Não te perdi a ti,/ perdi o mundo.
Ingeborg Bachman, “Uma espécie de perda”
1.
Antes da peste, a palavra que unia as diversas correntes da Nova Direita Brasileira era “liberdade”.
Para mim, tudo começou em 1999, quando um amigo, Dionisius Amêndola, indicou-me um livro com título instigante: O Jardim das Aflições, publicado quatro anos antes. O autor era um sujeito chamado Olavo de Carvalho. Já ficara impressionado com uma entrevista que ele tinha dado em 1996 à revista República. Seu humor e sua honestidade a respeito de alguns mandarins da intelectualidade foram um refresco para um jovem que, no terceiro ano na faculdade de Jornalismo da Puc-Campinas, nunca gostou do marxismo e lia de forma caótica os escritos de José Guilherme Merquior, Paulo Francis e Raymond Aron.
Antes de O Jardim, li um outro livro de Olavo, O Imbecil Coletivo, o qual julguei que era bom, apesar da falta de unidade que havia em alguns artigos. Porém, foi a obra apresentada por Dionisius que me fez repensar a minha própria vida. Com uma prosa hipnotizante e um raciocínio que amarrava as pontas aparentemente soltas de eventos vivenciados na minha adolescência – como, por exemplo, o impeachment de Fernando Collor, em 1993 –, O Jardim das Aflições me abria outras possibilidades de leitura não divulgadas na faculdade. Também introduzia a um tema que me seria muito caro: o da importância da vida interior, fundamentada não em uma participação coletiva na sociedade, e sim no cultivo de uma consciência individual.
Naqueles anos da chamada Era FHC, o Partido dos Trabalhadores ainda não chegara ao poder federal, mas já era uma unanimidade nas redações e nas universidades. Dessa maneira, o papel de Olavo para uma juventude que se sentia sufocada com aquele tipo de pensamento foi, como observou o jornalista Renan Barbosa, semelhante ao de um Monteiro Lobato nas décadas de 1930 e 1940. Olavo redescobriu autores sequer citados na imprensa – como René Guénon, Eric Voegelin, Bertrand De Jouvenel, entre os internacionais, e José Oswaldo de Meira Penna, Mario Vieira de Mello e Gustavo Corção, entre os nacionais – e confrontou diretamente os expoentes da esquerda brasileira – mais especificamente, Marilena Chauí, Leandro Konder e o falecido José Américo Motta Pessanha (o estopim para o surgimento de O Jardim das Aflições). Contudo, havia um outro tópico que me interessava: ele fazia o contraponto ao niilismo que sempre caracterizou o comportamento dos intelectuais progressistas, numa defesa encarniçada do sentido objetivo e transcendente da vida (inspirada no psiquiatra Viktor Frankl).
Comecei a participar ativamente das discussões do que seria posteriormente a Nova Direita Brasileira no fórum virtual Sapientia, criado por Olavo em sua página na Internet, no início de 2000. Ali eu conversava sobre religião, filosofia, literatura, música e outros assuntos, sem sentir-me amarrado aos slogans dos meus professores da academia. Naquela mesma época, fui, junto com Dionisius, a uma palestra que Olavo deu na cidade onde então morava com minha família, Campinas. Aconteceu no mais improvável dos lugares para alguém que fustigava o pensamento em voga: a Faculdade de Letras da Unicamp, também conhecida como IEL (Instituto dos Estudos da Linguagem). Com uma platéia de menos de trinta pessoas, e fumando sem parar seus cigarros sem filtro, de marca Gitanes, Olavo explicava pacientemente qual era a sua noção de uma elite intelectual brasileira, sempre com piadas, trocadilhos e algumas ofensas repletas de maledicência.
Só fui ter contato pessoal com Olavo em 2001, depois do atentado do 11 de setembro, ao receber o convite de Álvaro Velloso de Carvalho, então editor do site O Indivíduo, para ser um dos colaboradores da publicação. O site já era notório entre os membros do círculo íntimo de Olavo por ter sido o alvo de uma polêmica na PUC-Rio. Dois anos antes, Álvaro e dois amigos seus, Pedro Sette-Câmara e Sergio Di Biasi, foram vítimas de linchamento e de acusações injustas de racismo por terem lançado, em uma versão em papel, feita com recursos mínimos, um texto cujo tema era a polêmica em torno da Semana da Consciência Negra. O artigo foi escrito por Pedro com uma verve que depois seria chamada de “politicamente incorreta” pelos jornais. Na verdade, ele apenas expunha a hipocrisia de um problema que deveria ser tratado sem recorrer a manobras políticas ou ideológicas para forçar uma atitude que não respeitava o negro como indivíduo.
Olavo foi um dos poucos intelectuais com relevância na imprensa que defendeu os três rapazes (o outro foi Carlos Heitor Cony). Participou de um programa de debates na GloboNews, comandado por Pedro Bial, e se opôs a outras personalidades que simplesmente resolveram ofender os garotos como se fossem membros da Ku Klux Klan. O tempo passou, o polêmico jornal universitário se transformou em um site com algum sucesso de visitas na internet – e Olavo teve o reconhecimento na própria mídia, com colunas em jornais como O Globo, Zero Hora, Jornal da Tarde, e nas revistas Época, Bravo! e República.
Por isso, ao receber a proposta de Álvaro para escrever em O Indivíduo, depois de ter despejado alguns raciocínios no fórum Sapientia, fiquei muito feliz. Isso me possibilitou conhecer outras pessoas que frequentavam esse meio, entre elas a própria filha de Olavo, Maria Inês. Por uma dessas ironias do destino, eu não sabia que ela namorava o meu vizinho, Pablo Corbett, que morava há uma quadra abaixo da minha casa. Os dois sempre foram muito gentis comigo (tanto até que sou amigo de Pablo até hoje), e pouco a pouco tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o próprio Álvaro, o lendário Pedro Sette Câmara e outros, como, por exemplo, a turma do Digestivo Cultural, editado por Júlio Daio Borges, e que tinha entre seus colunistas o escritor Alexandre Soares Silva, o roteirista Fabio Danesi Rossi e o enigmático Paulo Salles.
Mas, adianto-me. Tudo isso aconteceria no final de 2001; antes, foi nessa época que tive meu segundo encontro pessoal com Olavo de Carvalho. Por causa de um imbróglio criado pelo PT em Campinas – que me envolveu injustamente na investigação do homicídio do prefeito da cidade, Antonio da Costa Santos –, uma amiga em comum conseguiu que Olavo ouvisse a minha história em uma das suas famosas aulas que aconteciam no espaço do que seria conhecido depois como É Realizações, comandado por Edson Filho e localizado no bairro paulistano da Vila Mariana. Foi ali também que conheci Inês e Pablo. De qualquer forma, Olavo compadeceu-se da minha situação e logo passou a defender a minha família em textos para as suas colunas nos jornais Zero Hora e Jornal da Tarde, e também para a revista Época. Isso fez a situação reverter-se, e o PT desistiu da perseguição política contra mim.1
Contudo, nesse meio tempo, ocorreu um evento insólito. Em novembro de 2001, enquanto estava com alguns amigos, minha mãe me ligou desesperada no celular porque recebera um e-mail, com um logotipo forjado da Agência Reuters, informando que eu teria sido assassinado nas proximidades de um shopping famoso em Campinas, com um tiro no peito. O homicida seria ninguém menos que Olavo de Carvalho. Enquanto minha família via o assunto com seriedade, eu o achava divertido. Afinal de contas, estava vivo, e sequer tinha visto o autor de O Imbecil Coletivo naqueles dias. Mas, durante uma conversa ao telefone com Olavo (que também tirou sarro da situação, com aquele seu humor característico), ele sugeriu para passar, junto com Maria Inês e Pablo, uma semana na casa deles em Petrópolis, para acalmar os ânimos dos meus pais.
Foi um período muito agradável. Durante essa breve temporada, fiquei hospedado com meus amigos, que moravam em um anexo ao casarão onde morava Olavo, localizado no topo de um morro, e, portanto, pouco o via no dia-a-dia. Quem fazia tudo andar ali nos conformes, praticamente sozinha, era a esposa dele, Roxane, junto com os dois filhos do casamento, Leilah e Pedro, e uma moça que fazia as vezes de assistente, Josiane. Um dia, Olavo decidiu precisava ir à cidade do Rio de Janeiro para resolver alguns problemas e também para prestigiar o lançamento do romance Brás, Quincas & Cia., do escritor Antônio Fernando Borges, na livraria Argumento, no Leblon. Alugou uma Kia Besta, em que coube toda a sua família, além de mim, Pablo e Maria Inês – e assim fomos para um passeio na Cidade Maravilhosa.
Quando saía de casa, Olavo fazia questão de estar sempre acompanhado de dois itens essenciais na sua indumentária social: cigarros e livros. Os primeiros já eram uma marca característica das suas aulas como professor, a serem tragados em uma velocidade impressionante, conforme o seu raciocínio se desenrolava; e os segundos eram companheiros inseparáveis, divididos em três grupos: o da filosofia, o da religião e o da literatura. Naquele dia da viagem de Petrópolis para o Rio, Olavo levava um exemplar de alguma parte gigantesca da História das Ideias Políticas, de Eric Voegelin, um tomo médio do filósofo Eugen Rosenstock-Huessy, e um pequeno volume de histórias de Raymond Chandler, que ele alegava ser um dos maiores estilistas da língua inglesa, perito em descrever cenas de luta. No trajeto para a capital carioca, enquanto todos conversavam alegremente na traseira do veículo, Olavo ficou sentado no assento do passageiro, absorto em seus pensamentos. Fumava com rapidez seus cigarros, alternando entre uma página de Voegelin, um parágrafo de Rosenstock-Huessy e uma descrição de Chandler, como se fossem partes de um único livro.
Quando chegamos ao Rio, fomos direto para a região da Cinelândia, onde Olavo solucionaria os problemas burocráticos. Seria também ali que iríamos almoçar. Era um dia quente, com o sol carioca a queimar nossos braços, o calor sufocante a nos cobrir o rosto, acentuado ainda mais pela presença de inúmeras pessoas que caminhavam para lá e para cá no centro da cidade. Depois que Olavo voltou da repartição pública onde estava, vi uma cena que me marcou até hoje. Um mendigo se aproximou dele e pediu-lhe uma esmola. Sem esboçar uma recusa, Olavo sacou do seu bolso um grosso maço de dinheiro em espécie e deu ao pedinte uma nota de cem reais – o que, naquele distante ano de 2001, era considerado uma pequena fortuna. Todo feliz, o pobre diabo sorriu como se aquilo fosse um milagre.
Logo depois, estávamos no restaurante Bar Brasil, localizado na Avenida Mem de Sá. Os ventiladores antigos do local não amenizavam o calor, e a cara dos garçons não era muito convidativa (eles eram reconhecidos pelo seu “atendimento à moda antiga”, seja lá o que for isso). Mas todos da família de Olavo afirmavam que ali a comida era muito boa, apesar de brincarem que ele só os levava em lugares onde tinha “o rastro de mijo de alguém”. E, de fato, o cardápio era excelente, em especial os bolinhos de bacalhau, uma das especialidades da casa. Fiquei sentado ao lado de Olavo, e Maria Inês e Pablo estavam à minha frente; o resto dos parentes ficou no outro lado da mesa. Aproveitei a chance e resolvi ter uma aula particular com o homem. Perguntei-lhe sobre o autor que também lia na época, Voegelin, cuja obra Olavo levou para acompanhá-lo na viagem ao Rio. Como um neófito deslumbrado, eu ouvi, durante aproximadamente duas horas, Olavo discorrer sobre o opus inteiro do filósofo de Colônia, desde as investigações sobre a ordem e a história, as meditações sobre as ideologias políticas, as conclusões perturbadoras sobre o gnosticismo na história moderna, passando pelo impacto da teoria da consciência na filosofia contemporânea, a abertura e o fechamento da alma em momentos de transcendência, a natureza da filosofia em si, a questão do Brasil e o erro macabro do PT, até chegar ao desejo do próprio Olavo de escrever um livro que explicaria a história da identidade brasileira por meio da literatura, a corrupção moral das universidades, o relacionamento entre mestres e discípulos, e o modo como ele via a sua própria filosofia na situação mundial – tudo isso em um único vórtice, em meio a baforadas de cigarro, sem nenhuma preocupação com a comida que era servida à mesa, os óculos de lentes grossas sempre esfumaçados e emoldurando as expressões faciais de Olavo como se ele estivesse pensando sem parar sobre a máquina do mundo descrita no poema de Drummond. Enquanto aquilo acontecia diante dos meus olhos, percebia também que os garçons do Bar Brasil olhavam feio para a nossa mesa – e eu não sabia o motivo. Achei que seria o tal do “atendimento à moda antiga”. Depois de mais alguns cigarros, e todos estarmos satisfeitos com o almoço, Olavo pagou a conta, novamente com algumas notas retiradas do seu parrudo maço de dinheiro. Quando me levantei e me dirigi à saída do restaurante, junto com o resto do grupo, vi que os garçons foram rapidamente para a nossa mesa. Olhei para atrás e então percebi a razão do ódio em seus olhares. Embaixo das cadeiras, em especial naquela onde Olavo estava sentado, havia uma montanha de bitucas de cigarro no chão, todas fumadas pela metade e jogadas sem nenhuma consideração por quem ocuparia aquele mesmo lugar.
2.
Após a estadia em Petrópolis, reencontrei-me pessoalmente, pela última vez, com Olavo em 2004, quando eu já morava em São Paulo e trabalhava como vendedor na Livraria Cultura, e ele iria se mudar definitivamente para os Estados Unidos para ser o correspondente brasileiro do jornal Diário do Comércio. Em parte por causa das suas opiniões controversas, Olavo brigou com todos os seus chefes de redação nas publicações onde tinha suas colunas e passou a ser considerado um pária na grande imprensa. Isso pouco me importava na época pois eu já conhecia um outro sujeito que se tornou uma espécie de antídoto aos ensinamentos do polemista de O Imbecil Coletivo: o poeta Bruno Tolentino.
Descobri a obra de Tolentino no mesmo período em que era apresentado a uma direita jovem e incipiente, mas que jamais pensou ter alguma chance na imprensa ou na universidade. Afinal de contas, éramos os verdadeiros outsiders, isolados de todos, excluídos de tudo aquilo que considerávamos ser falso. No início de 2001, antes de começar a escrever no site O Indivíduo, fui ver uma palestra do autor de As Horas de Katharina na Academia Campinense de Letras. Ali, no meio de um público de apenas dez pessoas, percebi que o poeta tinha algo que Olavo não possuía: uma sensibilidade realmente sofisticada, na qual ele nos apresentava a outro rol de escritores, do inglês Geoffrey Hill ao francês Yves Bonnefoy, sem deixar de lado leituras inusitadas dos nossos Manuel Bandeira e Jorge de Lima.
Apesar de Olavo e Tolentino terem sido amigos inseparáveis entre os anos 1994 e 1998, o segundo já tinha se distanciado do primeiro há algum tempo quando o conheci. Foi uma época de colaboração entre os dois. Se Olavo tinha conquistado a sua cota de notoriedade com suas brigas nos suplementos culturais, Tolentino provocou um rebuliço na mídia ao dar uma entrevista nas Páginas Amarelas da revista Veja, em 1996, na qual afirmou que Caetano Veloso e Chico Buarque eram letristas medíocres. Segundo ele, esses dois jamais poderiam ser comparados aos grandes poetas modernos da língua portuguesa, como Drummond, João Cabral e Fernando Pessoa – algo que era moda nos cursos e testes de vestibular no final da década de 1990.
Olavo defendeu Tolentino das acusações de ser um oportunista vaidoso e mitômano (o que de fato era), e ambos se ajudaram em suas respectivas obras. Enquanto Tolentino incentivou Olavo a terminar O Jardim das Aflições, este último lia as provas da próxima polêmica que o poeta preparava, o panfleto Os Sapos de Ontem (1995), desta vez dirigido contra o concretismo paulistano comandado pelos irmãos Campos e por Décio Pignatari. Apesar das aparentes semelhanças entre os dois, havia uma diferença brutal na visão de mundo de Tolentino em relação à de Olavo: ele respeitava, mesmo com suas falhas, o método estabelecido pelas universidades.
E foi por esse motivo que me aproximei de Tolentino. Apesar do inegável talento de Olavo, eu sentia que faltava algo naquela filosofia tão idiossincrática. Em uma das nossas inúmeras conversas, ocorridas entre 2004 até o ano da sua morte, em 2007, Tolentino me explicava que uma das características principais da pessoa que vivia naquilo que ele chamava de “o mundo como Ideia” era a ilusão reiterada de que o autodidatismo – uma das virtudes que Olavo reforçava aos seus alunos, já que ele dizia que a vida universitária não servia para nada – seria a solução para escapar do ambiente cultural brasileiro. “O erro do Aiatolavo [era assim que Tolentino o chamava] é achar que ele é a única fonte de todo o debate intelectual. Por pior que seja a universidade, ela lhe dá uma chance de você praticar o contraditório, de provar o seu ponto usando de uma linha lógica de raciocínio, sem saltos. Quem segue o modo de pensar do Olavo, só tem uma maneira de refletir: a que vai rumo à loucura”, ele me disse uma vez.
Segui o conselho de Tolentino e fui fazer mestrado em alguma universidade. Em 2006, procurei quem poderia ser o meu orientador numa vida acadêmica. Encontrei essa pessoa no professor Luiz Felipe Pondé. Ele ainda não era colunista da Folha de São Paulo, muito menos o intelectual superstar de programas de entrevistas e de palestras corporativas. Era um pacato intelectual que ensinava Filosofia da Religião na PUC-São Paulo, especialista em Pascal e Dostoiévski, com excelentes livros sobre eles.
Pondé frequentava muito a Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, onde eu trabalhava como vendedor. Um dia, ele viu uma exposição de livros conservadores criada ali pela equipe de vendas (comandada por Dionisius, o mesmo amigo que me apresentou O Jardim das Aflições), e ficou interessado em vários autores exibidos, entre eles Edmund Burke, Michael Oakeshott, Leo Strauss, Russell Kirk e Roger Scruton. Todos esses nomes me foram apresentados seja por Olavo, seja por Tolentino, e eles formavam, de modo bem heterogêneo, aquilo que seria depois conhecido no Brasil como a “mentalidade conservadora”.
Alguns meses depois, em 2007, numa entrevista dada ao jornalista Rafael Cariello para a Folha, Pondé explicou quais seriam as diversas correntes desse pensamento. Era uma época em que a mídia começou a se interessar por esse tipo de perspectiva, principalmente por causa do surgimento dos blogs. Assim, vimos matérias jornalísticas serem publicadas, como, por exemplo, sobre o lançamento da antologia do portal Wunderblogs, da Editora Barracuda, em 2005. Entre seus autores, estava a maioria da turma do Digestivo Cultural, além de outros que orgulhosamente se afirmavam como “oposição à esquerda” (por coincidência, a noite de autógrafos do livro ocorreu na mesma Livraria Cultura onde eu trabalhava). Havia também algumas revistas que iam pelo mesmo caminho, como a Bravo! e a República, dirigidas por Luiz Felipe D’Ávila no final dos anos 1990, e que, junto com os jornalistas Wagner Carelli e Reinaldo Azevedo, ousavam colocar como seus colunistas justamente os dois sujeitos mais odiados daqueles tempos: Olavo de Carvalho e Bruno Tolentino.
Contudo, Pondé se apresentava uma terceira possibilidade. Ao contrário de Olavo e Tolentino, ele não era afeito somente à polêmica. Tinha a exata noção de que a liberdade de consciência era muito importante, mas sempre a sustentava por meio da técnica acadêmica, provando os seus pontos de vista sem recorrer a nenhuma ofensa pessoal. Foi com esse propósito que, junto com alguns amigos, e inspirado pela presença de um Tolentino dizimado pela AIDS que o levara à morte, criei uma revista cultural chamada Dicta&Contradicta.
Junto com o Departamento de Humanidades que montei para o Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS), a Dicta foi o projeto no qual, se não foi um movimento político em si, fez o possível para apresentar um outro tipo de pensamento que não fosse ligado nem aos extremos da direita defendida por Olavo, muito menos aos extremos da esquerda que, naqueles anos, se regozijava nas vitórias do governo Lula. Em ambos os empreendimentos, conseguiu-se estabelecer uma visão pluralista do que seria uma linhagem conservadora a ser aplicada no ambiente brasileiro. Nesse sentido, a minha amizade com João Pereira Coutinho, o cientista político português que nos encantava com suas colunas na Folha, foi fundamental para estabelecer de uma vez quais seriam alguns princípios meus – e que foram incorporados tanto na revista como na empreitada educacional.
O primeiro deles é que o conservadorismo não seria um pensamento sistemático, muito menos um dogma. O que João defendia era uma disposição conservadora, que oscilava entre o ceticismo sobre as engrenagens do mundo e o reconhecimento de uma tradição histórica. O segundo princípio é que o conservador sabia que a natureza humana era moldada por uma política da imperfeição (segundo o filósofo inglês Anthony Quinton). Isso significava que, antes de tudo, quem afirmava ter alguma espécie de certeza em nome do conservadorismo era somente um reacionário, um sujeito impossível dialogar em busca de uma melodia em comum, pois ele não suspeitava de qualquer forma de poder, em especial àquele que vinha de uma figura do Estado.
Tudo isso foi explicado em minúcias pelo próprio João em um curso que ele lecionou no IICS, no final de 2008, intitulado “A Literatura da Política”, em que me mostrava a superioridade de um Joseph Conrad ou de um Shakespeare para explicar as sutilezas do mundo político, numa espécie de aristocracia liberal que era mais próxima de Tocqueville do que propriamente de William F. Buckley, o notório polemista dos conservadores americanos. O primeiro número da Dicta já tinha sido publicado e colhíamos o sucesso do seu lançamento, com reportagens e entrevistas nos grandes jornais do país, como a Folha e o Estado de São Paulo. Talvez a sua importância pode ser verificada pela influência que ela exerceu, por exemplo, na revista Veja, que divulgou autores estrangeiros lançados pela Dicta – e os quais seriam depois consagrados pelo grande público, como Roger Scruton e Theodore Dalrymple (que veio ao Brasil a convite exclusivo nosso). É inegável que ela foi a pioneira em apresentar os primeiros trabalhos de pessoas que fariam sucesso na Nova Direita Brasileira – como o jornalista Bruno Garschagen, o crítico literário Rodrigo Gurgel, o professor de filosofia Francisco Razzo, o romancista Rodrigo Duarte Garcia e o economista Joel Pinheiro da Fonseca.
A Dicta também dialogava com alguns nomes célebres da intelligentsia. Entre eles, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, o ex-diretor do Banco Central Gustavo Franco, o maestro Roberto Minczuk – sem deixar de lado, é claro, Olavo de Carvalho, já em autoexílio na América e desafiando todo mundo com seus impropérios no programa TrueOutspeak, veiculado como se fosse uma rádio clandestina na internet. Apesar de pretender ser uma revista que promoveria a alta cultura, a Dicta não se esqueceu de observar certos fenômenos que eram malvistos pela maioria da imprensa. Um dos casos célebres foi o lançamento de Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro, em 2010, continuação do polêmico filme lançado em 2007, ambos dirigidos por José Padilha e escritos por Bráulio Mantovani. Esses dois realizadores – em especial, Bráulio – foram muito gentis conosco, e participaram de um evento nosso no qual houve um debate com eles, mediado pelo escritor Eduardo Giannetti da Fonseca, com um público de mais de duzentas pessoas, e o qual se provava ali que, pouco a pouco, apesar de todas as brutalidades sistêmicas dramatizadas na película, surgia um novo Brasil.
3.
Ou assim me parecia. De qualquer maneira, a publicação conseguiu furar um bloqueio intelectual que, até então, somente Olavo, Tolentino, a equipe da Bravo! e República, a turma dos Wunderblogs, João Pereira Coutinho e Luiz Felipe Pondé conseguiram realizar. Mesmo assim, a esquerda se mostrava empedernida na crença de ser a dona da verdade no debate público. Uma das provas que tive desse comportamento foi em 2011, quando compareci a uma reunião com a editora-chefe da revista Cult, que adorava colocar na capa, de três em três números, alguma declaração de Marilena Chauí. Ao ouvir uma proposta minha de escrever um texto sobre violência política que incluiria uma referência a Leo Strauss (erroneamente classificado como “neo-conservador”), ela me disse, sem hesitar, que seu periódico “tinha orgulho de ser de esquerda e que, portanto, vetaria ali qualquer menção a um pensamento de direita”.
A partir desse ano, surgiu, com uma velocidade impressionante, aquilo que depois seria conhecido de fato como a Nova Direita Brasileira. Em 2012, a Dicta&Contradicta acabara por causa de discordâncias internas entre seus fundadores; o Departamento de Humanidades do IICS havia fechado as portas porque a cúpula do instituto não acreditava mais no projeto a ser desenvolvido; e os membros dos Wunderblogs estavam todos dispersos na vastidão da internet, especialmente por causa do sucesso das redes sociais, a começar pelo Twitter e pelo Orkut, e depois pela mania que se tornou o Facebook. Essa descentralização do conhecimento, deixando de lado a grande mídia e boa parte do mercado editorial, possibilitou o reconhecimento de que havia um enorme público que pedia por mais produtos voltados à direita. Quem percebeu isso como poucos foi o editor Carlos Andreazza, que, ao coordenar o setor de não-ficção da Editora Record, reparou numa nova onda de informação a se manifestar nas frestas da sociedade. Era algo que já tinha sido previsto pelo catálogo de editoras de menor porte, como É Realizações (já rompida com Olavo) e Vide Editorial, com lançamentos dirigidos a quem estivesse interessado no pensamento conservador, e por revistas de circulação nacional, como a Veja, que colocou Reinaldo Azevedo – notório por apelidar a militância petista de “petralha” – como a estrela do seu site de notícias, transformando-se em um fenômeno jornalístico.
Contudo, Andreazza foi o mais ousado de todos, porque fez o que as concorrentes temiam praticar na divulgação de seus produtos. Em 2013, ele usou e abusou da propaganda nas redes sociais, aproveitando-se de uma teia de contatos – formada por influenciadores como Alexandre Borges, Francisco Razzo, Gustavo Nogy, Flávio Morgenstern, Filipe G. Martins, entre outros – para lançar a coletânea O Mínimo Que Você Precisa Para Não Ser Um Idiota, uma reunião de textos de ninguém menos que Olavo de Carvalho, organizada por outra estrela da internet, Felipe Moura Brasil.
Naquele ano, o homem que escreveu O Jardim das Aflições era outro. Apesar de ter criado um curso on line de filosofia, com a excessiva duração de cinco anos (mais do que uma disciplina universitária de Humanas), ele não se preocupava mais com a “abertura da alma ao transcendente”. Seu vocabulário, além de ser chulo, era dominado por slogans, como “guerra cultural”, “desonestidade intelectual”, “senso de proporções”, “comunista” e – o preferido dele – “analfabeto funcional”, um indício de que, lentamente, ele deixara de ser um conservador e se revelava um reacionário. De qualquer modo, o livro editado por Andreazza foi um sucesso surpreendente – e extraordinário: em menos de dois meses, já tinha alcançado 50 mil exemplares vendidos.
De repente, aconteceu o improvável para um escritor com pretensões de restaurar a alta cultura: tornou-se uma celebridade. Em 2014, quando o Brasil já sofria com os abalos das revoltas de junho e a população se mostrava insatisfeita com os rumos do governo de Dilma Rousseff, os ensinamentos de Olavo contidos no best-seller se transformaram em uma epidemia e, logo nos primeiros protestos de rua a favor do impeachment da então presidente da República, algumas pessoas passaram a usar camisetas ou mostrar cartazes com a seguinte frase: “Olavo tem razão”. Para elas, um sujeito que morava nos EUA sabia mais do que qualquer brasileiro sobre o que realmente acontecia no país, e a esquerda não fazia muito esforço de demonstrar que ele pudesse estar errado. Afinal, em O Jardim das Aflições, Olavo afirmava peremptoriamente que uma elite intelectual corrompida era apenas o início para a corrupção de um governo.
Essa vidência foi comprovada, aos olhos dos descontentes, com o início da Operação Lava-Jato, sob o comando do juiz Sergio Moro, e que expôs o chamado “Petrolão” que sustentou em parte os treze anos do governo petista. Ainda em 2014, um outro fato aumentou ainda mais a popularidade de Olavo: os hangouts que ele realizava com o cantor e compositor Lobão, recém-converso à tradição conservadora, e que também foi o responsável por unir alguns analistas de direita que antes tinham divergências com o pugilista do TrueOutspeak, como, por exemplo, Rodrigo Constantino – o autor de Esquerda Caviar, outro best-seller da época, também publicado pela Record – e Luiz Felipe Pondé, que já não era o erudito meticuloso dos tempos do meu mestrado e que se metamorfoseou em mais um polemista.
Enquanto Olavo usou da fama de Lobão para crescer exponencialmente o seu número de seguidores na página do Facebook, vinha à luz um outro braço da Nova Direita, já antecipado nos anos 1990 pelo grupo de articulistas da primeira fase de O Indivíduo. Era a mistura entre liberalismo e libertarianismo, promovida agora principalmente pelo Instituto Mises Brasil, encabeçado pelo empresário Helio Beltrão – e que influenciaria a criação de grupos políticos como o Partido Novo e o Movimento Brasil Livre (MBL). Moldada pelas obras dos economistas Friedrich von Hayek, Ludwig von Mises e Murray Rothbard, além do cientista político Hans Hermann Hoppe – a chamada “escola austríaca” –, essa vertente de um movimento heterogêneo e fragmentado defenderia a liberdade individual por meio de dois pilares: a propriedade privada e a existência do Estado mínimo, justamente o oposto do que apregoava o PT. Além disso, competia com Olavo no monopólio de cartazes nos protestos de rua com uma outra frase de comando igualmente marcante: “Mais Mises, menos Marx”.
No centro disso tudo, entre 2015 e 2016, Andreazza continuou a lançar outros livros com a mesma temática e que tiveram enorme repercussão de vendas (apesar de serem solenemente ignorados pela imprensa): Pare de Acreditar no Governo, de Bruno Garschagen, Por trás da máscara, de Flávio Morgenstern, A Corrupção da Inteligência, de Flávio Gordon, e A Imaginação Totalitária, de Francisco Razzo. Este último nome foi também um dos primeiros a romper publicamente com Olavo de Carvalho, mostrando como ele tinha um componente autoritário entre seus alunos e admiradores, a exigir nada mais nada menos que a submissão imediata.
Quanto a mim, já casado e com um doutorado em Filosofia Política feito na Universidade de São Paulo (ironia das ironias), tentava sobreviver com artigos e projetos de consultoria, além de escrever um livro que também seria editado por Carlos Andreazza – A Poeira da Glória (aliás, obra odiada com todas as forças por Olavo). Fui convidado para dar aulas sobre “Democracia e Escola Austríaca” no curso de pós-graduação do Instituto Mises, e na minha primeira turma havia algumas celebridades da Nova Direita, como o pastor e escritor Yago Martins, e um deputado federal por São Paulo que causava frisson entre as (poucas) alunas da disciplina – um rapaz chamado Eduardo Bolsonaro.
Não era por menos: já naquele final de 2016, o sobrenome dele estava associado ao do seu pai, o controverso capitão Jair Messias, então candidato a morar no Palácio do Planalto, numa trajetória a qual sintetizou politicamente todo o descontentamento de uma parte da população brasileira. O status quo midiático e político também estava seriamente abalado com as vitórias surpreendentes do americano Donald Trump para a Casa Branca e do referendo popular que aprovava a saída da Inglaterra da União Europeia, o Brexit. Nesse meio tempo, surgiu o oportunismo tático de Olavo de Carvalho que, depois de ter flertado com Lula, Ciro Gomes, Aécio Neves e até mesmo a desconhecida Denise Abreu nas disputas eleitorais dos últimos vinte anos, encontrou seu príncipe encantado no pai de Eduardo, criando assim um monstro híbrido que destruiria de vez a Nova Direita: o bolsolavismo.
Como já expliquei em meu livro A Tirania dos Especialistas (2019), esse monstro subterrâneo se caracteriza principalmente por ser uma forma peculiar de anti-intelectualismo. Sua maior pretensão é a de alterar o que reconhecemos como o ser humano, em especial o brasileiro, modificando o que sempre se soube da sua história e da sua cultura (apesar das suas falhas intrínsecas), em um discurso politizado que, mesmo embalado com uma retórica filosófica ou religiosa, resolveria todos os problemas estruturais da sociedade brasileira com ações extremas e radicais. Dessa forma, a elite intelectual criada por Olavo seria reunida entre seus membros por meio de uma devoção peculiar ao redor do seu professor, que lhes daria a certeza de que são tocados por uma iluminação celestial – e, a partir dela, entenderiam que, como diria Václav Havel, o centro do poder é igual ao centro da verdade.
Com isso, a intelligentsia do país, desintegrada pela polarização entre a direita e a esquerda, passou a ter uma expectativa irracional de que somente um “líder providencial” realizaria a integração plena entre o Estado e o resto da sociedade. Na época posterior à Revolução de 1930, esse alguém foi Getúlio Vargas; nas décadas de 1990-2000, foram as figuras de Fernando Henrique Cardoso e Lula. Naqueles anos, antes e depois de 2018, foi Jair Messias Bolsonaro.
Nessas condições culturais, não foi à toa que o liberalismo tupiniquim seria inevitavelmente atraído para esse feitiço. Afinal, ele também se alimentava daquilo que Lionel Trilling chamava de “imaginação liberal”, uma perspectiva que vive sobretudo da “negação das emoções” e que, por isso, tenta simplificar e organizar o fato de que “o mundo é um lugar complexo, inesperado e terrível”, impossível de ser “sempre entendido pela mente humana da mesma maneira que ela é usada em nossas tarefas cotidianas”. Enfim: um terreno fértil para se render a um projeto de poder que se baseia no anti-intelectualismo, na falsa aparência – e na condução exemplar de um comandante que oriente esse ser abstrato chamado “mercado”.
Isso foi simbolizado do lado Instituto Mises, quando este passou a apoiar um banqueiro relativamente obscuro do grande público e que se vendia como um ministro da Economia inovador, que guiaria o novo “líder providencial” na parte financeira (enquanto Olavo faria o mesmo serviço nas áreas da educação e da cultura): Paulo Guedes. O resultado desse caldeirão foi que, dois anos depois, Jair Bolsonaro venceria as eleições presidenciais com 57 milhões de votos, contra um PT, que, combalido por causa da prisão do ex-presidente Lula feita pela Lava-Jato, pôs na corrida o professor Fernando Haddad.
Porém, ainda estamos na minha aula sobre a democracia segundo a escola austríaca – e, naquela época, ninguém suspeitava como seria essa vitória. Assim, sem dar nenhuma amostra de arrogância, Eduardo Bolsonaro foi um aluno educado durante as aulas que ministrei, mas eu tinha dúvidas se ele prestou atenção ao que era dito (mesmo assim, seu trabalho final no meu curso foi um bom paper sobre - ironia suprema - “o princípio da tolerância” em Karl Popper).
Contudo, vi que aconteceu o contrário, depois de eu explicar em detalhes o argumento central do livro Democracia: O Deus que falhou, clássico de Hans Hermann Hoppe e uma das bíblias do libertarianismo brasileiro. Foi quando resolvi mostrar algumas contradições do pensador (apelidado entre seus pares de “Dr. Fantástico”, em homenagem ao personagem-título do filme de Stanley Kubrick), especialmente num longo parágrafo – localizado na página 254 da edição nacional –, no qual ele afirmava que, se algum dia ocorresse de verdade uma “ordem social libertária”, seria necessário
“não haver tolerância para com os democratas e os comunistas em uma ordem social libertária. Eles terão de ser fisicamente separados e expulsos da sociedade. Da mesma forma, em uma aliança fundada com a finalidade de proteger a família e os clãs, não pode haver tolerância para com aqueles que habitualmente promovem estilos de vida incompatíveis com esse objetivo. Eles – os defensores de estilos de vida alternativos, avessos à família e a tudo que é centrado no parentesco (como, por exemplo, o hedonismo, o parasitismo, o culto da natureza e do meio ambiente, a homossexualidade ou o comunismo) – terão de ser também removidos fisicamente da sociedade para que se preserve a ordem libertária”.
No meio do oásis da escola austríaca, eu propunha uma crítica a essa visão, dizendo que ela era de fato uma ordem social totalitária. A sala de aula ficou em absoluto silêncio com esse meu diagnóstico – exceto Eduardo Bolsonaro, que disse as seguintes palavras: “Professor, lá em casa temos armas e facas para que isso aconteça aqui, no Brasil”.
4.
E, sem saber, foi nesse instante que me vi envolvido na tragédia que se tornou a Nova Direita Brasileira. Ou talvez eu já estivesse mergulhado nela há anos e apenas pratiquei as “ruminações de um lerdo”. O fato é que, ao escutar aquela frase, eu fiquei quieto, paralisado, junto com todos os demais presentes naquela sala. Engoli a seco e encarei aquilo como se fosse uma blague, uma provocação. Mas não era. O escritor Norman Maclean afirma que se pode localizar precisamente um ato trágico por meio de uma única palavra, seja em uma obra de arte, seja na história de uma vida. O “aqui” dito por Eduardo Bolsonaro foi esse termo. Estava ali, concentrado, tudo o que aconteceria depois, tanto comigo como na história do meu país, no nosso presente imediato e no nosso futuro: a disputa ideológica acirrada não só entre os votos da população, mas na sua mente e no seu coração. E, claro, a recusa do real diante da gravidade de uma peste.
O meu silêncio não significou apoio político à frase do deputado federal. Jamais imaginei votar em Bolsonaro; simplesmente, não fui às urnas e paguei a multa eleitoral, como sempre faço há mais de vinte anos. Mas, no fundo, foi algo muito pior. Na verdade, era uma das piores características da Nova Direita: a covardia. Em A questão da culpa (1948), o filósofo Karl Jaspers comenta sobre as reparações jurídicas, morais e metafísicas que a Alemanha nazista deveria arcar com o resto do mundo por causa do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial. No âmbito da culpa moral, ele a explica como se fosse uma vida na máscara, que seria incontornável para aquele que queria sobreviver, em particular em uma cultura totalitária, como o que acontecia com o Brasil nos últimos vinte anos que eu vivi. Por razões de conveniência, e também por razões de acreditar que havia um inimigo em comum (o PT), a Nova Direita, mesmo em suas diversas correntes, anestesiou-se sabendo que Bolsonaro seria um grande problema e assim permitiu que a camuflagem fosse um princípio da sua existência.
Se, por um lado, esse tipo de vida sufocou ressentimentos que sempre existiram entre seus principais atores, e que culminaram no espetáculo grotesco que o governo Bolsonaro incentivou com os linchamentos virtuais coordenados pelo chamado “gabinete do ódio”, por outro ela deu chances para aqueles que sabiam ser moralmente culpados fossem capazes de penitência.
Esse “ódio organizado” mostra os efeitos nocivos e permanentes do bolsolavismo em alguns pilares mínimos da vida social brasileira. Por meio de uma “ciberguerra”, cujos alvos foram nada mais nada menos que milhões de páginas do Facebook, do Instagram, do Twitter, do YouTube, do Reddit e do Google, os membros dessa nova força política também conseguiram manobrar a imprensa e a opinião pública, ambas isoladas em suas respectivas torres de marfim.
Os métodos favoritos desta estratégia foram os seguintes: a invasão de páginas nas redes sociais (via os famosos hackers); a criação de notícias falsas (as fake news, como a existência de um kit gay que seria usado para doutrinar crianças nas escolas públicas e particulares); o surgimento de robôs (os bots) que se multiplicavam conforme a cada retuíte dado por algum influenciador digital famoso (por exemplo, os filhos do presidente da República, Eduardo e Carlos Bolsonaro, defensores explícitos do “gabinete do ódio”); o investimento financeiro em candidatos que, sem o dinheiro dessa plutocracia que se sentiu abandonada pelo PT, jamais teriam a mínima chance de se erguerem (vejam os casos dos deputados federais Luís Filipe de Orleans Bragança e Carla Zambelli); e a influência digital na opinião pública, via sujeitos que fazem pose de intelectuais, como Bernardo Küster e Allan dos Santos (ambos abençoados por Olavo de Carvalho), alegando que era necessário uma espécie de “revolução populista” – leia-se: golpe – para implementar um governo que destruísse de vez o status quo político. A principal meta deles seria abalar a crença na “fé cívica” que fundamentaria a democracia brasileira, criando assim as ramificações de um “segundo governo” que não conquistou o seu poder por meio do voto direto, mas que foi imposto pelas redes sociais sobre a população. Esse “estado paralelo” esgarçararia o tecido social até o limite da ruptura institucional, obrigando que o cidadão comum aceite, sem hesitar, a existência do curtir como o novo símbolo da servidão psíquica. Não seria um exagero afirmar que essa ralé, com toda a malícia do mundo, nos infectou com um outro tipo de contágio: o da mentira.
Enquanto isso, nesse espaço à consciência e ao arrependimento vislumbrados por Jaspers, pessoas como eu, Carlos Andreazza (que, mesmo sendo editor de Olavo na Record, trilhou um caminho divergente ao bolsolavismo como jornalista), Alexandre Borges, Francisco Razzo, Lobão e Dionisius Amêndola percebemos que fomos os “vencidos da vida”. Juntou-se a nós um dos responsáveis pelo impeachment de Dilma Rousseff e um dos apoiadores da candidatura Bolsonaro no segundo turno, o MBL. Graças à liderança de Renan Santos, ele passou a ter um papel importante nessa discussão sobre como impedir esse “estado paralelo”, pois viu que os seus motivos puramente pragmáticos também nos levaram a este impasse.
Todos esses dilemas convergiram em um crescendo para um número horripilante: o de que no Brasil houve 716.136 óbitos confirmados de coronavírus, pelo menos segundo as estimativas oficiais, divulgadas até o dia 08 de maio de 2025. Foram 716.136 indivíduos de carne e osso que perdemos em um período de três anos, principalmente durante o governo de Jair Bolsonaro, desde março de 2020, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou que a covid-19 era um flagelo global. Sem dúvida, um dos principais responsáveis por isso foi o presidente da República – junto com os seus apaniguados, desde de intelectuais como Olavo de Carvalho ao liberalismo a lá Paulo Guedes tão defendido pelos membros do Instituto Mises. Eles foram os reacionários que conseguiram fazer tudo o que Hans Hermann Hoppe pretendia praticar em uma “ordem social libertária”: eliminar direta ou indiretamente os seus oponentes – no caso, o próprio povo brasileiro.
Portanto, o remanescente lúcido da Nova Direita se sentia como o personagem do romance A Peste (1948), de Camus, que confessa para um amigo: “Pensei que estava lutando contra peste. Eu me dei conta que, indiretamente, tinha apoiado a morte de milhares de homens, de que tinha causado mortes ao aprovar ações e princípios que inevitavelmente levaram a elas”. Sabíamos que não éramos mais a vítima perfeita, o outsider, como acreditávamos ser, e que teríamos de assumir o “peso da responsabilidade” diante dos nossos erros. Ironicamente, somos hoje o establishment contra o qual lutávamos – e o bolsolavismo foi o hospedeiro perfeito para levar a cabo as nossas tendências totalitárias.
Antes disso, entretanto, existiram as ideias que formaram essa covardia – e eu fiz parte delas, de uma forma ou de outra. Karl Jaspers fala que, sem a purificação da alma, não há liberdade política. Daí esse meu testemunho, cheio de lacunas, mas que vai pelo caminho oposto da esquerda, ansiosa agora para praticar um “duro acerto de contas” com quem apoiou direta ou indiretamente Jair Bolsonaro. Ela não consegue entender que, apesar da pandemia, da economia em frangalhos e de uma sociedade em ponto de ebulição, o bolsolavismo ainda tem grandes chances de permanecer no centro do poder, manipulando à vontade o centro da verdade, simplesmente porque tanto a imprensa e a intelligentsia tupiniquim ignoram o encantamento feito a uma nova geração – uma geração que, assim como a minha, não percebeu que Jair Bolsonaro nunca foi o “líder providencial” tão esperado por ela. Afinal de contas, o verdadeiro César não mora aqui. Está envolto nas sombras do Hades, vendo tudo com os óculos de lentes grossas sempre esfumaçados, protegido pela cortina da nossa própria arrogância.
Nesse círculo vicioso (e viciante), a esquerda comete o mesmo equívoco da Nova Direita ao não perceber que a nossa verdadeira tragédia foi nos preocuparmos só com a liberdade, e nos esquecermos completamente de outro termo: “compaixão”. A nossa culpa deixou de ser moral e passou a ser metafísica, ao abraçarmos por completo o outro lado do niilismo. E, aqui, resta-me o conselho da poetisa austríaca Ingeborg Bachman, que entendia muito bem desse assunto. Um dos seus versos célebres é sobre a derrota que se sofre ao não se ter nada para dizer a respeito da desgraça humana. Há uma única consolação: ter ainda dentro de si a sua integridade. “Não te perdi a ti/, perdi o mundo”, ela escreve. No meu caso, posso perder o mundo, mas jamais a mim mesmo.
Enquanto isso, sou assombrado pelas palavras.
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Sobre os detalhes desse imbróglio, ver o seguinte texto “Confusão e medo em Campinas”, que antes estava disponível na antiga página de Olavo de Carvalho (http://old.olavodecarvalho.org/textos/martim.htm), mas foi posteriormente apagado. Contudo, ele pode ser encontrado aqui. Acessado no dia 14/05/2025.