1.
O conclave papal começa hoje. O que significa que todo mundo dará palpite sobre o que acontece no Vaticano. Eu não seria exceção, é óbvio.
O problema é que ninguém sabe o que se passa ali. Nem os próprios cardeais. Se bobear, nem o próprio Papa sabia o que há dentro da Igreja.
Quem sabe mesmo - de verdade - é um tal de Espírito Santo. Mas, claro, isso é só um detalhe na vida do cristão católico.
Porém, nas últimas semanas, desde o falecimento de Francisco, todos dão o seu pitaco sobre a Igreja. No final de semana passado, os fiéis ficaram alvoroçados com o meme abaixo, divulgado por Donald Trump na conta oficial da Casa Branca:
Trata-se de um exagero - até porque, como escrevi no dia lá na bodega do Elão, se a Igreja Católica suportou milênios de heresia, certamente ela conseguirá sobreviver a uma piada do presidente dos Estados Unidos.
Mas há um detalhe inquietante neste meme: ele mostra como os católicos ainda não estão cientes da importância do katechon (o poder que contém a violência do Anticristo e que intensificará o surgimento definitivo do Apocalipse) e de como este mesmo obstáculo tem a ver com as novas tecnologias que hoje tentam controlar a nossa vida interior.
2.
Quando houve o lançamento da encíclica papal Caritas in Veritate, de Bento XVI, em 2009, ela não provocou muito rebuliço na mídia porque apareceu no mesmo dia do funeral de Michael Jackson, e porque o que a imprensa esperava na época era o encontro do próprio Papa com Barack Obama em L’Aquila. Hoje ninguém se lembra dos três eventos.
Contudo, assim que o texto saiu, alguns intelectuais católicos já o tinham lido e deram o seu palpite. Como de hábito, poucos, salvo as exceções de sempre, perceberam o caráter problemático da encíclica – algo que, se não fosse bem pensado e estudado, traria implicações sérias para o mundo político.
Quando uso o termo “problemático”, faço-o em dois sentidos: o primeiro é que a leitura do texto é repleta de zigue-zagues, e nota-se a tentativa do então Papa de querer sair do beco-sem-saída onde se meteu. Ali, ele ataca a esquerda na sua agenda antropológica progressista-liberal, e também ataca os liberais com sua adoração ao deus mercado. O segundo uso é que, se a encíclica não cai na esparrela ideológica, propõe outra muito mais perigosa – a da era ecumênica. Não há outra maneira de se entender isso quando se lê o parágrafo 67 do texto:
“67. Perante o crescimento incessante da interdependência mundial, sente-se imenso — mesmo no meio de uma recessão igualmente mundial — a urgência de uma reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitetura económica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações. De igual modo sente-se a urgência de encontrar formas inovadoras para atuar o princípio da responsabilidade de proteger e para atribuir também às nações mais pobres uma voz eficaz nas decisões comuns. Isto revela-se necessário precisamente no âmbito de um ordenamento político, jurídico e económico que incremente e guie a colaboração internacional para o desenvolvimento solidário de todos os povos. Para o governo da economia mundial, para sanar as economias atingidas pela crise de modo a prevenir o agravamento da mesma e em consequência maiores desequilíbrios, para realizar um oportuno e integral desarmamento, a segurança alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e para regulamentar os fluxos migratórios urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial, delineada já pelo meu predecessor, o Beato João XXIII. A referida Autoridade deverá regular-se pelo direito, ater-se coerentemente aos princípios de subsidiariedade e solidariedade, estar orientada para a consecução do bem comum, comprometer-se na realização de um autêntico desenvolvimento humano integral inspirado nos valores da caridade na verdade. Além disso, uma tal Autoridade deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder efetivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o respeito dos direitos. Obviamente, deve gozar da faculdade de fazer com que as partes respeitem as próprias decisões, bem como as medidas coordenadas e adoptadas nos diversos fóruns internacionais. É que, se isso faltasse, o direito internacional, não obstante os grandes progressos realizados nos vários campos, correria o risco de ser condicionado pelos equilíbrios de poder entre os mais fortes. O desenvolvimento integral dos povos e a colaboração internacional exigem que seja instituído um grau superior de ordenamento internacional de tipo subsidiário para o governo da globalização e que se dê finalmente atuação a uma ordem social conforme à ordem moral e àquela ligação entre esfera moral e social, entre política e esfera económica e civil que aparece já perspectivada no Estatuto das Nações Unidas”.
Agora, temos que explicar o que é a era ecumênica. É um termo de Eric Voegelin para seu quarto tomo da série “Ordem e História” e sua raiz vem do termo grego oikoumene, que significa aproximadamente “ausência de fronteiras” ou de limites.
O germe desta experiência histórica está no confronto de Sócrates com a polis ateniense e nos registros dos profetas hebreus, mas de fato começa com Alexandre Magno; estende-se pela Ásia; ganha sua completa consciência de princípios com Confúcio (alguns incluem Buda nesse mesmo período); fragmenta-se com a chamada civilização greco-romana; tem uma nova articulação com o apóstolo Paulo e – antes que você possa recuperar o seu fôlego, caro leitor - ainda influencia o mundo moderno com sua idée-fixe de unidade entre os povos, com uma acentuação para a dominação global e sem se importar com a diversificação da cultura de cada povo soberano.
A única coisa que verdadeiramente importa para quem viveu ou quer viver nesta era é a expansão da sua libido dominandi (usado aqui na terminologia de Pascal), da qual se constrói uma “segunda realidade”, alienada às necessidades do senso comum, e que se apropria de princípios éticos apenas como floreio retórico, para, na prática, manter a qualquer custo o seu ímpeto de dominar tudo o que vem pela frente, de territórios estrangeiros até a consciência individual (e especialmente, a sua consciência).
Atualmente, vivemos os restos do espólio desta era com o surgimento de entidades como a ONU, a União Europeia, as ONGs, os Estados Unidos da América, e todo aquele pessoal do Greenpeace.1
O problema do parágrafo 67 da encíclica é que a sua proposta de reformar a arquitetura global, propondo uma Autoridade política mundial é, ao mesmo tempo, uma ingenuidade, um anacronismo e uma contradição.
Uma ingenuidade porque qualquer um sabe que, para criar tal organização, teria de gastar um montante de dinheiro que, aliás, já foi usado, mas que jamais voltará para o bolso do povo ( foi o que aconteceu com o tal bailout de Bush e Obama em 2008, lembram-se?); um anacronismo pois não podemos mais viver entre os restos da era ecumênica, muito menos esperar que a Igreja apoie uma Autoridade política mundial, sendo que era ela quem justamente cumpria essa função há algum tempo; e uma contradição porque se o Papa apoia essa mesma Autoridade, ela deve ser composta por seres humanos – que atualmente, são os mesmos que desejam que a tal Autoridade aprove o “direito universal” ao aborto, à eutanásia e outras esquisitices científicas (tópicos que a encíclica critica sem hesitação, é bom frisar).
“Ora” – já antecipo o engraçadinho – “mas você critica isso porque vai contra a agenda conservadora”. Isso não tem nada a ver com a “agenda conservadora”. Tem a ver com o fato de que estamos a viver num mundo perigoso e, de todas as pessoas que eu não gostaria de ver enfurnadas neste busílis, o Papa é uma delas. Porém, não se trata de uma crítica – trata-se de uma simples constatação de um problema, que deve ser enfrentado por qualquer ser humano que se preze, seja católico ou não. George Weigel, comentarista do Vaticano e articulista da National Review, percebeu o nó górdio e escreveu na época um artigo que causou frisson no mundo intelectual católico, especialmente por causa de trechos como estes:
A encíclica inclui uma longa discussão sobre “dom” (daí a “gratuidade”), o que, mais uma vez, pode ser uma tentativa interessante de aplicar à atividade econômica certas facetas do personalismo cristão de João Paulo II e o ensinamento do Vaticano II, em Gaudium et Spes, sobre o imperativo moral de fazer de nossas vidas o dom aos outros que a própria vida é para nós. Mas a linguagem nessas seções de Caritas in Veritate é tão confusa e confusa que sugere a possibilidade de que o que pode ser pretendido como um novo ponto de partida conceitual para a doutrina social católica seja, na verdade, um sentimentalismo confuso, precisamente do tipo que a encíclica deplora entre aqueles que separam a caridade da verdade.
Há também, na encíclica, um pouco mais sobre a redistribuição da riqueza do que sobre a criação de riqueza — um sinal claro das posições padrão da Justiça e Paz em ação. E outro favorito da Justiça e Paz — a criação de uma “autoridade política mundial” para garantir o desenvolvimento humano integral — é revisitado, sem mais insights sobre como tal autoridade operaria além daqueles que são tipicamente encontrados em outros discursos da cúria sobre a superioridade inerente da governança transnacional. (Um dos mistérios duradouros da Igreja Católica é o motivo pelo qual a Cúria Romana deposita tanta fé nessa fantasia de uma "autoridade pública mundial", dada a experiência da Santa Sé na luta pela vida, pela liberdade religiosa e pela decência elementar nas Nações Unidas. Mas é assim que eles pensam na Justiça e Paz, onde as evidências, a experiência e os cânones do realismo cristão às vezes parecem de pouca importância.)2
Obviamente, Weigel foi atacado por todos os lados. Pode-se argumentar que ele foi “arrogante” ao presumir que o Papa teria “cedido” uma parte de seu pensamento para setores mais “vermelhos” da Igreja; pode-se até dizer que ele foi “paranoico” ao afirmar que Bento XVI está “isolado” (infelizmente, este fato se confirmou nos anos seguintes, e foi o que o levou à renúncia em 2013); mas não se pode negar que ele apontou o dilema da encíclica com uma precisão dolorosa.
Da minha parte, creio que fico com Joseph Bottum, que, na tentativa de destrinchar a Caritas in Veritate em sua intricada trama de zigue-zagues políticos-sociais, escreveu o seguinte:
“(…) O apelo por uma “verdadeira autoridade política mundial” aparece no parágrafo 67: “uma reforma da Organização das Nações Unidas, e também das instituições econômicas e das finanças internacionais, para que o conceito de família das nações possa adquirir força real.”
Para entender isso, creio que precisamos lê-lo à luz de um apelo por um império universal, que está no léxico católico há muito, muito tempo. O contra-tema de Estados soberanos individuais também está no léxico católico há algum tempo, e a encíclica poderia ter entrado aqui em uma discussão interessante sobre essa discordância no pensamento católico moderno. Mas, do jeito que as coisas estão, não consigo imaginar um momento pior para simplesmente exigir um império universal sem explicação, ou um órgão pior do que as Nações Unidas para confiá-lo.
A primeira ingenuidade, na versão de Bento XVI, é a noção de que a ONU poderia de alguma forma ser "regulada pela lei", quando ela própria seria a lei, uma vez que tivesse eliminado os Estados individuais (contra os quais a encíclica se opõe quando reclama do enfraquecimento da ONU pelo "equilíbrio de poder entre as nações mais fortes").
A segunda ingenuidade diz respeito à Igreja, que, nos apelos medievais e renascentistas por um império, se posicionou como a instituição extragovernamental que equilibrava o Estado. Agora, e no futuro próximo, a Igreja é detestada pelos burocratas do império da ONU. É loucura da parte de Bento XVI pensar que uma organização internacional não se moverá, com seu poder, para abolir o máximo possível da Igreja.
Vejamos: que tal um direito universal ao aborto? Que tal leis de ódio que sejam aplicadas contra os católicos, mas, de alguma forma, contra poucos outros? Aqui está uma simples e, de fato, bastante provável: que tal as grandes catedrais serem todas declaradas "Propriedade Artística da Humanidade", com a propriedade e a "supervisão do uso" atribuídas à UNESCO?3
É um raciocínio perturbador, sem dúvida. Mas é hora de se perguntar se não é o caso de afirmar algo que já dizia John Adams, o homem a quem os EUA devem a sua independência – e que era alguém que apenas atendia os ditames da sua consciência:
“Meu lema fundamental de governo é este: Nunca confie o cordeiro aos cuidados do lobo”.
3.
Porém, mexer nessas feridas no coração da Igreja sempre provoca confusão. Logo, vamos dissipar algumas dúvidas sobre o autor deste texto:
1) Em primeiro lugar, nunca desejei menosprezar a pessoa do Papa, em especial a de Bento XVI, autor daquela encíclica. Foi um homem íntegro, de uma alma verdadeiramente gentil, que teve de suportar uma série de inconveniências clericais para governar a Igreja com a decência apropriada. Ao usar termos como “esparrela ideológica” posso ter dado a impressão de que penso o contrário. Ela é errônea. Não posso cair na mesma “esparrela” de não dar o benefício da dúvida às ideias de uma tradição a qual me filio. Uso a expressão “benefício da dúvida” não no sentido jurídico lato, o que pode entender novamente que eu considero o Papa uma espécie de réu. Ao contrário: o “benefício da dúvida” é usado para garantir, antes de tudo, a inocência do indivíduo - i.e. a possibilidade de ele não estar a praticar as suas ações sem intenção maliciosa. Ora, é justamente isto que falta na análise política dos nossos tempos; qualquer coisa que a Igreja (e, por sua vez, o Papa) faça, logo é acusada de qualquer crime, sem apresentação prévia de provas. Apenas quero apresentar um problema exposto no texto da encíclica, e nada mais.
2) Além disso, se assumo publicamente que eu me filio a uma tradição, e se o Papa é o representante dela, devo ter, antes de tudo, uma postura de humildade. Faço isso por um motivo muito simples: se a Verdade é a base desta tradição, não posso negá-la. E quando falo em tradição, refiro-me à linha de pensamento que, como bem resumiu Edmund Burke, é a base daquela sociedade que respeita o fluxo ininterrupto entre os vivos, os mortos e os que estão por vir.
Novamente, temos aí mais um exemplo de “benefício da dúvida”. Tenho de ser humilde ao fato de que o Papa sabe mais (e viveu mais) do que eu; tenho de ser humilde porque tudo o que ele quer é evitar uma situação catastrófica (e esta é a única maneira de eu compreender o uso do termo “Autoridade Política Mundial” que, além de ser defendida pela Igreja há séculos em sua doutrina social, seria supostamente uma barreira contra a anarquia e a guerra violenta); tenho de ser humilde porque, afinal, ele sabe mais sobre o “poder espiritual” do que eu, ser miserável; e, last but not least, tenho de ser humilde porque o Papa não pensa em um contexto de cinco, dez anos pela frente, e sim no ritmo da eternidade, o que significa um andar muito mais lento, comedido e, sobretudo, prudente.
3) Ora, é por falar em tradição que tenho de me explicar sobre o conceito utilizado da era ecumênica. Alguns católicos não gostam de Eric Voegelin porque, segundo eles, sua obra não permite uma avaliação do dogma como experiência de aproximação da vivência cristã; para Voegelin, o dogma é uma petrificação da experiência, um afastamento do que seria a verdadeira “fé cristã”. Esta reviravolta do pensamento ocidental é explicada em dois textos seus: o primeiro é “Evangelho e Cultura” e o segundo é o livro “A Era Ecumênica”, quarta parte de “Ordem e História”.
É aqui que eu me separo dos meus colegas católicos – mas creio que não me afasto da tradição. E por uma simples razão: o que Voegelin elabora é algo que a Patrística já argumentava há muito tempo – o fato de que não há mais cristãos porque eles se distanciaram do Cristo e, por sua vez, do Deus vivo e pulsante do Antigo e do Novo Testamento. Em “A Era Ecumênica”, Voegelin mostra o processo desta desintegração em um escopo civilizacional – muito próximo do que estamos a viver atualmente, mesmo que seja os restos de um espólio que já foi magnífico.
Creio que Voegelin faz parte da tradição dos grandes pensadores da Civilização, e ele está no mesmo patamar de um Platão, de um Aristóteles, de um Sto. Tomás. De fato, Voegelin tem suas imperfeições; mas a ambição da sua obra – e o que ele conseguiu – não pode ser relegada ao esquecimento ou, o que é pior, ao desprezo – em especial, pelos intelectuais católicos em geral. Ao usar o conceito voegeliniano para analisar uma encíclica papal, não estou, em hipótese nenhuma, menosprezando uma tradição de mais de dois mil anos, uma tradição que guarda a Verdade pela qual eu acredito. Estou apenas a citar um filósofo que, no seu isolamento existencial do século 20, decidiu conversar somente com os grandes – e são estes que moldaram a mesma tradição que o Papa também defende. Portanto, Eric Voegelin, ao contrário de um Karl Marx, é um dos cumes da filosofia, e não seria exagero confirmar que Bento XVI disse o mesmo, em uma carta escrita ao autor de Science, Politics and Gnosticism nos idos da década de 80, quando era então o arcebispo de Munique.4
Dito isso, reitero que, de todos os pontos acima, o único que eu não abro a mão é o fato de que, do modo como está redigido o parágrafo 67 da encíclica Caritas in Veritate, creio que ela aponta para uma ideia deveras problemática para os nossos tempos - e que permaneceu difícil de engolir, especialmente após o papado de Francisco.
Se isso é dolorido para mim, eis uma questão para a minha consciência, e não para a sua, caro leitor. O que quero acrescentar é que a crítica contra a tal Autoridade Política Mundial também faz parte da tradição que tento proteger; uma tradição em que a dignidade da pessoa está acima da máquina burocrática estatal e que a liberdade interior, conquistada através de lutas e mais lutas dentro das tensões da nossa alma, sempre estará acima de uma suposta liberdade exterior; e, apoiado nisso, acredito sim que tal ideia pode ser ingênua, anacrônica e contraditória (repito: a ideia, não o homem que a redigiu).
Depois da renúncia de Bento XVI em 2013 - para mim, o ato político mais importante do século 21 - e da eleição de Francisco, a prudência avisava que deveríamos esperar e ver os desdobramentos do que foi anunciado naquela encíclica; afinal, esta tradição tem uma Verdade sobre a qual ela se sustenta e que, por isso, sempre estará pronta para ressurgir quando menos se espera.
4.
Contudo, não foi o que aconteceu. Muito antes do falecimento do Papa Francisco, as discussões em torno da Igreja Católica já indicavam que algo estava fora do prumo - particularmente no Brasil, agora possesso por essa psicose do imaginário chamada “bolsonarismo” (sem contar o famigerado “petismo” de sempre).
Por exemplo: há alguns meses, o canal Meio - o mesmo em que o seu dono, o jornalista Pedro Doria, insiste que luta pela “democracia”, desde que esta seja a favor do Império - publicou um longo artigo do novo ungido pela imprensa, o professor Wilson Gomes, a respeito das acusações de pedofilia que cercam Júlio Lancelotti (eu me recuso a chamá-lo de padre por outras razões; em breve, vocês saberão o motivo).
Como de hábito, Gomes é o típico intelectual que aponta a lua, mas na verdade comenta sobre a ponta do dedo indicador. Seu argumento principal é o de que os opositores a Lancelotti fazem essas denúncias porque estão alinhados com o “bolsonarismo”, este grande Baba Yaga que colonizou a cabeça da intelligentsia brasileira. Por outro lado, tais “extremistas” não entenderiam que a Igreja Católica, esta instituição mais do que “reacionária” (são as palavras dos especialistas como Gomes), está paradoxalmente ao lado do sacerdote perseguido. Este trecho aqui é memorável:
Aquele que propõe uma iniciativa política de tal magnitude precisa partir do pressuposto de que a Igreja Católica não representa uma força política e eleitoral significativa, calculam que não há um risco substancial em bater de frente contra os católicos.
E olha que, nesse caso ao menos, a aposta foi bem alta. Há registros conhecidos do apreço do Papa Francisco pelo Padre Júlio e sua dedicação a essa população. O Cardeal de São Paulo, Dom Odilo Scherer, prontamente assumiu a defesa pública de seu sacerdote e da sua pastoral, fundada por ninguém menos que por Dom Paulo Evaristo Arns. Tanto a Cúria Romana quanto a Arquidiocese de São Paulo estão ao lado do Padre Júlio, e a CNBB certamente se unirá, se necessário, num movimento coeso e unificado como há muito tempo não se vê.
Como se não fosse suficiente, Gomes resolve dar uma lição de catequese do que seria a natureza de uma pastoral (e, por consequência, da Igreja) aos seus leitores laicos:
Os proponentes do requerimento parecem ignorar quase tudo sobre os católicos. Antes de tudo, ignoram o significado de uma “pastoral”, que consiste em um conjunto de atividades de prestação de assistência espiritual e material organizadas pela diocese para atender às necessidades específicas de grupos ou situações. Uma pastoral é uma forma de atividade missionária, buscando “trazer almas para Cristo”, mas com foco no acolhimento, no cuidado do próximo, na congregação em um ambiente de convivência e caridade fraterna. Existem pastorais da juventude, da saúde, carcerária, dos migrantes, das pessoas em situação de rua, dos nômades, entre outras, nas quais sacerdotes e leigos oferecem serviços espirituais, orientação moral e assistência prática aos membros da comunidade. Padre Júlio coordena voluntários em uma pastoral que inclui, entre outros grupos, pessoas em desesperadora situação de rua devido ao consumo de crack.
Seria equiparável a imaginar o abandono de leprosos, mutilados de guerra, órfãos e viúvas em outras épocas. Não se pode sequer sugerir que o cuidado daqueles de que a sociedade desistiu e dos quais o poder público demonstrou não ser capaz de atender, implique qualquer incentivo a determinados estilos ou condições de vida. Considere-se se tal afirmação poderia ser feita em relação a uma pastoral dedicada a pessoas afetadas pela hanseníase, asilados políticos, fugitivos da miséria ou perseguições religiosas, ou adolescentes pobres grávidas. A mera sugestão de que a atitude samaritana dos cristãos fortalece positivamente situações desumanas seria considerada uma ofensa desumana. Por que cuidar de pessoas envolvidas com crack seria diferente?
O professor, infelizmente, divulga somente um lado da Igreja. Ela faz tudo isso, é certo, mas não apenas tais atividades. A Igreja é também (ou melhor, sobretudo) um refúgio espiritual para o homem que se reconhece como um danado. É justamente por causa da sua tradição objetiva que ela nos preserva de ficarmos presos aos “guetos mentais” que hoje nos afligem.
Wilson Gomes, na verdade, caiu na retórica do sentimentalismo tóxico que Júlio Lancelotti - e do qual o Papa Francisco também era um mestre - manobra com perspicácia, especialmente entre as redações da imprensa - e se esquece que um sacerdote precisa ajudar os pobres, sem dúvida, mas ele também deve ajudá-los a encontrar a cura da alma.
E isso é extremamente difícil, especialmente em um país como o Brasil, que impede qualquer aperfeiçoamento material (notem que evito falar em “aperfeiçoamento materialista”).
Contudo, como diria o clichê: nem só de pão vive o homem, etc. e tal.
O sentimentalismo tóxico ao redor da figura de Lancelotti (e também da figura de Francisco) é parte de um grande esquema do qual ele é um dos seus protagonistas e manipula como poucos. É o sistema da “macrocultura”, formada pelas grandes corporações (disfarçadas em ONGs), o Estado, o status quo cultural e aqueles que desejam fazer parte da elite a qualquer custo (leiam-se: os jornalistas). E, infelizmente, no meio dessa confusão toda, a Igreja Católica se uniu a esta plebe, quando deveria trilhar por um caminho completamente diferente, ao assumir o seu papel de katechon e, sobretudo, ao recusar os destroços da era ecumênica que já tinha sido defendida por Bento XVI na primeira década dos anos 2000, justamente com a encíclica Caritas in Veritate.
Hoje há uma luta entre essa “macrocultura” e uma incipiente “microcultura”, nas palavras de Ted Gioia, que tenta sobreviver dignamente às margens do sistema, por meio de plataformas alternativas (como o Substack) e com a criação de comunidades inspiradas nas obras de artistas, artesãos e pequenos empreendedores. Porém, de forma maliciosa, a “macrocultura” já percebeu a fragilidade intrínseca em suas estruturas de poder e, por isso, apelou para o argumento mais patético que há na hora de acusar quem tenta se manter em alguma “microcultura”: o de chamar seus integrantes de “fascistas” e de “nazistas”.
Entretanto, como sempre ocorre no Brasil (e também acontece no resto do mundo), vivemos na hegemonia da “macrocultura” - e os que pretendem se opor a seus símbolos maiores (como Júlio Lancelotti), não só são incapazes de formar uma “microcultura” autêntica, mas desejam fazer parte da “macrocultura”, usando da estrutura carcomida do Estado.
No fim, Lancelotti ganha essa batalha justamente porque a oposição contra ele é extremamente incompetente - e mais: ela também alimenta o mesmo gueto mental que alega combater.
Para esse grupo (a tal da “direita”), o importante é fomentar um público nas redes sociais o qual, provavelmente, é nada mais nada menos que um enxame de bots e avatares que só faz sentido no mundo virtual - e tudo em função de um culto ao redor de um líder autoritário que terá de impor a ordem por meio da violência (não à toa, a oposição à esquerda está fascinada com a figura mefistofélica de Nayib Bukele, o presidente de El Salvador). O abismo entre a alucinação e a realidade só tende a crescer diante dos olhos do homem comum, que só deseja trabalhar com alguma dignidade e pagar suas contas em dia. Ora, é este tipo de manipulação da vida interior, feita por uma tecnologia viciada e viciante, que a Igreja Católica ainda não captou o seu impacto espiritual por completo.
E aqui também vai o meu motivo de não chamar Júlio Lancelotti de “padre” (ou qualquer um que entre na onda deste sentimentalismo tóxico que corrompe o Vaticano e que continuará por anos, independente do resultado deste conclave). Na minha visão, ele faz parte do mesmo esquema de poder que, durante séculos, destruiu a Igreja por dentro, tornando seu fim inevitável, mais cedo ou mais tarde. Lancelotti se diz de esquerda, mas na verdade é o mais capitalista dos sacerdotes porque sua figura simboliza o ápice da “macrocultura” que sufoca qualquer possibilidade de “microcultura”.
Esquerda por esquerda, eu sou muito mais Pier Paolo Pasolini, o famoso cineasta e intelectual italiano, que articulou com sinceridade, na sua coletânea Escritos Corsários, essas palavras sobre a situação da Igreja cooptada pela “macrocultura” (já em 1974):
“Uma coisa é certa: se os erros da Igreja foram numerosos e graves na sua longa história de poder, o mais grave de todos seria aceitar passivamente a sua própria liquidação de um poder que zomba do Evangelho. Numa perspectiva radical, talvez utópica, ou, pode-se até dizer, milenarista, fica então claro o que a Igreja deveria fazer para evitar um fim inglório. Deveria passar à oposição. E, para passar à oposição, deveria antes de mais nada negar a si própria. Deveria passar à oposição contra um poder que a abandonou cinicamente, projetando reduzi-la, sem a menor cerimônia, a puro folclore. Deveria negar a si própria para reconquistar os fiéis (ou aqueles que sentem uma ‘nova necessidade de fé’) que a abandonaram justamente por aquilo que ela é.
Se retomasse uma luta que, por sinal, faz parte da sua tradição (a luta do Papado contra o Império), mas não para conquistar o poder, a Igreja poderia ser o guia, grandioso mas não autoritário, de todos aqueles que recusam (e é um marxista que aqui fala, e justamente enquanto marxista) o novo poder consumista que é completamente irreligioso, totalitário, violento, falsamente tolerante, aliás, mais repressivo que nunca, corruptor, degradante […]. É essa recusa, então, que a Igreja poderia simbolizar, voltando às suas origens, isto é, à oposição e à revolta. Ou fazer isso, ou então aceitar um poder que não a quer mais, ou seja: suicidar-se”.
O professor Wilson Gomes, como o novo ungido da “macrocultura” decadente que habita no Brasil, não consegue compreender (e, mais, comunicar aos seus leitores) que Júlio Lancelotti (entre outros) é apenas o símbolo encarnado desse suicídio espiritual que a própria Igreja decidiu sobre seu destino.
Perto disso, o meme de Donald Trump, ao se oferecer como katechon global, não passa de uma brincadeira de criança.
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Livros que falam desse problema são A Evolução da Cidade de Deus, de Etienne Gilson e Cosmopolis - The Hidden Agenda of Modernity, de Stephen Toumlin; indicaria também as seções que envolvem o termo cosmopólis, de Insight, de Bernard Lonergan, além das palestras que o professor Mendo Castro Henriques deu no Brasil sobre Filosofia Política em Eric Voegelin, publicadas pela É Realizações, em especial sobre o tópico da poliarquia
“The encyclical includes a lengthy discussion of “gift” (hence “gratuitousness”), which, again, might be an interesting attempt to apply to economic activity certain facets of John Paul II’s Christian personalism and the teaching of Vatican II, in Gaudium et Spes 24, on the moral imperative of making our lives the gift to others that life itself is to us. But the language in these sections of Caritas in Veritate is so clotted and muddled as to suggest the possibility that what may be intended as a new conceptual starting point for Catholic social doctrine is, in fact, a confused sentimentality of precisely the sort the encyclical deplores among those who detach charity from truth.
There is also rather more in the encyclical about the redistribution of wealth than about wealth-creation — a sure sign of Justice and Peace default positions at work. And another Justice and Peace favorite — the creation of a “world political authority” to ensure integral human development — is revisited, with no more insight into how such an authority would operate than is typically found in such curial fideism about the inherent superiority of transnational governance. (It is one of the enduring mysteries of the Catholic Church why the Roman Curia places such faith in this fantasy of a “world public authority,” given the Holy See’s experience in battling for life, religious freedom, and elementary decency at the United Nations. But that is how they think at Justice and Peace, where evidence, experience, and the canons of Christian realism sometimes seem of little account.)”
“(…) The call for a “true world political authority” appears in paragraph 67: “a reform of the United Nations Organization, and likewise of economic institutions and international finance, so that the concept of the family of nations can acquire real teeth.”
To understand this, I think, we have to read it in the light of a call for universal empire, which has been in the Catholic lexicon for a long, long time. The counter-theme of individual sovereign states has been in the Catholic lexicon for a while, too, and the encyclical might have entered here into an interesting discussion of that disagreement in modern Catholic thought. But, as things stand, I can’t imagine a worse time simply to demand universal empire without explanation, or a worse body than the United Nations to entrust with it.
The first naiveté, in Benedict’s version, is the notion that the UN could somehow be “regulated by law” when it itself would be the law, once it had eliminated the individual states (against which the encyclical sets itself when it complains of the UN weakened by “the balance of power among the strongest nations”).
The second naiveté is about the Church, which, in medieval and Renaissance calls for empire, stood as the extra-governmental institution that balanced the state. Now and for the foreseeable future, the Church is detested by the bureaucrats of the UN empire. It’s crazy of Benedict to think that international organization won’t move, with its power, to abolish as much of the Church as it can.
Let’s see, how about a universal right to abortion? How about hate laws that count against Catholics but somehow few others? Here’s a simple and, in fact, quite likely one: How about the great cathedrals all declared “Artistic Property of Mankind,” with ownership and “use oversight” given to UNESCO?”
Esta informação se encontra na nota 15, explicada na pág. 428, da introdução do livro The Essential Pope Benedict XVI, publicado em 2007 pela HarperCollins, em uma coletânea de artigos organizada por John F. Thornton e Susan B. Varenne.