[Leia a segunda parte do livro]
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Dizem que foi um dos momentos mais impressionantes da história da música popular norte-americana. Em 1970, na Ilha de Wight, costa sul da Inglaterra, um povoado pacato repleto de iates e de aposentados da marinha britânica, um mar de seiscentas mil pessoas esperava pela atração que se seguiria à performance explosiva de Jimi Hendrix. Era a terceira edição do festival de rock que até então atraía cerca de cento e cinquenta a duzentos mil participantes – o auge foi em 1968, quando Bob Dylan voltou a se apresentar após o famoso acidente de motocicleta. Talvez em homenagem a Dylan, alguém resolveu chamar o lugar, onde aquelas seiscentas mil pessoas esperavam pela próxima atração, de “Desolation Row” – a travessa da desolação –, uma referência à faixa sombria que termina o clássico álbum Highway 61 Revisited (1966).
Ninguém esperava por aquela multidão, muito menos os organizadores do evento. Todos estavam tensos. As pessoas se aglomeravam. Bebidas e drogas eram passadas adiante sem qualquer restrição. Hendrix havia simplesmente tocado fogo no palco e na própria guitarra. Era o auge da loucura da guerra do Vietnam, o ápice do que a chamada contracultura poderia chegar em influência global.
Enquanto isso, a próxima atração simplesmente dormia. Estava em seu trailer, vestido em uma espécie de macacão que poderia servir tanto como pijama e como uniforme de um exército particular. Aliás, era esse o nome da banda que o acompanhava: O Exército. Nada mais incorreto em um momento em que o antimilitarismo era a moda da vez. Como se não bastasse, ao contrário da microfonia e da distorção de Hendrix, o set list das canções que seriam tocadas previa bandolins, coros femininos, violões, violinos e pouca percussão. Sem contar o conteúdo das letras: não haveria nenhuma referência à guerra nuclear, aos políticos corruptos de Washington e ao fim do mundo, mas, sim, a dilemas existenciais, tentativas de suicídio e declarações de amor.
Quando o acordaram, não sabia se ainda sonhava ou se já estava desperto. Talvez fosse o efeito dos quaaludes que tomara antes de tirar a soneca, talvez fosse o fato de que eram três e meia da madrugada. Acordou, olhou para Bob Johnson, o produtor que o acompanhava na turnê, pegou o seu violão e foi para o palco. Kris Kristofferson, que havia sido vaiado algumas horas antes, o olhou apreensivo; Joan Baez, que encantara o público com suas letras pacifistas, não sabia o que poderia acontecer. Ao empunhar o violão, viu as seiscentas mil pessoas à sua espera. Aproximou-se do microfone e disse: “Não estou vendo vocês. Não estou vendo ninguém. É possível que cada um acenda um fósforo? Assim posso vê-los melhor”. Lentamente, fagulhas de luz foram surgindo na multidão escura. “Isso mesmo, isso mesmo, cada um acenda seus fósforos, assim poderemos conversar melhor”, continuou a dizer, a voz meio sonambúlica, meio hipnótica. E então começou a dedilhar alguns acordes e, sem nenhum aviso, cantou pausadamente, como se quisesse que cada um ali ouvisse as vogais e as consoantes de cada verso: Like a bird on a wire/ like a drunk in a midnight choir/ I have tried in my way/ To be free [“Como um pássaro preso no arame/ como um bêbado no coral da meia-noite/ tentei, da minha maneira,/ ser livre”]. O público ficou quieto durante o resto da apresentação de duas horas e, no final, aplaudiu efusivamente.
Assim como fez na Ilha de Wight em 1970, Leonard Norman Cohen impôs elegantemente a sua liberdade ao público que o acompanhou em mais de cinquenta anos de carreira. É uma liberdade muito peculiar: não se trata de permitir o que o público queria e sim de se reinventar a cada momento, conforme as necessidades da vida, conforme os obstáculos que encontrava na jornada rumo a um pouco de unidade interior, na aceitação de que tudo passa e nada fica neste mundo. Talvez esta reinvenção tenha uma raiz única – a questão judaica da qual ele não hesitaria em satirizar, chamando a si próprio de little Jew who wrote the Bible (“o judeuzinho que escreveu a Bíblia”) –, mas é também provável que seja algo que devemos também ter como meta, quiçá como exemplo. Como um pássaro preso no arame farpado, ele tentou ser livre ao seu modo. Mas também adentrou na avalanche em que quase perdeu o que lhe era mais precioso. A sorte é que viveu o suficiente para acompanharmos sua vitória.
Poucos sabem, mas antes de Leonard Cohen cantar sobre Suzanne, as irmãs da misericórdia e embalar a nossa melancolia, ele foi considerado o James Joyce do Canadá. Não é um epíteto qualquer, principalmente para um país que já nos deu Neil Young, Joni Mitchell, David Cronenberg, Cowboy Junkies, Bernard Lonergan, Marshall McLuhan, Glenn Gould, Modris Ekstein, Feist e Saul Bellow. Nascido em 1934, Cohen começou a publicar poemas muito antes de entrar na prestigiada McGill University – o que lhe deu a fama de ser uma espécie de wunderkind literário. Apesar disso, o leitor não deve ficar muito entusiasmado com seus versos. Mesmo mostrando conhecimento técnico de rima e de versificação, quando lemos as primeiras poesias de Cohen – publicadas em 1957 com o título de Let us compare mythologies (Vamos comparar mitologias) –, precisamos admitir que ele é apenas de um bom poeta, com alguns grandes momentos, limitado em seu escopo estilístico e restrito a poucos temas.
Cohen discorre sobre as tensões entre o erotismo e a questão judaica, que convergem para um terceiro tópico, futuramente desenvolvido nos romances e nos álbuns posteriores: a corrupção das coisas terrenas. O poeta se vê em um mundo onde a precariedade e a violência dominam todos os aspectos das relações humanas; não há outra solução exceto criar suas mitologias particulares, que, por sua vez, também não dão certo. Há também o fato de ser um expatriado, um sujeito que não encontra o seu lugar porque simplesmente seu povo foi exterminado há alguns anos. Ainda assim, é a missão do poeta espalhar a Palavra, mesmo que seja no meio do deserto, especialmente se este é uma cidade repleta de prédios e de neve como Montreal.
Cohen guarda alguns trunfos na sua poesia, como se pode ver nos seguintes versos:
LOVERS
During the first pogrom they
Met behind the ruins of their homes –
Sweet merchants trading: her love
For a history-full of poems.
And at the hot ovens they
Cunningly managed a brief
Kiss before the soldier came
To knock out her golden teeth.
And in the furnace itself
As the flames flamed higher,
He tried to kiss her burning breasts
As she burned in the fire.
Later he often wondered:
Was their barter completed?
While men around him plundered
And knew he had been cheated.
(AMANTES
Foi no primeiro pogrom que eles
se encontraram, atrás das ruínas de suas casas –
doces mercadores em troca: o amor dela
por uma História repleta de poemas.
E nos fornos quentes eles
conseguiram astuciosamente
dar um breve beijo antes que o soldado
extraísse o dente dourado dela.
E dentro da fumaça,
enquanto as chamas subiam,
tentou beijar seus seios fumegantes,
enquanto ela queimava no fogo.
Depois se perguntaria:
será que o escambo foi completo?
enquanto o espancavam
e sabiam que ele fora enganado.)
É uma mistura de e.e.cummings e de Primo Levi que comove, mas também deixa o gosto de déjà-vu. Para Cohen, o erotismo, o eros – algo muito diferente do amor, representado pela palavra agape em grego – está em constante união ou conflito com a morte. E esta só ocorre em um único lugar: nos campos de concentração. Contudo, aos poucos, o jovem poeta também perceberá que ela se ramificará em outros ambientes do cotidiano moderno:
My lady was found mutilated
In a Mountain Street boarding house.
My lady was a tall slender love,
like one of Tennyson´s girls,
And you always imagined her erect on a thoroughbred
In someone´s private forest.
But there she was,
Naked on an old bed, knife slashes
Across her breasts, legs badly cut up:
Dead two days.
(“Ballad”)
(A minha dama foi encontrada mutilada
Na pensão da Rua da Montanha.
Minha dama era alta e elegante,
Como as garotas de Tennyson,
E você sempre a imaginava montada em um puro-sangue,
Em alguma floresta particular.
Mas lá estava ela,
Nua em uma cama antiga, os ferimentos de faca
Entre os seios, as pernas mal cortadas:
Morta há dois dias.)
(“Balada”)
Já podemos ouvir o eco do Cohen de canções como “Seems so long ago, Nancy” e “Famous Blue Raincoat”, mas o trecho acima também poderia ter saído das páginas macabras do Cormac McCarthy de Child of God (1974), terrível romance sobre um psicopata necrófilo. Na mitologia poética de Cohen, a violência e o sexo caminham de mãos dadas, e muito raramente consegue-se uma celebração da vida:
CELEBRATION
When you kneel below me
And in both your hands
Hold my manhood like a scepter,
When you wrap your tongue
About the amber jewel
And urge my blessing,
I understand those Roman girls
Who danced around a shaft of stone
And kissed it till the stone was warm.
Kneel, love, a thousand feet below me,
So far I can barely see your mouth and hands
Perform the ceremony,
Kneel till I topple to your back
With a groan, like those gods on the roof
That Samson pulled down.
(CELEBRAÇÃO
Quando você se ajoelha
E segura em ambas as mãos
O cetro da minha masculinidade,
Quando você enrosca sua língua
Na jóia de âmbar
E pede a minha benção,
Entendo aquelas garotas romanas
Que dançavam ao redor da fonte de pedra
E a beijavam até ela ficar quente.
Ajoelha-te, meu amor, mil pés abaixo de mim,
Até não poder ver mais tua boca e tuas mãos,
Realizar a cerimônia,
Ajoelha-te até eu alcançar tuas costas
Com um grunhido, como aqueles deuses no teto
Que Sansão ajudou a desmoronar.)
Não se pode esperar nenhuma comemoração porque, quando a morte ocorre, tudo certamente desmoronará como o templo que Sansão destruiu com as próprias mãos. Há um fatalismo no relacionamento do poeta com a mulher amada que o isola cada vez mais, numa impossibilidade de retorno ao mundo tal como conhecia, e que o aproxima do judeu errante que estava em Dachau:
For you
I will be a Dachau jew
And lie down in lime
With twisted limbs
And bloated pain
No mind can understand.
(“The Genius”)
(Por ti
Serei um judeu de Dachau
Estendido na lama
Com os membros deformados
E uma dor inchada
Que ninguém pode compreender)
(“O Gênio”)
Além de ser o judeu errante, Cohen também personificará as figuras dos profetas Ezequiel e Isaías, do patriarca Jacó e de muitos outros personagens do Velho Testamento (ele próprio dizia em entrevistas que sua família o havia informado que talvez fosse descendente direto do sacerdote Aarão). Nada disso será suficiente – nem mesmo o fato de acreditar que seus poemas são “flores para Hitler”, como afirmou em um título da sua coletânea mais célebre. A descoberta de que a perda é a única constante na trajetória terrena se torna uma experiência que poucos conseguem suportar. A avalanche já enterrou o que havia de humano no poeta. O que resta agora é encontrar os rastros na neve:
AS THE MIST LEAVES NO SCAR
As the mist leaves no scar
On the dark green hill,
So my body leaves no scar
On you, nor ever will.
When wind and hawk encounter,
What remains to keep?
So you and I encounter,
Then turn, then fall to sleep.
As many nights endure
Without a moon or star,
So will we endure
When one is gone and far.
(ASSIM COMO A NEBLINA NÃO DEIXA MARCAS
Assim como a neblina não deixa marcas
Na colina verde-escura
Meu corpo também não deixa marcas
No seu, e nunca deixará.
Quando vento e uivo se encontram,
O que sobra?
Assim é o nosso encontro,
Depois nos viramos de costas, e pegamos no sono.
Assim como há noites que ficam
Sem lua, sem estrela,
Assim ficaremos
Quando um de nós tiver partido.)
Ao expressar tal amargura, a poesia não será mais suficiente. O que Leonard Cohen precisava agora era transformar isto em drama, passar por uma versão melhor de si mesmo. Para atingir este intento, ele deveria ser um romancista.
[Continua no próximo mês]