma doce esperança, bondosa alma de velhice, como diz Píndaro” (330 e).
O enigma da justiça está intimamente conectado com a luta pela unidade da identidade do próprio indivíduo – e esta última não pode ser compreendida sem a referência simultânea à alma da polis e à alma do cosmos. Céfalo é o homem que, ao vislumbrar a morte, pergunta-se, através da medida invisível de sua alma, se essa mesma medida foi corrompida durante a sua passagem pela Terra. Reparem: ninguém definiu o que seria a justiça, mas todos sabem o que ela é e o que ela não é – ou seja, é a razão do espírito atacando o problema existencial no seu modo mais profundo e imediato.
Por isso, Platão iniciará a grande pergunta de A República, um diálogo que nunca foi sobre o que seria a justiça e sim sobre se vale a pena ser justo em um mundo onde impera somente o contrário. Esta é a razão do surgimento deste tema na discussão de Trasímaco, sofista desprezível, mas que tem sua importância na história das ideias políticas porque ele faz a primeira e mais séria relação entre justiça e política, ao dar a sua definição da primeira: “Afirmo que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte” (338 c).
A medida invisível de Sólon – a mesma medida que guia os passos de Sócrates, Platão e Aristóteles – se transforma no comando de um único homem – aquele que detém o poder. Tanto a política e a justiça atuam para o bem comum da sociedade, mas a primeira aborda, como um de seus polos, o poder que um homem tem para agir ou interferir na vida de outro homem, e no outro polo, no qual a segunda também faz parte, a distribuição proporcional dos bens de cada um, sempre em relação ao todo da existência e da sociedade.
É na parte da proporção que entra o direito, para regular justamente a igualdade de força que surge do poder. Um ponto que os atuais políticos nunca perceberam, ao pregarem pela igualdade e pelos direitos de todos sob uma mesma lei, é o de que o poder não se alimenta da divisão proporcional que cada um tem direito a receber, mas da suposta igualdade que cada um sonha em ter. O poder precisa da ilusão da igualdade para que ela seja apenas uma: a manutenção da sua própria igualdade, realizada em uma artimanha muito sutil de roubo e coerção, usando das leis que deveriam reger a justiça e o direito.
Por isso, não podemos nunca confundir a lei com a justiça e vice-versa, e muito menos o direito com a lei, como muitos fazem frequentemente. Esta confusão é um dos frutos da idolatria da igualdade e um dos efeitos que o poder provoca na mente das pessoas. A justiça e a política convergem para um mesmo fim – o bem comum da sociedade –, mas o direito é o meio que regula o poder para que este não invada o território da medida invisível que ainda habita nossas almas.
O ponto central entre justiça, política e direito é o da proporção. Por isso, temos de nos perguntar: Qual o fim do direito? A justiça não é uma criação humana, mas o direito é uma atividade humana, e, portanto, tem uma finalidade em sua ação, seja a curto ou a longo prazo. Entretanto, para o homem agir, ele tem de descobrir o que lhe foi dado – logo, o direito está dentro da própria justiça, ou melhor, nas relações das coisas que esperam pela justiça. Ela serve como meio termo, equilibrando, com a ajuda da temperança humana, o extremo dos dois opostos, o direito como um fato da natureza e o seu algoz, o poder. Esta foi a mesma conclusão a que chegou Aristóteles na Ética a Nicômaco, levando-a a níveis insuspeitos: o fim do direito é a justiça e esta é, como complementou Santo Tomás de Aquino, a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu.
Claro que, neste esquema, faltou um detalhe: o ser humano. É aqui que Dante Alighieri nos ajuda, com uma definição de direito tirada de seu livro Il Convivio e que até Miguel Reale, em suas Lições Preliminares de Direito, usou para as bases de sua “Teoria Tridimensional do Direito” – Jus est realis ac personalis hominis ad hominem proportio, quae servata servat societatem; corrupta, corrumpit. Em tradução aproximada: “O Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a”.
Temos de analisar esta sentença, parte por parte, para estabelecermos alguns princípios e continuarmos com a nossa análise. “O direito é uma proporção real e pessoal” – aparentemente, esta afirmação só confirmaria o que acabamos de dizer nestas páginas: o direito trabalha com as proporções e não com a igualdade, pois esta é uma figura de linguagem, uma retórica impraticável na vida cotidiana, uma vez que a desigualdade é o comum no nosso cotidiano e não o contrário. No entanto, reparem que ele não fala de uma proporção qualquer – é uma proporção real e, depois, pessoal. Atentemos para a proporção real – “Jus est realis ac personalis hominis ad hominem proportio”. A proporção é tanto real como de homem para homem. Logo, o ser humano também está dentro desta proporção real. Afinal de contas, real vem de res, “coisa” em latim. A res pode algo ser da natureza ou ser um produto da natureza – e o homem está incluído nela, que é justamente a realidade onde vivemos.
Assim, fica claro que, quando os oposicionistas do Direito Natural querem criticá-lo, afirmando que não podemos ser escravos da natureza e temos de dominá-la, eles talvez estejam falando das árvores, dos rios e dos passarinhos; na verdade a “natureza em questão” é a própria realidade – as coisas que nos rodeiam. Não há como controlar o real porque é ele que nos condiciona em todas as nossas ações. O ser humano é muito mais passivo frente ao poder da realidade do que propriamente ativo. Dá-se este mesmo poder para ele escolher, mas isto não é a mesma coisa que o poder de interferir no destino humano. É sobre este tipo de poder – de onde se origina a política – que o direito vem para dividi-lo de forma proporcional.
A seguir, vamos à segunda parte: “de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a”. O direito não é apenas um todo abstrato – como é o caso da sociedade. Ele se torna real à medida que passa de homem para homem, preservando a individualidade de ambos. A proporção vem da relação entre as coisas e entre os próprios homens. Qualquer filósofo que reflita seriamente sobre essa sentença, crente de que o Direito Natural é algo estático, deveria aprender com ela, pois estamos sendo apresentados a uma visão de direito muito mais dinâmica. Existem mudanças no direito porque a relação entre as coisas e o homem pode mudar conforme o passar dos tempos, mas o que não muda são as coisas e o homem.
Eric Voegelin chamava isso de “estrutura da realidade”, uma experiência intensamente objetiva e que dependia da subjetividade humana apenas como ponto de contato da consciência que captava uma tensão existencial, o metaxo. Se os princípios da “estrutura da realidade” são alterados de forma negativa, mesmo assim a estrutura não se modifica na sua raiz, apesar de sofrer perversões. É o que Dante quis dizer ao complementar que a proporção do direito deve ser conservada entre os homens e as coisas, uma vez que “conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a”. O direito só pode existir se o homem respeitar a noção da razão humana como única, em constante contato com as coisas que o circundam. Ele é apenas o início de um longo processo, no qual o fim é a justiça.
Se o direito é o início e a justiça é o fim, qual seria o meio? Temos então as leis – um dos instrumentos mais úteis e, ao mesmo tempo, mais perigosos para o controle dos vícios humanos. Na verdade, a lei deveria ser vista como um fio que liga a ordem transcendente e a ordem humana. Os gregos simbolizaram este conflito com os termos dike para a justiça dos deuses e nomos para a lei escrita que determina a justiça dos homens (a physis era a lei da natureza para a observação do que se acreditava ser a física daquele tempo e não será abordada neste texto). Algo muito parecido aconteceu na época em que Israel havia se tornado um império, com a predominância do Torá como a lei maior dos judeus. Entretanto, o conflito só ficaria mais bem articulado na Grécia, em especial na vida de Sólon e nas tragédias de Ésquilo e Sófocles. Os estadistas gregos tinham de, muitas vezes, ir contra o nomos para cumprir uma lei maior, a dike – e nem sempre eram compreendidos em suas escolhas.
Mas, pelo menos, no embate íntimo de suas almas, esses estadistas sabiam, através da persuasão retórica (peithos), onde estava a medida invisível que Sólon tanto defendia em seus escritos e, geralmente, conseguia transmiti-los aos seus companheiros. E mesmo no caso de um Sócrates, que era guiado por uma nova ordem que poucos queriam aprender sobre ela (mas sabiam de sua importância), ele preferiu respeitar o nomos de Atenas, até porque a dike da qual era seguidor dava a entender que sua morte seria uma futura lição aos seus alunos. Hoje em dia, por mais estranho que pareça, perdemos completamente qualquer noção de dike, exceto como uma curiosidade histórica. Temos apenas o nomos e este, muitas vezes, quer ocupar a função da dike. Quando a letra morta preenche o papel da letra viva do espírito, é óbvio que a luta pela unidade do indivíduo sai enfraquecida e dá lugar ao rebaixamento da nobreza humana. Como um deus pagão, a lei dos homens substitui a justiça, controla o direito e, por fim, despedaça a hierarquia do real, transformando-a na idolatria da igualdade.
4.
Uma Teoria da Justiça vira toda essa tradição clássica de ponta-cabeça. Além da insistência no princípio da justiça como equidade, existem outros três pontos que devem ser observados com cautela para não cairmos no feitiço desta utopia realista que John Rawls queria vê-la aplicada em nossas instituições democráticas.
O primeiro ponto lida com o “véu da ignorância”. Segundo Rawls, esse véu ocorre quando “as partes [envolvidas] não conhecem certas particularidades” onde elas estão envolvidas. Depois,
“ninguém sabe qual é seu lugar na sociedade, classe nem status social: além disso, ninguém conhece a própria sorte na distribuição dos dotes e das capacidades naturais, sua inteligência e força, e assim por diante. Ninguém conhece também a própria concepção do bem, as particularidades de seu projeto racional de vida, nem mesmo as características especiais de sua psicologia, como sua aversão ao risco ou sua tendência ao otimismo ou ao pessimismo. Além do mais, presumo que as partes não conhecem as circunstâncias de sua própria sociedade. Isto é, não conhecem a posição econômica ou política, nem o nível de civilização e cultura que essa sociedade conseguiu alcançar. As pessoas na posição original [a da justiça como equidade] não sabem a qual geração pertencem. Essas restrições mais amplas impostas ao conhecimento são apropriadas, em parte porque as questões de justiça social surgem tanto entre gerações quanto dentro delas; [...] nesses casos, para levar adiante a ideia da posição original, as partes não devem conhecer as contingências que as colocam em oposição. Devem escolher princípios cujas consequências estejam dispostas a aceitar, seja qual for a geração a que pertencem”.
O “véu da ignorância” é aquele instante no qual você realmente não sabe o que acontece na hora de tomar uma decisão. Não se trata apenas de uma informação incompleta; trata-se de ausência de informação. Contudo, Rawls argumenta que, independentemente disso, você pode, sim, decidir – e mais: decidir corretamente – se apelar para o uso do princípio da justiça como equidade e assim ajudar a pessoa menos favorecida.
Uma outra leitura dessa linha de raciocínio é que o véu da ignorância não é um pressuposto ou parte do problema, mas já é parte da solução. O verdadeiro problema, para Rawls, é como pensar em um arranjo ou contrato social numa sociedade liberal – que seria a sociedade de fato, já na sua época – em que não haveria um acordo sobre um fundamento metafísico que dê unidade à experiência social. Assim, a chamada “posição original” (a da justiça como equidade) é um experimento mental que visa oferecer uma base racional comum a partir da qual se pode derivar tal contrato.
É por isso que o próprio título de Uma Teoria da Justiça deixa claro o que o livro é: uma teoria. Rawls explicita logo nas primeiras páginas que sua intenção é formular um modelo abstrato, autossuficiente e fechado em si mesmo, no qual a “justiça social” possa prevalecer sobre tudo e sobre todos. A alternativa prática que ele encontra para que esse modelo seja uma espécie de solução seria o recurso ao “equilíbrio reflexivo”, que forneceria o ajuste fino ao longo da dinâmica concreta das sociedades. Porém, mesmo tendo consciência disso, ele insiste que é possível tomar decisões a partir desse esquema criado tão somente no papel. Por que isso? Além do fato de ter tomado para si a idolatria da igualdade como se fosse um novo mandamento, Rawls cai no grande perigo que contamina a mente de todo o scholar que sabe do seu talento e da força do seu pensamento: a pleonexia, a crença de que a sua ideia explica as contradições do mundo real.
Como qualquer bom acadêmico – e Rawls é um dos melhores, sem dúvida –, ele não sabe que, na vida do dia-a-dia, não há nenhuma diferença entre incerteza e risco. Contudo, na sociedade criada por de trás do “véu da ignorância”, se essa distinção é apagada, a velha e boa prudência aristotélica também é jogada de lado. Em qualquer situação concreta que envolva ausência de informações, o melhor é jamais apelar para um princípio abstrato como o da justiça como equidade, mas muitas vezes fazer absolutamente nada. Só podemos agir realmente se tivermos acesso aos dados para então intuirmos, imaginarmos ou concluirmos sobre as consequências práticas dos nossos atos, sejam intencionais ou não. A insistência na interferência de um modelo abstrato nos prismas intricados da realidade é um dos fenômenos mais arriscados do pensamento moderno e, neste ponto, John Rawls mistura um tanto de ingenuidade e do pior tipo de ignorância que acomete o bom intelectual – a ignorância sofisticada que mantém a sua pureza, apesar da evidente corrupção que já contaminou o seu pensamento.
Esta “pureza da ignorância” fica evidente no segundo ponto que devemos analisar corretamente: a concepção de Rawls sobre a bondade. Para ele, uma verdadeira teoria da justiça só será eficaz se “o conceito do direito justo anteceder o de bem”. Contudo, ao mesmo tempo, ele reconhece que há um problema lógico e histórico no seu raciocínio, pois é sabido que, desde Platão e Aristóteles, o kalon é a força misteriosa que organiza naturalmente uma sociedade bem-ordenada. Portanto, Rawls resolve criar a sua “teoria fraca do bem”, na qual “sua finalidade é garantir as premissas acerca dos bens primários necessárias para se chegar aos princípios da justiça”. Aqui, o bem não é visto em sua soberania inserida na tensão do real – como, por exemplo, fazem Iris Murdoch e Voegelin –, e sim como algo imanente à racionalidade humana, numa espécie de fruto da razão prática de Kant. O ser humano escolhe porque é racional, e suas escolhas são determinadas pelo princípio da justiça como equidade o qual, por ser conectado à mesma racionalidade do bem, o tornaria enfim concreto no esquema proposto por Rawls.
Entretanto, a sofisticação dessa tautologia mostra o impasse existencial do modelo da sociedade bem-ordenada que Rawls pretende construir – e aqui chegamos ao terceiro item do nosso questionamento sobre a verossimilhança deste sistema. Segundo sua própria definição,
“[...] Caracterizei uma sociedade bem-ordenada como aquela moldada para promover o bem de seus membros e regulada de forma efetiva por uma concepção pública de justiça. Assim, é uma sociedade na qual todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e as instituições sociais básicas atendem e se sabe que atendem a esses princípios. A justiça como equidade está estruturada para estar de acordo com essa ideia da sociedade. As pessoas presentes na posição original devem supor que os princípios escolhidos são públicos e, assim, devem avaliar essas concepções de justiça tendo em vista suas prováveis consequências quando adotadas como padrões universalmente reconhecidos. As concepções que funcionariam se entendidas e acatadas por alguns poucos, ou mesmo por todos, contanto que esse fato não fosse amplamente conhecido, são excluídas pela cláusula da publicidade. Devemos também observar que, como os princípios são aceitos à luz de convicções gerais verdadeiras sobre os seres humanos e seu lugar na sociedade, a concepção de justiça adotada deve ser aceitável com base nesses fatos. Não há necessidade de recorrer a doutrinas teológicas ou metafísicas para sustentar seus princípios, nem de imaginar outro mundo que compense e corrija as desigualdades que os dois princípios permitem neste. Ou as concepções de justiça são justificadas pelas condições da nossa vida, conforme as conhecemos, ou não serão de modo algum” (grifos nossos).
Ao retirar deliberadamente a perspectiva metafísica da sua sociedade bem-ordenada, Rawls também amputa um dos polos que articula a tensão existencial da realidade. Ou, melhor, indo além: de fato, na sua teoria, ele encontra o mundo real sem um acordo em relação a essa perspectiva. Assim, só podemos chegar à seguinte pergunta: o que seria uma ordem para Rawls? Seria uma realidade possível? Ou uma utopia realista, como o próprio afirmou em diversas entrevistas sobre seu trabalho?
Contudo, antes disso, vamos ver como um outro scholar, formado nas mesmas bases filosóficas de Rawls, contrapõe os princípios de Uma Teoria da Justiça, e mostra como estes estão equivocados a partir de uma análise que não apela para nenhuma espécie de “doutrina teológica”.
5.
Estamos falando, é claro, do americano Robert Nozick (1938-2002), autor de outro clássico da filosofia política, Anarquia, Estado e Utopia (1974), um livro responsável por divulgar os princípios do libertarianismo da Escola Austríaca ao grande público, além de ser uma das primeiras críticas sistemáticas feitas ao igualitarismo de Rawls.
A primeira coisa que deve ser alertada é que, ao contrário do que supõem muitos que o leram na época, o livro de Nozick não é um tratado de filosofia política. Com auxílio da metodologia da filosofia analítica (que, como já dissemos, se baseia em experimentos mentais e jogos de linguagem), Nozick faz, na verdade, um tratado de epistemologia que, ao partir dos mesmos princípios libertários defendidos por Murray Rothbard, seu principal inspirador, chega a um resultado completamente oposto – no caso, a defesa da pluralidade de diversas comunidades dentro de uma mesma sociedade, que seria o ideal do Estado Mínimo.
Em Anarquia, Estado e Utopia, o único princípio político que jamais pode ser descartado é o de que “os direitos individuais são irredutíveis e inatacáveis”. Qualquer afronta a isso não é apenas ilegal – é imoral. Por isso, segundo seu ponto de vista, a sociedade será sadia se os indivíduos promoverem uma cooperação sem nenhuma espécie de vício ou coerção exterior; e isto só será válido se o vício ficar evidente na hora em que essa troca for feita entre os indivíduos.
Pode-se dizer que a teoria do conhecimento de Nozick é próxima do “anarquismo epistemológico” de Paul Feyerabend. Ela alimenta-se do caos inerente à nossa condição humana e, por isso, jamais deve ser confundida com o clichê gasto do pluralismo e da tolerância. Nozick acredita que o verdadeiro processo político se dá por meio de um sistema de filtros, de tentativa e erro, e que a ordem natural surge nítida aos indivíduos conforme eles depuram a confusão da convivência social.
Nozick é contra o igualitarismo social de John Rawls porque, segundo ele, a filosofia da justiça como equidade depende de uma autoridade exterior – no caso, o Estado e as instituições que, segundo Uma Teoria da Justiça, garantiriam a “unidade do eu” –, para que ela seja praticada a contento. Isto já seria uma intromissão aos direitos individuais. Contudo, Nozick também acredita que deve-se chegar a algum equilíbrio na convivência entre as diversas comunidades, se passarmos a ver o Estado Mínimo não como um único ideal, mas sim como aquilo que ele chama de “arcabouço para utopia” (o termo utopia deve ser entendido aqui como sinônimo de ideal, do mesmo modo como é usado por Rawls em sua obra). Neste arcabouço, as diversas comunidades teriam de se encontrar e comunicar seus respectivos princípios, sendo que cada uma teria a sua própria utopia a ser realizada (e, mais, respeitada) nos limites estabelecidos pelo Estado Mínimo.
Assim, existem três tipos de utópicos, segundo a classificação de Nozick: (a) o imperialista, que defende a imposição de um modelo de comunidade para todos; (b) o missionário, que espera convencer todos a viverem em determinado tipo de comunidade, mas que não obriga ninguém a fazê-lo; (c) o existencialista, que espera a existência e a viabilidade de um modelo particular de comunidade, ainda este que não tenha, necessariamente, um alcance universal, para que os que assim o desejarem possam viver de acordo com ele.
Nesta visão de Nozick, os utopistas existencialistas e missionários apoiarão o arcabouço utópico do Estado Mínimo; já o imperialista não apoiará o arcabouço enquanto existirem pessoas que não concordem com ele. É desnecessário dizer que John Rawls faz parte do grupo dos utopistas imperialistas, mesmo protegido pela sua retórica suave da “teoria fraca do bem”. Por mais que ele seja simpático ao Estado Justo (dentro da sua peculiar lógica progressista), a sua incompatibilidade com a realidade concreta se deve simplesmente ao fato de que Rawls propõe, como solução para nossos problemas, não uma teoria qualquer, como alega, e sim uma narrativa perfeita que só funciona se for aplicada dentro das regras de um modelo.
É aqui que o libertarianismo de Nozick mostra a sua completa oposição ao igualitarismo de Rawls: o primeiro sabe que as explicações políticas só têm eficácia se forem vistas como modelos provisórios, uma vez que, na vida real, o caos das comunidades destrói isso no dia-a-dia. Já o segundo acredita que o seu modelo é o definitivo e explica a realidade por completo porque, afinal de contas, ele não consegue entender a tensão que há entre a estrutura do real e a articulação da virtude interior que anima o que deve ser a tal da “sociedade bem-ordenada” imaginada em seu “grande desígnio”.
6.
Sem insistir em uma “doutrina teológica ou metafísica”, Nozick mostra também a precariedade do sistema abstrato elaborado por Rawls, mas, por outro lado, não consegue ir além na sua análise quando chegamos ao tópico do que seria a ordem da “sociedade utópica realista” esboçada em Uma Teoria da Justiça – e quais são os meios para colocá-la em prática.
Isso ocorre porque tanto Nozick como Rawls não querem reconhecer, dentro do molde filosófico do qual estão inseridos, as consequências imprevisíveis oriundas do uso da força, em especial no modo como a lei é posta em prática com a coerção estatal.
Se tomarmos de empréstimo algumas reflexões de Eric Voegelin em The Nature of the Law, apesar do princípio da justiça como equidade, apesar do libertarianismo do Estado Mínimo, o fato é que qualquer lei só pode ser promulgada e efetivada por meio da imposição de uma ordem legal que é necessária por diversas razões. A primeira delas é a existência objetiva de que todos nós podemos errar, uma vez que há uma discrepância entre a verdadeira ordem, a transcendental, e a ordem empírica, a do cotidiano. Portanto, a força representada, por exemplo, pela prisão de alguém que rompeu com a harmonia social é fundamental para eliminar essa desobediência.
A segunda razão é que a própria questão do que é a verdade quando se trata da ordem de uma sociedade raramente permite uma resposta equivocada. Como vivemos em um mundo infinitamente complexo, com diversas políticas, obrigadas a lidar com um problema específico que deve estar em sintonia com o Bem Maior – e que serão implementadas por meio de uma lei –, sempre teremos um elemento de arbitrariedade na hora de tomar a decisão a favor de uma determinada perspectiva. Logo, se a sociedade quiser sobreviver, este mesmo debate não pode durar para sempre; e uma vez que a decisão foi tomada por algum representante, não se pode permitir qualquer espécie de desobediência a partir daquele momento.
Por última, mas não menos importante, a terceira razão da força ser necessária é que a própria sociedade seria supérflua se todos os homens agissem de acordo com a verdadeira ordem sem a ameaça da coerção. Porque se a natureza da lei – e, dessa maneira, da justiça e do direito – está espelhada na medida invisível da alma humana, ao mesmo tempo que temos o homem como uma pessoa racional, temos também a chance de que ele evite ser uma pessoa dotada de racionalidade. Afinal de contas, ninguém cresce plenamente desenvolvido em suas potencialidades; é necessário um tempo para que isso aconteça – e mais: é fundamental que haja um determinado tipo de educação para que tal maturidade enfim desabroche. Mas essa educação tem de saber que a ordem nasce de uma estrutura na alma que corre o risco de jamais alcançar tal feito. Daí o aspecto pedagógico da lei; ela, de certa forma, nos ajuda a forçar se queremos ser o spoudaios, o homem maduro, ou o “escravo por natureza” discorridos por Aristóteles em sua Política.
Assim, no momento de impor a ordem legal – a mesma ordem que, no sistema de Rawls, terá de praticar a justiça como equidade – fica nítida, com absoluta clareza, que a impessoalidade da lei é enraizada na impessoalidade da natureza humana, capaz de reconhecer em si mesma as possibilidades inerentes da sua propensão para a desordem. Com o reconhecimento do uso da coerção, não temos outra alternativa exceto admitir que talvez a única igualdade que exista entre nós é a pratica do Mal – e que a consequência disso é admitir a existência do governo como uma técnica científica por si mesma, obrigado a diminuir a desigualdade a qualquer custo, justamente para manter o seu poder. Isto constitui, sem dúvida, a criação indireta de uma hierarquia bem objetiva e que rompe com o princípio retórico da justiça como equidade.
Esta intrincada contradição mostra a conclusão correta do filósofo David Walsh de que, ao elaborar uma teoria da justiça, o que John Rawls acabou criando foi uma teoria da injustiça. Mas, infelizmente, apesar da sua brilhante explanação, o célebre scholar de Harvard não teve como reconhecer as suas falhas. No final do seu grande tratado, ainda insatisfeito por ter elevado a igualdade a um patamar que jamais seria admitido na estrutura do real, este Céfalo do pensamento político contemporâneo escreve que
“a perspectiva da eternidade não é uma perspectiva de um certo lugar que esteja além do mundo, nem o ponto de vista de um ser transcendente; mais precisamente, é uma certa forma de pensar e sentir que pessoas racionais podem adotar dentro do mundo. E, tendo feito isso, podem, seja qual for sua geração, reunir em um esquema único todas as perspectivas individuais e alcançar juntas os princípios reguladores que todos podem afirmar ao viver segundo eles, cada qual de seu próprio ponto de vista. A pureza de coração, caso seja possível alcançá-la, consistiria em ver as coisas com clareza e agir com graça e autocontrole da perspectiva de tal ponto de vista” (grifos nossos).
Por isso temos de entender que se, na filosofia política clássica, a medida de todas as coisas era Deus e a lei invisível da alma; se, no final do século XIX, esta mesma medida tornou o homem capaz de mudar o mundo graças às ideologias positivistas e à luta de classes inflamadas por Marx, a partir de agora, no final do século XX – e com a ajuda da obra de John Rawls –, o governo tornou-se a única medida possível para descobrir o que é justo e o que é injusto.
Nesta reviravolta existencial do que se tornou a sociedade bem-ordenada – e da qual as especulações de Uma Teoria da Justiça e Anarquia, Estado e Utopia são herdeiras –, a técnica do governo deve ser não só apenas jurídica, mas também um método econômico, sempre competente na sua exatidão e na sua eficácia. A garantia de igualdade à população acontecerá, por exemplo, graças a uma igualdade monetária que será feita mediante impostos e tributos. Não à toa que Rawls estabelece um método legal e jurídico, baseado na força retórica da lei e no feitiço da “justiça social”, para transformar indiretamente os costumes, em que o consenso social é alterado devido à suave imposição da força estatal. Em ambos os casos, o que temos é uma sutil coerção que, se não for obedecida, o infrator será punido de alguma forma, seja com multa, seja com algum serviço social que o desagrada ou até mesmo a prisão, mas que servirá como exemplo para quem não respeita a idolatria da igualdade.
No anseio desesperado de querer estender a justiça como equidade até mesmo no domínio do sub specie aeternitatis, transformando o seu “esquema único” em uma espécie de nova Torá do igualitarismo, John Rawls foi o responsável não pela criação de uma sociedade bem-ordenada, e sim por um reino do faz de conta que, na prática, é um inferno sem precedentes. Que um homem decente e um grande acadêmico como ele tenha cometido esse erro macabro, sem perceber isso, é um sintoma terrível da desordem na qual vivemos.