[Leia a quinta parte do livro]
6.
O mundo do espírito requer uma constituição interior para suportar os chacais da dúvida, pois o mistério faz parte da sua natureza e, sobretudo, da sua unidade. Além disso, o sujeito que aceita a permanência da perda deve saber que não pode negar a realidade mundana onde ele vive no seu cotidiano, senão ela pode ser transfigurada – e aqui começa o ponto perigoso da deformação da existência. A transfiguração da realidade é o momento em que uma coisa real, concreta, perde a sua espontaneidade na percepção de suas limitações, das possibilidades e impossibilidades que se apresentam na intuição captadas pelo sujeito no objeto. Como diz Raymond Abéllio, no texto “A Transfiguração Fenonemológica”:
“Confrontamo-nos aqui com um fato do qual não se pode dar conta por pura análise especulativa: isto é, a transfiguração da coisa quando conscientemente experienciada, sua transformação numa ‘supercoisa’, sua passagem de ser algo "sobre o qual se conhece" para ser algo que ‘é conhecido’. Este fato é insuficientemente apreciado, embora seja o mais notável em todo o campo da experimentação fenomenológica. Todas as dificuldades que encontramos na fenomenologia corrente e, de fato, em todas as teorias clássicas do conhecimento, nascem do fato de que consideram a dualidade consciência-conhecimento suficiente e apta para absorver a totalidade da experiência; ao passo que só a tríade conhecimento-conhecimento-ciência pode fornecer o genuíno fundamento para a fenomenologia”.
Esta experiência transcendental parte e é vivida, obviamente, do e pelo próprio sujeito cognoscente. Abéllio dá o seguinte exemplo, muito pertinente:
“Um dia, anos atrás, quando caminhava entre os vinhedos do Cantão de Vaud, olhando o Lago de Genebra, tive a mais extraordinária experiência. O declive do outro lado, o azul do lago, o violeta das montanhas da Savóia, e à distância as geleiras cintilantes do Grand Comblin – tudo isso eu tinha visto uma centena de vezes. Então eu soube que nunca tinha olhado para eles. E, no entanto, eu vivera ali por três meses.
É verdade que, desde o começo, essa paisagem tinha me afetado profundamente. Mas tinha apenas produzido em mim um vago sentimento de exaltação. Sem dúvida o ‘eu’ do filósofo é mais forte do que qualquer paisagem. A pungente sensação de beleza que experimentamos é apenas o ‘eu’ medindo a infinita distância que nos separa da beleza, e daí obtendo forças. Mas, naquele dia, repentinamente, eu soube que era eu que estava criando aquela paisagem e que sem mim ela não existiria: ‘Sou eu que vos vejo e que me vejo a ver-vos e, ao fazer isso, vos crio.’ Este grito do coração é o grito do Demiurgo ao criar o ‘seu’ mundo. Não é apenas a suspensão do ‘velho’ mundo, mas a projeção de um mundo ‘novo’. E, naquele instante, de fato, o mundo foi re-criado”.
A transformação da realidade não implica que esta última foi realmente transformada. A consciência é uma reação entre os sentidos do corpo, os da alma e os do espírito que estão dentro e fora de nós, mas quando ela inicia um processo de modificação das intuições das possibilidades de um objeto, inicia-se também um perigoso caminho que pode terminar na negação do real, criando uma alternativa, claramente dividida e que pode ter tons pseudomísticos e até religiosos. Eis aqui o início de uma perversão espiritual no qual chamamos de Gnosticismo e que influi decisivamente no mundo das ações reais – principalmente o mundo da política.
Mas o que é o Gnosticismo e onde começou? Ou melhor, a pergunta certa seria: Como começou? Por ser justamente uma manifestação do mundo do espírito, é muito incerto o modo como pode ter se iniciado; Eric Voegelin determina que as suas primeiras sementes se encontram nos escritos do profeta Isaías.
Desesperado por ver a distância que o povo de Israel colocou entre homem e Deus, Isaías tenta fazer o impossível: impor a vontade de Deus, do qual ele seria o representante, acima dos acasos da realidade. Contudo, a única pessoa que pode determinar isso é o próprio Deus – e o profeta hebreu é apenas um instrumento, o primeiro indício de que o verdadeiro político é o omphalos do mundo, mas não pode ser o dono do mundo. O ser humano participa da ordem do Ser e não a altera sob nenhuma hipótese. Ainda assim, a expressão “a fé move montanhas” pode ter uma interpretação literal quando se trata do fato de que a fé de Isaías quer saltar além da estrutura da realidade – algo que não tem como ser reformada apenas pela vontade exclusiva da fé, por mais honrosa que ela seja. Voegelin dá o exemplo no qual o rei de Judá, Acaz, entrou em guerra com a Síria, e Isaías, ao atender um chamado de Deus, vai procurá-lo, e dá o seguinte aviso:
“Então o Senhor disse a Isaías: ‘Saia, e leve seu filho Sear-Jasube. Vá encontrar-se com Acaz no final do aqueduto do açude Superior, na estrada que vai para o campo do Lavandeiro. Diga a ele: Tenha cuidado, acalme-se e não tenha medo. Que o seu coração não desanime por causa do furor destes restos de lenha fumegantes: Rezim, a Síria e o filho de Remalas” (Is 7:3-4).
E depois afirma, de forma ameaçadora:
“Se vocês não ficarem firmes na fé, com certeza não resistirão” (Is 7:9)
O que Deus está mandando Acaz fazer, por meio de Isaías, é não agir e esperar por um milagre, enquanto o exército da Síria está se preparando para um massacre. Voegelin disseca as consequências deste conselho na História da Humanidade em Israel e Revelação, ao sintetizar as ações de Isaías como exemplos de metástase da fé (metastatic faith):
“(...) A fórmula ‘Se vocês não ficarem firmes na fé, com certeza não resistirão’ implica que, se você resistir, você está firme na fé. O conselho de Isaías não se origina de uma ética da não-violência; não é um conselho calculado para perder a guerra em função de ganhar algo mais importante que a vitória terrena, mas, ao contrário, vencer a guerra por meios mais certos do que um exército. No conselho de Isaías, podemos dizer que o elemento de fé num Deus transcendente (que também está contido na compactação da magia) está diferenciado de tal forma que a prática de uma magia simpática, como na lenda de Elias, se tornou impossível; e a sensibilidade sobre a lacuna entre o plano divino e a ação humana se tornou tão aguda que toda a assistência pragmática na execução do plano é considerada um exemplo de desconfiança. E ainda assim, uma aura de magia envolve sem dúvida o conselho: isto se deve ao fato de que o próprio plano divino foi trazido ao conhecimento do homem, tanto quanto Isaías sabe que Deus quer a sobrevivência de Judá como um povo organizado na história pragmática. Com este conhecimento é dado a confiança, não na inescrutável vontade de Deus que deve ser aceita, mesmo com toda a sua amargura, quando os planos do homem não concordam com isso, mas na vontade conhecida de Deus que se conforma com as políticas de Isaías e do Povo Escolhido. Este conhecimento do plano divino lança seu feitiço paralisador na necessidade de uma ação no mundo; pois se a ação humana concreta não atingir nada do que Deus pretende fazer por si mesmo, isso pode ser considerado como um ofício desrespeitoso da parte do homem. Esta é uma sutileza da experiência além da magia no termo comum. O que observamos aqui lembra o fenômeno posterior da Gnose. Em relação à mais imediata experiência, podemos dizer: A penetração da sociedade na ordem cósmica-divina através dos cultos e dos mitos dos impérios cosmológicos se tornou, em Israel, na presença no culto do Reino de Deus nos festivais anuais; e agora se torna, nas profecias de Isaías, uma presença efetivamente pragmática na história do Povo Escolhido. O plano divino conhecido que requer para a sua incorporação na história pragmática nada além da confiança sem limites da ‘Casa de Judá’, é a ordem cósmica-divina dos impérios, numa última transformação através do meio da existência histórica de Israel.
O conflito entre a compacta experiência da ordem, em seu tipo cosmológico, com a forma histórica da existência, cria o problema de Isaías. Já explicamos que o salto no ser não é um salto fora da existência; a ordem autônoma deste mundo permanece como está, mesmo quando o Deus transcendente nos é revelado como a única fonte de ordem neste mundo, assim como do homem, da sociedade e da história. Isaías, podemos dizer, tentou o impossível: fazer do salto no ser um salto fora da existência dentro de um mundo divino transfigurado além das leis da existência mundana. A preservação do culto na ordem cósmica-divina se torna a transfiguração do mundo na história quando carregada dentro da forma histórica da existência. Para ser mais exata, esta transformação peculiar não é uma questão de necessidade, talvez inerente na lógica da experiência e dos símbolos. A transformação se deve ao um elemento de ‘conhecimento’ em relação ao plano divino. E este ‘conhecimento’ parece se ligar à revelação de Deus ao homem com as vitórias pragmáticas de Judá da mesma maneira em que a Torá Deuteronômica ligou a revelação do Sinai com a constituição de Judá. Um estilo comum de simbolização deve ser notado na Lei e nos Profetas. Por meio do ‘conhecimento’ intervencionista, esta preservação recorrente da ordem através do culto cosmológico se torna, quando entra a forma histórica da existência, uma transfiguração única do mundo de acordo com o plano divino. Um abismo se abre entre o mundo tal como ele é e o mundo tal como deve ser quando foi transfigurado.
Não existem termos técnicos para descrever o estado da alma em que a experiência dos ritmos cósmicos, tendo como meio a forma histórica, faz nascer a visão de um mundo que mudará a sua natureza, sem deixar de ser o mundo onde vivemos concretamente. Devo introduzir o termo metastasis para significar uma mudança na constituição do ser visto pelos profetas. E eu falarei de experiências metastáticas, de metástase da fé, da esperança, da vontade, da visão e da ação, e dos símbolos metastáticos que expressam esta experiência. [...]
Nesta variedade de formas simbólicas é reconhecível a substância comum da metástase da vontade em transformar a realidade através de meios escatológicos, míticos ou de fantasia historiográfica, ou pervertendo a fé em um instrumento de ação pragmática. Este componente metastático se tornou tão predominante no fenômeno complexo do profetismo que o Judaísmo tardio criou sua específica forma simbólica na literatura apocalíptica. Enquanto o declínio de Israel e Judá foi acompanhado pelas formas de profetismo, a nova era imperial do Judaísmo foi acompanhada pelo simbolismo do apocalipse. Além disso, o reconhecimento da metástase da experiência é de tamanha importância, não só para a compreensão da ordem Israelita e Judaica, como também da história da Civilização Ocidental até os nossos dias. Enquanto no desenvolvimento principal do Cristianismo, os símbolos metastáticos foram transformados nos eventos escatológicos além da história, para que a ordem do mundo voltasse a ter a sua autonomia, a continuidade de movimentos metastáticos nunca foi quebrada. Ela cobre, rivaliza e penetra massivamente o Cristianismo com a Gnose e o Marcionismo, e num punhado de heresias gnósticas; e foi absorvida no simbolismo do próprio Cristianismo através do Velho Testamento, como também através da Revelação de São João. Na Idade Média, a Igreja estava ocupada com a luta contra as heresias de compleição metastática; e com a Reforma esta corrente subterrânea voltou à superfície de novo numa enchente poderosa – primeiro, na ala esquerda dos movimentos sectários e depois no credo político secular que praticam a mesma metástase através das ações revolucionárias”.
A história é uma forma de existência sob o poder de Deus, dada por meio da Revelação, criando uma nova ordem na alma do homem, opondo-se à ordem cosmológica dos impérios egípcios e do Oriente, em que o faraó, por exemplo, era o representante de Deus na Terra, muitas vezes sendo confundido com o próprio Deus.
Com a Revelação para Moisés, o homem se torna alguém que vive com Deus a sua existência, ambos repartindo a dor e o sofrimento para depois ambos encontrarem a justa redenção. Paralelamente, na Grécia antiga, a filosofia também aparece como uma nova ordem, em oposição à do mito de Homero e Hesíodo, na qual, desta vez, o homem procura Deus usando os instrumentos da razão do espírito que se abre à ordem transcendente que ilumina a medida invisível. A diferença entre a Revelação judaica e a filosofia grega é que a primeira ainda está focalizada em uma coletividade, o povo de Israel, que, aos poucos, caminha para a individualidade dos profetas; a segunda tem como princípio o indivíduo como representante da nova forma de existência, contra a ordem de uma sociedade que não compreende a revolução que implica aceitar os pensamentos de sujeitos como Sócrates, Platão e Aristóteles. A união destas existências diferenciadas, na qual em uma Deus procura o homem e em outra o homem procura Deus, acontecerá com este fato enigmático chamado Cristianismo.
Contudo, essa síntese não contribuiu para nenhuma calma na tempestade. Aliás, o Cristianismo intensificou a luta espiritual do ser humano, com as incertezas da fé, da graça e do perdão permeando a existência humana. Nada errado nisso: o Cristianismo é a única maneira possível para um ser humano suportar a ambiguidade implacável do mundo, porque suas bases estão na constante ressurreição do espírito por meio do sacrifício que inverterá a lógica da morte que mata para a morte que não mata. Mas seu impacto na história foi tão poderoso que seria evidente, dentro do processo de ordem e desordem que se move na história, a criação da sua contraparte – o Gnosticismo.
Quem conhece onde se localiza e quais são os malefícios do Gnosticismo, sabe de um dos maiores segredos da humanidade. São três características que identificam o que seria um movimento gnóstico: (1) Sufocado pela incerteza que há na tensão entre a ordem divina e a ordem mundana, o homem se revolta contra a criação de Deus na Terra, estipulando a existência de um Demiurgo que, na verdade, foi quem teria criado o mundo e depois o abandonou, deixando o trabalho incompleto. Cabe ao ser humano, então, completá-lo, transformando-se assim no seu próprio deus com sua própria moral e seus próprios limites; (2) Como Deus não apareceu na revelação final prevista no apocalipse escatológico, cumpre o homem, sendo o seu próprio deus, a dar término na revolução que estava prevista, mas que não foi realizada. E o único meio possível para que aconteça esta revolução é por meio da política; (3) Ao estar além do Bem e do Mal (porque é o seu próprio deus), o homem pode, com a revolução, criar a sociedade que sempre imaginou, acabando com todos os males que o afligem, exclusivamente com o seu conhecimento sobre o que seria a sua verdade (daí a “Gnose” que o salvará), nunca necessitando de um suporte divino (pois Deus abandonou o mundo). Ele não se preocupa mais em compreender o mundo onde vive e sim somente em transformá-lo, com ajuda da ação política.
É claro que estes pontos precisariam ser encarnados em uma única pessoa para que eles fossem realizados. Como toda perversão do Cristianismo, o Gnosticismo também precisou de um messias. Quem criou os símbolos para esta “encarnação” foi Joaquim de Flora - e sua invenção produzirá várias consequências bastante nefastas:
“Joaquim de Flora rompeu com a concepção agostiniana da sociedade cristã ao aplicar o símbolo da Trindade ao curso da história. Em sua especulação, a história da humanidade teve três períodos, correspondentes às três pessoas da Trindade. O primeiro foi a era do Pai; com o surgimento de Cristo teve início a era do Filho. Mas esta não será a última, devendo a ela seguir-se a era do Espírito. As três eras foram caracterizadas como incrementos inteligíveis de realização espiritual. Na primeira era desdobrou-se a vida do leigo; a segunda suscitou a vida de contemplação ativa do sacerdote; a terceira traria a vida espiritual perfeita do monge. Ademais, as eras possuíam estruturas internas comparáveis e duração passível de ser calculada. Da comparação entre as estruturas, concluía-se que cada era tinha início com uma trindade de figuras proeminentes, isto é, dois precursores seguidos pelo líder da própria era; e, dos cálculos sobre a duração, inferia-se que a era do Filho terminaria no ano 1260. O líder da primeira era foi Abraão; o da segunda, Cristo; e predizia Joaquim que, por volta de 1260, apareceria o Dux e Babylone, o líder da terceira era.
Em sua escatologia trinitária, Joaquim criou o conjunto de símbolos que preside, até hoje, a auto-interpretação da sociedade política moderna.
O primeiro desses símbolos é a concepção da história como uma sequência de três eras, das quais a última é claramente o Terceiro Reino final. É possível reconhecer como variações desse símbolo a divisão da história em antiga, medieval e moderna; a teoria de Turgot e Comte acerca da seqüência das fases teológica, metafísica e científica; a dialética hegeliana dos três estágios de liberdade e realização espiritual autorrefletiva; a dialética marxista dos três estágios do comunismo primitivo, sociedade de classes e comunismo final; e, por último, o símbolo nacional-socialista do Terceiro Reino – embora este seja um caso especial, a exigir maior atenção.
O segundo símbolo é o referente ao líder. Este símbolo teve eficácia imediata no movimento dos religiosos franciscanos que viram em S. Francisco a concretização da profecia de Joaquim, cuja eficácia foi ainda reforçada pela especulação de Dante acerca do Dux da nova era espiritual. Posteriormente, o símbolo pode ser encontrado nas figuras paracléticas, os homines spirituales e os homines novi do fim da Idade Média, do Renascimento e da Reforma; pode ser vislumbrado como componente do príncipe de Maquiavel; e, no período de secularização, surgiu nos super-homens de Condorcet, Comte e Marx, até que veio dominar o panorama contemporâneo através dos líderes paracléticos dos novos reinos.
O terceiro símbolo, às vezes combinado ao segundo, é o do profeta da nova era. A fim de emprestar validade e convicção à ideia do Terceiro Reino final, é necessário presumir que o curso da história, como um todo inteligível e significativo, seja acessível ao conhecimento humano, quer através de uma revelação direta, quer através de uma gnose especulativa. Por conseguinte, o profeta gnóstico ou, nos estágios posteriores da secularização, o intelectual gnóstico torna-se um acessório da civilização moderna. O próprio Joaquim é o primeiro exemplar dessa espécie.
O quarto símbolo é o da irmandade das pessoas autônomas. A terceira era de Joaquim, devido à nova descida do espírito, transformará os homens em membros do novo reino sem a mediação sacramental da graça. Nessa era, a igreja deixará de existir porque os dons carismáticos necessários à vida perfeita chegarão aos homens sem a administração dos sacramentos. Embora Joaquim concebesse a nova era concretamente como uma ordem de monges, a ideia da comunidade dos espiritualmente perfeitos, que podem viver em conjunto sem qualquer autoridade institucional, foi formulada como uma questão de princípio. A ideia prestava-se a variações infinitas. Ela pode ser encontrada, em graus diferentes de pureza, nas seitas medievais e renascentistas, assim como nas igrejas puritanas dos santos; em sua forma secularizada, tornou-se um componente formidável no credo democrático contemporâneo; e constitui o núcleo dinâmico do misticismo marxista acerca do reino da liberdade e do gradual desaparecimento do Estado.
O Terceiro Reino nacional-socialista é um caso especial. É indiscutível que a profecia milenar de Hitler deriva da especulação de Joaquim, transmitida na Alemanha através da ala anabatista da Reforma e através do Cristianismo Joanino de Fichte, Hegel e Schelling. Não obstante, a aplicação concreta do esquema trinitário ao primeiro Reich alemão terminado em 1806, ao Reich de Bismarck encerrado em 1918 e ao Dritte Reich do movimento nacional-socialista soa falsa e provinciano, quando comparado com as especulações histórico-universais dos idealistas alemães, de Comte ou de Marx. Este toque nacionalista acidental deve-se ao fato de que o símbolo do Dritte Reich não provém do esforço especulativo de um filósofo de escol, mas sim de duvidosas transferências literárias. Os propagandistas nacionais-socialistas recolheram-no no panfleto de Moeller van de Bruck que o tinha como título. E Moeller, que não abrigava intenções nacionais-socialistas, nele vira um símbolo conveniente enquanto trabalhava na edição alemã de Dostoievski. A ideia russa da Terceira Roma caracteriza-se pela mescla de uma escatologia do reino espiritual com sua efetivação por uma sociedade política, nos moldes da idéia nacional-socialista do Dritte Reich”.
Nota-se claramente nesta longa, mas imprescindível citação que, a partir do momento que ocorre uma perversão no mundo do espírito, como é o caso do Gnosticismo, ocorre também uma perversão do mundo da política. Ambos estão conectados, como um mundo onde vários mundos estão entrelaçados – provando assim a unidade da estrutura da realidade, que se reflete na unidade da estrutura da consciência humana, entendida aqui como uma reação do corpo e da alma frente à tensão entre o campo divino e o campo mundano. Ainda assim, a encarnação destas questões em um único objeto – seja o homem ou o Estado – se ramificará em dois caminhos que marcarão os arquétipos da História – e eles se originam com ninguém menos que Platão, no Político, em que o estadista deve ser o spoudaios que determinará a restauração da ordem divina na desordem do mundo, conforme explica Eric Voegelin no terceiro volume de Ordem e História:
“Esta situação que determina a evocação de Platão de um restaurador real da ordem lembra, em muitos aspectos, aquele profetizado por Joaquim de Flora. No fim do século XII A.C., a tensão entre a ideia agostiniana do saeculum senescens e a experiência de uma ordem civilizatória crescente chegou ao um limite insuportável. A consciência de uma nova época manifestada em si mesma, em Joaquim de Flora, na anunciação de uma nova figura de líder cristão, o dux, cuja aparição inauguraria uma nova era de ordem espiritual. Contudo, o paralelo entre o rei de Platão e o dux joaquino não se estende a todos os aspectos das duas evocações. Dentro do estilo cristão de escatologia, o dux vem para inaugurar o reino final na terra. Dentro do estilo do mito da natureza a restauração de uma ideia [para Platão] não tem o caráter de uma finalidade; a ideia restaurada vai decair novamente e os ciclos vão durar indefinidamente. Além disso, o dux joaquino aparece da tensão entre uma civilização em ascensão e outra em declínio, enquanto o rei platônico surge da tensão entre um real declínio político e uma nova substância espiritual. Como consequência, a evocação joaquina encontra sua completude nos representantes do orgulho civilizatório e da perfeição imanente da sociedade, dos progressistas do século XVIII, por meio de Comte, Marx e Mill, até Lênin e Hitler; enquanto a evocação platônica encontra sua completude na crescente ordenação espiritual de um mundo em desordem, através das figuras de Alexandre, através do reinado soteriológico da era Helênica, a ordem imperial romana e através de Cristo”.
Entretanto, as figuras do dux e a da “irmandade das pessoas autônomas” se desdobraram nos símbolos do “iogue-comissário” de Antonio Gramsci (na verdade, o novo príncipe comunista, inspirado em Maquiavel) e do Estado liberal - o qual, apoiado nas bases da democracia e da igualdade, legitimado pelas teorias de soberania, se torna, aos poucos, o Leviatã de Thomas Hobbes, em que o poder estatal se confronta constantemente com os poderes da consciência individual.
Dessa forma, a afirmação de Trasímaco se transforma em algo cada vez mais assustadoramente real – além do fato de que a justiça feita na conveniência do mais forte é sustentada por outra ideia absurda, mas que faz completo sentido somente dentro do mundo autossuficiente do Leviatã: a da soberania. É só ler o que está escrito no início da nossa Constituição como primeiro princípio, que não é o de defender a dignidade da vida humana, mas a de defender a soberania da República Federal do Brasil. Bertrand De Jouvenel já dizia que qualquer teoria sobre a soberania do Estado termina no triste intento enganador de, apesar de limitar o avanço do Estado na esfera individual, expandir ainda mais o seu poder, já que este recurso jurídico é o que o torna legal. A prova disso é quando um professor como Dalmo Dallari, ao citar Miguel Reale, formula um conceito teórico de soberania que será utilizado também na prática:
“Externando com muita precisão, Miguel Reale prefere denominar a soberania de política, embora acentuando que sua superioridade sobre as demais consiste justamente na circunstância de que só ela compreende e integra os conceitos sociais, jurídico e político do poder. Formula então o conceito de soberania como o poder de organizar-se juridicamente e de fazer voltar dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência. Assim, pois, a soberania jamais é a simples expressão de um poder de fato, embora não seja integralmente submetida ao direito, encontrando seus limites na exigência de jamais contrariar os fins éticos de convivência, compreendidos dentro da noção de bem comum. Dentro desses limites, o poder soberano tem a faculdade de utilizar a coação para impor suas decisões”.
Mas qual é o território do Estado – até que ponto ele nos atinge? Falamos do território físico? E quais são os limites dos fins éticos de convivência, quando a ética surge do indivíduo e nunca da sociedade, como parece insinuar essa palavra chamada “convivência”? A indefinição mostra que qualquer conceito de soberania acaba por legitimar a expansão do Estado para além do território físico e assim entrar no território da consciência. A partir do momento em que o Poder se esgotou ao extrair tudo o que podia da natureza, chegou a vez de eliminar o seu maior inimigo – o próprio indivíduo, solitário que, contra tudo e todos, tem apenas algumas armas para enfrentar as artimanhas do Leviatã.
Com isso, qualquer um que, atualmente, entre na política, deve saber que as forças demoníacas que estão em jogo são as de ficar ao lado do seu próprio inimigo – o Estado que destruirá a sua alma para que o político não tenha mais responsabilidade sobre seus atos e que tenha apenas opiniões sobre o que seja o Bem e o Mal, nunca efetivas realizações. O político dos nossos dias é um mero fantoche dos caprichos do Estado – e a política que pratica tornou-se um jogo de traições, destituído de qualquer dignidade que somente o espírito pode lhe dar. Quando o estado de coisas atinge este ponto, corre-se o risco da desordem se transformar em algo permanente e sob a aparência de ordem. E talvez a única maneira de resolver este problema seja justamente empregando os meios extremos da força e do comando.
7.
Mas será mesmo que a ordem e a desordem que invadem tanto a alma da sociedade quanto a alma do indivíduo são contrárias entre si? Não seriam complementares? Onde começa uma e onde termina a outra? A desordem se manifesta por meio de atos de violência, destruição e corrupção – que, inevitavelmente, terminarão em morte; já a ordem é uma série de elementos que se unem para uma unidade em que se continua o movimento da vida humana. Onde estaria o seu complemento?
Esta é uma das questões mais difíceis da nossa investigação, já que envolve o problema do Mal – tópico que, aliás, é comum em qualquer discussão sobre a vida do espírito. Geralmente, a desordem é imediatamente identificada com o Mal, e a ordem com sua contraparte natural, o Bem. Contudo, ao questionarmos se a ordem e a desordem são complementares e não opostas, iremos seguir num raciocínio tortuoso que nos levará à conclusão assustadora de que o Bem e o Mal são equivalentes – algo claramente absurdo e, o mais importante, irreal.
Mas também não podemos negar que o Bem se encontra dentro do Mal porque, como já dissemos, este último é a exceção. Assim, a ordem deve ser extraída da desordem, uma vez que é apenas com a perda de alguma coisa que descobrimos o seu verdadeiro sentido – um método heterodoxo, sem dúvida, mas que funciona em todas as áreas do conhecimento humano, da medicina à economia, passando pela estratégia militar. Como afirma Eugen Rosenstock-Huessy, só sabemos o que é a paz quando temos a guerra; só sabemos o que é a riqueza quando temos a pobreza; e só sabemos o que é saúde quando experimentamos a doença.
Assim, Maquiavel exprimiu de forma exata a área cinzenta que invade a ciência da ordem, ao afirmar que, para descobrir o Bem, o político teria de trilhar o caminho do Mal. René Guénon, autor considerado como antípoda do florentino, argumenta em seus livros A Crise do Mundo Moderno e O Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos que uma época de desordem faz parte do próprio ciclo de ordem divina ao qual estamos ligados – e a nossa época seria a mais estranha de todas, o Kali-Yuga que, na mitologia vedântica, é o momento histórico em que todas as vilezas e corrupções do ser humano são aceitas como normais, indicando o fim de um mundo.
Neste caso, é o mundo moderno que está terminando e o século XXI (já em sua segunda década) seria apenas o prolongamento de um ciclo que está nos estertores. E o que virá a seguir? Não cabe a ninguém responder porque a história, afinal de contas, é um processo de participação do homem na existência, contribuindo no mistério da revelação cristã, com início em um Começo para ir à direção de um Além divino. Logo, o que nos resta a aceitar é a incerteza de nossa situação – e o quão tênue se tornou a distinção entre ordem e desordem.
O problema que surge com esta indeterminação é que, muitas vezes, a desordem pode se tornar permanente, como se fosse o simulacro de ordem – característica principal do Kali-Yuga identificado por Guénon. Como separar o verdadeiro do falso e o falso do verossímil? Este fenômeno dá origem a um outro fato, muito mais estranho, a respeito do qual poucos ousaram meditar: o Mal também tem uma espiritualidade, e ela possui uma lógica intrínseca que, se não for bem diagnosticada, pode seduzir várias pessoas justamente pelas soluções fáceis encontradas tendo em vista como devemos suportar a tensão da existência entre o campo divino e o campo humano. É algo que demonstra que o pecado, às vezes, não é feito com ignorância, mas sim com absoluta consciência de meios e fins, mesmo sabendo que será uma revolta contra a criação divina.
É o chamado Mal Lógico. Seu alimento é justamente a desordem permanente que domina nossa época. Sua lógica é esguia, sempre a se esconder pelas frestas do coração humano, e quanto mais consciência se tem de sua maldade, mais parece que ele se aprimora e desenvolve novas formas, criando uma mudança na natureza humana que não deixa nada a dever a uma conversão religiosa. A perversidade desses novos seguidores tem a aparência de um ideal ou até mesmo de uma ignorância sobre o real mas, na verdade, delimita claramente os objetos que serão os alvos de seus ataques. Platão compreendeu muito bem essa espiritualidade do Mal com uma pergunta, feita em A República: “Ou ainda não te apercebeste como a deplorável alma dos chamados perversos, mas que na verdade são espertos, tem um olhar penetrante e distingue claramente os objetos para os quais se volta, uma vez que não tem uma vista fraca, mas é forçado a estar a serviço do mal, de maneira que, quanto mais aguda for a sua visão, maior é o mal que pratica?”.
Quem pratica o Mal Lógico – e estas pessoas são muitas – sabe quais são os limites da realidade e quais são os sonhos que fazem o espírito humano se perverter em pesadelos transfiguradores. Eles abandonaram completamente qualquer contato com o divino e querem que o mundo também fique igualmente abandonado, para que possam tomar o controle de tudo. É neste ponto que se encontra a lógica implacável que uns exercem sobre os outros: por meio de ideias que tentam moldar a imperfeição do mundo, criam um outro mundo, onde se pode encontrar um pouco de paz e quase nenhum sofrimento. Esta é a última variação do pensamento gnóstico, que se reflete nas ideologias políticas modernas, como o comunismo, a social-democracia, o nazismo e o fascismo. Todas elas acreditam que o mundo foi abandonado por Deus, mas esquecem que isso aconteceu porque eles O abandonaram em primeiro lugar.
As ideologias políticas não são apenas deformações da realidade, mas denotam a escolha de uma vida de sonho que só tende a se transformar em pesadelo. Sua primeira consequência é a politização de todos os setores da vida humana – da cultura à linguagem, do conhecimento à religião. A vida do espírito é sufocada na certeza dessas pessoas de que encontrarão uma ordem que se fecha à incerteza do divino porque a fé foi substituída pela ação do homem sobre o trabalho inacabado de Deus. Entretanto, para o Mal Lógico, Deus é somente um detalhe e o livre-arbítrio é um engodo que esconde o fato de que todos somos determinados por nossas condições sociais e econômicas – mesmo que isso seja uma mentira estapafúrdia e contraditória, na qual, por algum motivo além da nossa compreensão, todos acreditam e propagam aos quatro ventos.
Essas pessoas acreditam nestas incongruências porque pensamos somente no summum malum, nunca no summum bonnum. É mais fácil colocar o Mal como raiz das ações humanas do que o Bem, uma vez que este é mais difícil de ser realizado. Sem dúvida, Aristóteles tinha toda a razão ao afirmar que o Mal era ilimitado e o Bem era limitado, mas este limite vinha justamente do dom do livre-arbítrio do ser humano. Com o Mal Lógico, há a predestinação dos fracos de espírito que pensam que serão os novos homens da graça divina ou do universo socialista; porém, tais homens não se lembram de que precisam de algo que os unam nesta jornada – e este “algo” tem um poder que ultrapassa qualquer Poder dos homens porque é muito mais sutil e sabe exatamente de onde veio e para aonde vai.
O Poder deste “algo” conhece o tempo exato para abandonar o mundo e depois reconquistá-lo. Platão descreveu este estranho processo em que ordem e desordem se mesclam no oblíquo trecho do diálogo Político:
“Quando se completou o tempo determinado de todas as coisas, e chegada a hora em que deveria produzir-se a mudança, esta raça nascida da terra desapareceu por completo, havendo cada alma completando o seu ciclo de nascimentos e voltado à terra tantas vezes como sementes quantas determinara a sua própria lei. Então o piloto do Universo, abandonando, por assim dizer, o leme, voltou a encerrar-se em seu posto de observação; e o mundo levado pela sua tendência e pelo seu destino natural, moveu-se em sentido contrário. Todos os deuses locais que assistiam a divindade suprema em seu governo, compreendendo prontamente o que se passava, abandonaram, também eles, as partes do mundo confiadas aos seus cuidados. E o mundo, subitamente mudando o sentido de seu movimento, de começo a fim, provocou, no seu próprio seio, um terremoto violento em pereceram os animais de toda a espécie. Depois, ao fim de um tempo suficiente, terminados os distúrbios e o terremoto, prosseguiu num movimento ordenado o seu curso habitual e próprio, zelando e governando, como senhor, tudo o que havia em seu seio, bem como a si próprio e relembrando, tanto quanto lhe fora possível, as instruções de seu criador e pai, de início, com maior exatidão, mas, com crescente enfraquecimento. Esta falta se deveu aos princípios corporais que entraram na sua constituição, aos caracteres herdados de sua natureza primitiva, que comportava uma grande parte de desordem antes de alcançar a ordem cósmica atual. De seu construtor é que recebeu tudo o que tem de belo e de sua constituição anterior decorrem todos os males e todas as iniquidades que se cometem no céu, e que daí passaram ao mundo, transmitindo-se aos animais. Enquanto desfrutava da assistência de seu piloto que alimentava aos seus, que viviam em seu seio, salvo raros fracassos, só produzira grandes bens; mas uma vez dele desligado, quando o mundo foi abandonado a si mesmo, nos primeiros tempos que se seguiram ainda procurou levar todas as coisas para o melhor; entretanto, com o avançar do tempo e do esquecimento, tornando-se mais poderosos os restos de sua turbulência primitiva que finalmente atingiu o seu apogeu, raros são os bens e numerosos os males que a ele se incorporam, arriscando-se à sua própria destruição e a tudo o que ele encerrara. Por esse motivo, o Deus que o organizou, compreendendo o perigo em que o mundo se encontra, e temendo que tudo se dissolva na tempestade e desapareça no caos infinito da dessemelhança, toma de novo o leme e recompondo as partes que, neste ciclo, percorrido sem guia, tombaram em dissolução e desordem, ele o ordena e restaura de maneira de torná-lo imortal e imperecível”.
É a própria existência de Deus que está em risco com a permanência da desordem – ainda mais uma desordem que parece uma ordem. Mas se a divindade de Platão abandona por um simples capricho, temos de entender que o Deus cristão faz o mesmo para punir sua maior criação – o ser humano. Por incrível que pareça, Deus sofre com nosso abandono e sofre com aqueles que tentam mostrar este seu sofrimento. Sua ira só se manifestará se a desordem chegar a um limite de romper com a ordem da alma – e ela não é um fim em si, mas apenas um meio para chegar ao um fim maior: a redenção da espécie humana. Mas o que é esta redenção? Seria a salvação pela graça, pela revelação de Cristo – a crença de que existe um reino que não é deste mundo? E como se faz para atingir esta graça? Será uma questão de desejo ou de uma escolha do próprio Deus? Quem pode responder a essas perguntas, essenciais para um estudo sério da ordem e da desordem?
O fato é que a ordem da alma e a ordem de Deus são uma única verdade, ligando-se por um fio que combina o humano e o divino. E como todo fio é frágil – mesmo que seja de ouro ou de prata – a sua ordem será de tal uma delicadeza que poucos teriam coragem de assumi-la. A partir do momento em que este fio se quebra – e ele pode se partir pelos mais variados motivos –, a ordem da alma e a ordem de Deus se separam, e chegamos ao coração da desordem que nos perturba atualmente. O princípio pelo qual Platão se guiou em As Leis – o de que a divindade é a medida de todas as coisas – não se transformou no princípio de Protágoras – a de que o homem é a medida de todas as coisas –, mas sim no princípio de que a Ideia é o motor da História e de que é possível, através do poder transformador do ser humano, criar o paraíso na Terra. A ordem da alma se fecha para a realidade transcendente e o deus que sobra é o da História – o tempo aprisionando cada um de nós numa desordem que, sutilmente, inverte os valores morais, cristalizando-se nas ideologias políticas que se transformam na nova Tora, um Novo Testamento de sermões diabólicos que destroem a unidade do real e colocam, em seu lugar, apenas os fragmentos da alucinação.
O papa João Paulo II estava absolutamente certo ao afirmar que vivemos na “cultura da morte”. Qual será o limite para a desordem permanente e para o Mal Lógico, se existir algum, como já se perguntava Aristóteles? A única maneira é a imposição violenta da ordem divina e ela só pode se dar através da ira divina – ao mesmo tempo em que o que move esta ira é o profundo amor pela Humanidade, como mostra o Apocalipse de São João. Deveria existir um mediador? Mas ele já não apareceu, na figura de Cristo? Como podemos impor o Bem, se usaremos os meios do Mal? Não se pode pagar o mal com o mal, já avisava São Paulo, muito menos com o olho por olho, dente por dente.
Um homem sábio como Platão chegou a um impasse extremo, no limite do totalitarismo, ao colocar o seu político como um restaurador da ordem divina no mundo corrompido da Grécia antiga. Seria esta a função do nosso estadista? Sem dúvida, qualquer político que deseja o bem comum de sua sociedade e se preparou a vida inteira para isso não deveria se espelhar na ordem dos homens, mas sim na ordem divina. Ainda assim, nasce um novo problema: ele não pode se esquecer da realidade onde vive, onde o Poder luta constantemente com o espírito e onde o Mal Lógico seduz os inocentes. E a autoridade do espírito deve ter o peitho, a persuasão que chama a alma por meio da linguagem divina para caminhar na abertura amorosa rumo à Verdade; ao mesmo tempo, essa mesma persuasão não veio para trazer a paz e sim a espada – e sua lâmina afiada nos lembra que a luta apenas começou.
O Poder e o espírito se unem num estranho fogo, que consome seus servos, mas este fogo é e não é deste mundo. Ele queima suas almas, seus corpos e também os conserva como se os fortalecesse para uma batalha maior, uma batalha que acontece no coração de cada um de nós. O verdadeiro político já venceu a morte para descobrir a pedra da alma que é a justiça; confrontou a lei da sociedade para defender a lei divina que encontrou dentro de sua própria ordem, ligada a de Deus; teve de usar a astúcia para não se enveredar nos meandros do Poder e nas ambiguidades do espírito; todos os dias ele nos avisa das ideias perfeitas que tentam quebrar com o mistério da existência; e a cada minuto que passa, ele tem de ter a consciência exata de que o Começo e o Além divinos existem somente na tensão que também o puxa para as delícias deste mundo. Não é uma vida fácil e qualquer movimento em falso pode colocar tudo a perder. Como se não bastasse, não pode instituir a ordem de sua alma e a ordem de Deus porque ele vive em um lugar onde todos O abandonaram, sem mais nem menos. Sua única forma é usar o Poder, mas isto pode transformá-lo num novo deus – o que seria uma catástrofe. O fogo da dúvida arde lentamente no rascunho da fé que move o verdadeiro político nesta terra desolada. Onde surgirá, finalmente, a semente fértil em que brotará a árvore da vida e da redenção? A resposta, se há alguma, será a de ouvir o vento a sussurrar na única experiência que nos resta: a da permanência da perda.
[Continua no próximo mês]