1.
Querem saber como se inicia a tal da Nova Direita Brasileira?
Ela começa com um fato indiscutível (e uma tese polêmica): José Osvaldo de Meira Penna, falecido no dia 29 de julho de 2017 aos cem anos de idade, é o único dos liberais brasileiros que se pode dizer, com toda a certeza, que tem uma obra. Sem dúvida, Roberto Campos, que também faria seu centenário no ano de 2017, possui escritos brilhantes sobre vários aspectos econômicos e sociais do Brasil, mas falta neles uma unidade que lhes dê a liga; a preocupação de um Ricardo Veléz-Rodriguéz pela mentalidade patrimonialista o coloca como um concorrente sério (ele não gostaria dessa denominação, além do fato de que sua passagem desastrosa pelo governo Bolsonaro o prejudicou seriamente na sua autoridade como intelectual público). Porém, graças a Baal, os seus escritos ainda têm muito a dizer porque felizmente está vivo e ativo. O único que pode se ombrear com a obra de Meira Penna seria Antonio Paim, que, com seu Marxismo e Descendência (2010), coroou toda uma trajetória de recuperar e restaurar a história das ideias brasileiras dentro de uma perspectiva universal.1
Contudo, a obra de Meira Penna tem algo que Paim não conseguiu desenvolver plenamente: uma compreensão profunda das mazelas nacionais por meio de uma descida aos abismos da alma humana. Para o ex-embaixador, o Brasil só conseguiria solucionar o dilema da mentalidade patrimonialista se superasse, por meio de um esforço hercúleo, a mudança interior que deve ser feita para enfim se libertar das ideologias políticas que contaminaram o século XX. Este é o eixo que orienta toda a bibliografia de Meira Penna, que vai desde livros que meditam sobre a História, como Shangai, O sonho de Sarumoto e Quando mudam as capitais, passando pelas reflexões filosóficas e psicológicas de Elogio do burro, O Evangelho segundo Marx, Opção preferencial pela riqueza, Decência já, O espírito das revoluções, Em berço esplêndido, até os tratados sociológicos que são Segurança e desenvolvimento, Psicologia do subdesenvolvimento, O Brasil na idade da razão, O Dinossauro e Utopia brasileira.
Um outro aspecto da grandeza da obra de Meira Penna é que ela é orgânica — em outras palavras: é o resultado das preocupações concretas de um homem que viveu a história do seu tempo sem fugir da sua responsabilidade objetiva usando de abstrações ou teorias. E aqui, para deixar claro ao leitor o que significa o uso do termo obra, temos de fazer a diferença entre “obras-primas” (masterpieces) e “obras de mestre” (masterworks).
Para o grande Joseph Epstein, um ensaísta que deveria ser mais conhecido por aqui, há uma sutil distinção entre essas duas categorias. A primeira é a busca do escritor que cria algo encerrado em si mesmo, perfeito, acabado, próximo de um sistema que tenha suas regras próprias (exemplo máximo na ficção: Ulysses, de Joyce; na de não-ficção: On What Matters, de Derek Parfit); a segunda é algo que defina e desafie o significado de uma era, a culminação de uma forma artística, de uma literatura nacional, refletida de tal maneira na consciência do leitor que este jamais conseguirá apreender sua totalidade e, por isso, deve ser lido não apenas uma vez, mas duas, três, quatro vezes, e mesmo assim jamais capturará o que o autor quis dizer, pois o mesmo acontece com a vida de cada um de nós. Marcel Proust e Robert Musil são os ápices das “obras de mestre” no romance e, na área do ensaio, podemos colocar sem hesitação o corpus de um Eric Voegelin. Não seria exagero colocar Meira Penna nesta mesma categoria, mesmo que sua catedral de palavras, construída com as pedras dos conceitos analíticos, tenha sido inaugurada em um país tão periférico como o Brasil (e não seja por isso: o ex-embaixador é também satirista de primeira categoria, com um romance chamado Candido Pafúncio, publicado em edição particular e que precisa ser urgentemente redescoberto por alguma editora nacional).
2.
A prova de que Meira Penna produziu uma masterwork está no singelo fato de que ele não se omitiu em escrever livros introdutórios que, anos depois, serviriam como um sólido fundamento para aqueles que entraram ontem no maravilhoso mundo deste grupo deliciosamente bizarro chamado “Nova Direita Brasileira”. Este é precisamente o caso de A Ideologia do Século XX, publicado em 1987, depois numa segunda edição em 1994 (no auge da euforia da chamada “Revolução Liberal” — ou “Neo-Liberal”, para os petralhas de plantão — e da queda do comunismo).
Com sua pena habitualmente irônica, o alvo principal de Meira Penna, neste livro específico, é a “pederastia intelectual” que contamina as discussões políticas, econômicas e sociais no ambiente tupiniquim. Se, nas décadas de 1980–1990, as coisas estavam péssimas, imaginem agora. Por isso, A Ideologia do Século XX serve como uma introdução perfeita para que você, direitista neófito ou esquerdista ignorante, saiba o que está realmente em jogo.
Apesar da breve utilidade do livro, ainda assim as intenções de Meira Penna são mais ambiciosas e se integram perfeitamente ao todo orgânico de sua masterwork. Para ele, “a história de nosso século é a história do homem singular. É a história do conflito do indivíduo livre, em sua resistência ao avassalamento crescente pela sociedade coletivista, a sociedade de massas que o socialismo e a estrutura do Estado nacional soberano impõem”. No caso do Brasil, as ideias que fundamentam essa dupla diabólica atacaram também a nossa mente, “numa espécie de psicopatologia coletiva, pelos mitos e manipulações ideológicas, e a adoração de ídolos como aqueles a que se referia Francis Bacon”.
A solução prática que Meira Penna propõe não se trata, sob nenhuma hipótese, de uma panaceia que resolva definitivamente os problemas que ainda incomodam qualquer sociedade ocidental, especialmente o Brasil. Se as suas conclusões apontam para o fato “de que a estrutura do Estado-nação que socializa a economia e os meios de comunicação, dirigindo a opinião para uma uniformidade de convicções […] é obsoleta”, logo “nem o socialismo, nem o nacionalismo, nem o social-liberalismo romântico de esquerda que a eles se entrega oferecem soluções para nossos problemas de escala planetária”. Portanto, “ou a humanidade supera a idade do Estado-nação, sacralizado na religião civil do socialismo, ou estará condenada pelos impasses que não podem ser abordados e vencidos a nível de interesses tribais conflituosos. Nossa meta, por conseguinte, é transcender a ideologia da religião política”.
3.
O uso do termo “religião política” implica outra característica da masterwork que foi a realização de Meira Penna: sua humildade ao dialogar com os seus companheiros de pensamento. Em A Ideologia do Século XX, este colega foi o professor Nelson Lehmann da Silva que, com seu pequeno livro A Religião Civil do Estado Moderno (1985), seria indiretamente o primeiro germe de uma reviravolta brasileira que daria frutos nas revoltas de 2013 e, depois, no surgimento das passeatas de Março em 2014 e 2015, além da existência de um grupo como o da Operação Lava Jato.
Não se trata de uma boutade. Lehmann foi o único que anteviu, dentro da perspectiva brasileira, mas sem se esquecer com o que acontecia no resto do mundo, qual seria o grande tema político dos próximos anos — a transformação do Estado em uma espécie de “religião política” que prefere trocar o mundo real pelo mundo dos sonhos, pela simples razão de que o ser humano não consegue mais suportar as variações extremas da incerteza inerente à nossa frágil condição. Para manter o seu poder a qualquer custo, o Estado, seja o brasileiro, o americano, o europeu, ou até mesmo o global, cria ritos, símbolos, superstições, cargos, prêmios — tudo isso para contribuir uma falsa sensação de segurança de que a política sempre dará o que for preciso para que você nunca se sinta perdido. Lehmann resumiu toda essa tendência em uma análise precisa e objetiva, pioneira em pesquisa bibliográfica, sem deixar de lado a intransigência moral, sabendo explicitamente que o que ocorria realmente no mundo do poder também era reflexo do que acontecia no coração dos homens. Inspirado pelos estudos de Eric Voegelin, ele afirmava sem hesitar:
“De acordo com a diagnose de Voegelin, as ideologias modernas são, de fato, religiões políticas, que absorveram os símbolos cristãos, mas os distorceram pela secularização da doutrina da salvação. Em seu cerne, elas exprimem a expectativa de uma mudança radical ou uma nova criação da nova natureza. Mas tais ideologias (ou opiniões), equivalentes à doxa platônica, propositadamente obscurecem antes que iluminam a realidade humana. A elas Voegelin opõe a sabedoria clássica e cristã, que afirma que só as exigências do espírito, nunca as das instituições, podem ser absolutas. Não é no sistema social ou no regime da cidade que reside o problema e sua solução em sua última instância. Qualquer forma de Estado pode ser boa ou má. O fator decisivo é a virtude, seja dos governantes, seja dos cidadãos na procura do bem comum. A moralidade subsiste acima e além da cidade.
Que a substância da política é o poder, observa Voegelin, é a mais típica proclamação do pensamento político moderno. A tradição clássica e cristã, por outro lado, ensina que poder político diz respeito a apenas uma parte, e parte inferior, dos interesses humanos. É para assegurar paz e ordem e promover o bem comum, sem arrogar-se jurisdição que ultrapasse suas finalidades. A sabedoria clássica e cristã afirma a transcendência da ideia ou do espírito, que impõe limites ao poder político. Se poder vem a ser entendido como a própria finalidade da ação política, então este se revela como um conceito vazio e irracional e, quando institucionalizado, transforma-se em terror. Se a existência tem de ser mais do que mera existência, então o poder tem de estar subordinado ao espírito. O espírito será mestre do poder assim como é senhor do tempo”.
Poucos acreditarão, mas o trecho acima antecipa e confirma o que aconteceu nas últimas décadas no Brasil, provando como o diagnóstico feito por Nelson Lehmann da Silva era profético. Foi este scholar brasileiro, com uma singela tese de doutoramento defendida na Universidade da Califórnia na década de 1980, que deu o eixo teórico para todos os polemistas da Nova Direita que chegaram ao ápice da fama a partir de 2013, após um doloroso trabalho silencioso ocorrido no meio dos anos 1990, e que seguiriam esta mesma trilha. Em maior ou menor grau de profundidade teórica, sem A Religião Civil do Estado Moderno, não haveria O Jardim das Aflições, de Olavo de Carvalho, O Espírito das Revoluções, do próprio Meira Penna, A Coerência das Incertezas, de Paulo Mercadante, Do Pensamento no Deserto, de Luiz Felipe Pondé, as duas coletâneas O País dos Petralhas, de Reinaldo Azevedo, Esquerda Caviar, de Rodrigo Constantino, Pare de Acreditar no Governo, de Bruno Garschagen, Por Trás da Máscara, de Flávio Morgenstern, A corrupção da inteligência, de Flávio Gordon, e até mesmo o meu A Poeira da Glória, entre outros.
Todos esses livros discorrem, entre uma variação e outra, sobre o mesmo tema: o de que o ser humano não pode se deixar render pelo poder do Estado e deve colocar a consciência individual acima de tudo e de todos, justamente para não ser mais o órfão de um sistema político que o abandonou sem nenhum aviso.
José Osvaldo de Meira Penna foi o primeiro escritor a perceber, ao usar este estudo em seu A Ideologia do Século XX, a grandeza do livro de Lehmann como um aviso que parecia estar esquecido, e que, se bem compreendido, resultaria em consequências extremas, imprevisíveis — e inesperadamente benéficas. E isso só poderia ter sido feito por alguém que não teve pudores de se arriscar e construir uma masterwork, e assim antecipar toda uma situação que ninguém imaginaria antes. No passado, nos EUA e na Europa, isso foi feito por Lionel Trilling, Whittaker Chambers, Václav Havel, Jan Patocka e tantos outros, numa tradição que precisa ser urgentemente recuperada aqui no Brasil, pois já nos transformamos em zumbis possuídos pelos íncubos ideológicos da intelligentsia de direita ou de esquerda.
4.
Neste sentido, a incorporação que Meira Penna faz do trabalho de Lehmann o leva a se identificar com aquilo que ele chamaria de “o remanescente de Israel”, inspirado no título de um famoso artigo de Albert J. Nock. Nas palavras elogiosas do ex-embaixador, ao se juntar a Lehmann, “creio pertencer ao grupo restrito daqueles que, em nosso país, se recusam a prestar homenagens às ideologias da moda; e que procuram a verdade dentro do ovo desse fênix, sempre renascido no fogo da tradição, sobre a Ordem da Alma, a alma de um indivíduo livre e responsável. É uma tradição, creio eu, que herdamos dos profetas israelenses, de Sócrates e Santo Agostinho”.
É uma pena que Nelson Lehmann da Silva faleceu prematuramente, em 2011, pois seria interessante saber qual seria sua avaliação sobre o que acontece atualmente no país. Em todo caso, não é isso o que se passa com aqueles que pertencem ao “resto de Israel”? Suas previsões só se realizam quando o deserto tomou conta de cada uma das suas palavras proferidas. Contudo, no caso de Meira Penna, ele ainda tem a chance de se sentir vingado na divulgação das suas ideias — e o relançamento de A Ideologia do Século XX reforça essa perspectiva.
Assim, é uma felicidade encontrar, por exemplo, dois capítulos fundamentais nos quais Meira Penna explica algumas peculiaridades que tomaram forma no Brasil, decalcadas das “religiões políticas”, e que ainda produzem consequências duradouras no nosso debate público. O primeiro deles é o inusitado perfil psicológico que ele faz de ninguém menos que Getúlio Dornelles Vargas, presidente e ditador que deixou marcas no modo como praticamos e percebemos a política. Para Meira Penna, Getúlio não era apenas um homem qualquer; era uma ideologia à parte, chamada “getulismo”, que, com o advento do Estado Novo em 1937, “definitivamente não era totalitário, embora utilizasse toda a retórica nacionalista da direita e da socialista da esquerda”. Era, na verdade, um “método maquiavélico que Getúlio utilizava com mão de mestre — bom conhecedor que era da natureza do seu povo, sem prejuízo da intuição de tudo que se passava pelo mundo” e que, usando ao extremo da dissimulação, parecia ser “inconsistente” em seus objetivos. Porém, segundo o autor de O Espírito das Revoluções, Vargas podia ser um cínico, como pensavam muitos, porque
não mantinha compromisso com qualquer ideia ou programa. Navegava com a corrente que soberbamente sabia desviar para manter à tona o barco de sua ambição irresistível. Não revelando qualquer fé religiosa ou qualquer convicção moral ou doutrinária, mesmo em que pese seu suposto comtismo, era também imune a qualquer simpatia ou antipatia de política concreta: democracia, liberalismo, fascismo, comunismo, socialismo etc. — que determinasse, a priori, uma linha de ação, tanto no âmbito interno quanto no da política externa. Era gélido. Imperturbável em seu julgamento dos homens e das coisas. Discreto em seus métodos. Metódico no planejamento de seus golpes — refletindo sobre suas metas sem consideração aos critérios tradicionalmente brasileiros de clientela, amizade ou inimizade. A amizade estabelece, necessariamente, um laço afetivo que pode interferir com o funcionamento do cálculo. Por esse motivo, Getúlio só sabia utilizar o amigo politicamente, quites a abandoná-lo na rua da amargura, à primeira oportunidade. Pelas mesmas razões, não era cruel, nem vingativo: o inimigo também era suscetível de ser comprado e, eventualmente, reempregado. “Não há ninguém de quem eu seja tão amigo a ponto de não poder tornar-me inimigo”, dizia, “nem alguém tão inimigo a ponto de não poder tornar-me amigo”. Sua única fraqueza (que lhe foi fatal) era o amor à família, no que lembra Napoleão. Se foi finalmente vítima de seus familiares da copa-e-cozinha, que o mal aconselharam e traíram, isso não contradiz a tese: nesse ponto, o “sentimento inferior” em seu esquema psíquico projetou-se sobre seres inferiores como o Gregório Fortunato e o irmão Benjamim Vargas. Gregório foi o único preto que desempenhou um papel sombrio na história do Brasil, justamente porque sua relação afetiva se estabelecera, não com um homem igualmente afetivo e irracional, mas com um tipo de fria lâmina cerebrina. É também sintomático o suicídio. Parece haver sido um ato calmo e deliberado, executado na madrugada com um propósito preciso, perfeitamente consciente e servindo de ponto terminal a uma carreira que, ele próprio, julgava haver atingido o necessário clímax. Tratava-se de promover a sua transformação em personagem histórico: transformou-se em íncubo ou fantasma que, nos dez anos seguintes, iria atormentar o Brasil e indiretamente provocar o golpe militar de abril de 64. Suicidou-se, alvejando o coração. Os homens, ao contrário das mulheres, matam-se em geral com um tiro na cabeça. O coração, porém, o havia traído”.
Lendo este longo parágrafo, não é difícil se lembrar que este mesmo método de gestão política, por assim dizer, nos remete muito às estratégias de um Fernando Henrique Cardoso ou até mesmo de um Lula, uma vez que ambos os presidentes se aproveitaram das modas ideológicas do momento para manter, acima de tudo, a verdadeira ideologia a qual faziam parte — a social-democracia obscurantista, nas palavras de Paulo Mercadante em A Coerência das Incertezas.
Já no segundo capítulo, de extrema importância para quem for ler A Ideologia do Século XX com novos olhos, o que lida sobre o Integralismo, a descrição sobre esse arremedo de fascismo criado por gente patética (mas que, na época, era levada a sério) como Plínio Salgado, um então Alceu de Amoroso Lima que se dizia de “direita” (depois ele se tornaria um esquerdista empedernido) e o fanático Jackson de Figueiredo, nos leva a recriar interessantes paralelos com o que estamos vivendo hoje.
Para quem ainda não sabe, o Integralismo era um pot-pourri que misturava as tendências do fascismo de Mussolini, do modernismo da Semana de 1922, o nacionalismo positivista, o catolicismo tradicionalista com rompantes anti-materialistas e, last but not least, o socialismo de linha leninista que acreditava piamente de que o país era “’explorado’ pelos monopólios e banqueiros internacionais” (qualquer semelhança com o discurso petista — e também com a retórica da Nova Direita contra o globalismo e o establishment nacional —, não é mera coincidência). Como se esta alucinação não fosse suficiente, também tinha a tendência de aceitar, com toda beocidade possível, “noções racistas e anti-semitas”.
No fundo, como bem explica Meira Penna, o Integralismo — quase onipresente no ambiente cultural da época, com a exposição constante do seu símbolo, o Sigma grego, nas ruas do Rio de Janeiro — não passava de um “partido de intelectuais” que procurou
“refletir o que, na época, parecia mais ‘avançado’ na Europa. Não resistiu à eterna fraqueza que atinge o brasileiro inteligente — a de querer vestir uma persona, uma ‘máscara’ no sentido psicológico junguiano (no caso, uma camisa colorida), condizente com os requisitos do que de mais ‘moderno’ domina a ‘sociedade exemplar’ européia ou norte-americana. Adotou assim as formas externas do fascismo, a chamada ‘mística’, com os sinais, a retórica, os gritos, as cerimônias e o tipo de organização partidária paramilitar. O símbolo do Sigma indicaria o caráter totalitário do movimento que, na realidade, não o era. Tudo artificial. Sua debilidade ficou comprovada quando caiu, praticamente sem resistência, ante a bem assestada porrada do ditador [Getúlio Vargas], esse sim, verdadeiro mentor de massas”.
A raiz desta paródia diabólica de “imaginação totalitária” escondia, na realidade, uma tragédia irreparável. Trata-se do drama de Plínio Salgado, que era então reconhecido por seus pares como um sujeito brilhante (hoje confirmou-se que não era nada disso), até mesmo entre os contemporâneos do Modernismo, que depois migrariam para o socialismo e renegariam qualquer parentesco com a turma da Semana de 1922. Ele caiu na tentação tipicamente platônica de acreditar que era, de fato, “o guardião do futuro do pensamento brasileiro”, sem “estar consciente de sua própria insatisfação ante a incompatibilidade de essência entre política, como pensamento sobre princípios de pura filosofia, e política como arte do possível no manejo do poder”. Na análise implacável de Meira Penna,
“é assim de certo modo trágico que um pensador tão legitimamente católico e sincero como foi Plínio Salgado — autor de uma das mais soberbas vidas de Cristo da literatura mundial — não tenha compreendido a tensão irrefragável que vigora entre a Utopia, o paradigma ideal do Dever-Ser, e a realidade pragmática, sólida e cruel do Ser cotidiano. Que não tenha sabido expurgar de sua própria meditação os elementos revolucionários gnósticos e messiânicos que tantos males hão causado ao mundo; que não tenha abandonado, na teoria e na praxis, esses elementos presentes em seus romances, como O esperado, e em obras de fôlego como A quarta humanidade; que tenha sido tão ingênuo no famoso desfile de 1º de novembro de 1937, uma farsa em que, como estudante, tomei parte, enlevado como tantos outros milhões naquela terrível década dos 30, pela esperança ardente de uma escapatória política para as tensões do mundo moderno. Foram esses seus pecados originários de líder de massas”.
5.
Ao assumir plenamente, neste trecho do livro, que também foi inoculado pelo íncubo ideológico das “religiões políticas”, Meira Penna corrobora ainda mais a nossa tese de que sua obra é, de fato e de direito, uma masterwork. Assumir a responsabilidade por ter participado, mesmo que involuntariamente, nesta “farsa” - e que hoje é reproduzida sem pensar na área de comentários do Facebook e Instagram, nas sentenças do X (ex-Twitter) e nas notícias dos jornais, independente do espectro político a qual as pessoas pertençam -, implica numa coragem rara e dolorosa. Ainda assim, é de se estranhar que o ex-embaixador seja capaz de escrever um parágrafo como o que se segue, retirado das páginas finais de seu magnum opus, O Espírito das Revoluções, publicado em 1996:
“Compete-nos insistir, antes de mais nada, no caráter teimoso e recalcitrante dos intelectuais socialistas e marxistas brasileiros, ou seja, daqueles que se autopromovem como constituindo a ‘esquerda progressista’. É o mesmo pessoal que ainda controla a maioria dos meios de comunicação de massa, o clero católico, os sindicatos, as Universidades federais e a burocracia estatal — uma aliança ominosa! A aliança entre o patrimonialismo tradicional e a intelectuária gramsciana que se considera progressista é o pior sintoma! Gente obstinada, cheia de ressentimentos, teimosamente agarrada aos privilégios das corporações a que puderam integrar-se. É também o pessoal que domina o poder executivo, muito embora tenha o presidente [FHC] sido eleito numa chapa que se pretendia liberal. O que hoje distingue essa classe dominante patrimonialista e exploradora é a recusa em aceitar o colapso das suas teorias e ação prática, é o não-reconhecimento da ofuscante realidade empírica mundial. A ideologia que, durante mais de um século, se proclamou na vanguarda do progresso e da justiça, combate hoje numa resistência de retaguarda e só governa em três pequenos países atrasados: Cuba, Coréia do Norte e Vietnã. Todas suas teses caíram por terra: 1) não se comprovou o caráter científico do socialismo, marxista ou outro; 2) não se sustenta o conceito de super-estrutura mas, pelo contrário, é a intelectualidade inspirada nas teses da ‘hegemonia cultural’, promovidas por Antonio Gramsci, quem domina a ‘esquerda’; 3) o controle estatal dos meios de produção e serviços pelo proletariado não desvendou a natureza verdadeira dos sistemas econômicos, nem proporcionou condições sociais equivalentes às conquistadas pelas sociedades burguesas do Ocidente; e, finalmente, 4) a vulgata marxista não pode mais ser aceita pelos intelectuais que se prezam na base do bom-senso, da racionalidade ou do interesse pragmático. Na verdade, é o liberalismo que triunfa por toda a parte — mesmo em que pese o retorno ao poder, em alguns países da Europa ocidental, de facções da antiga Nomenklatura que se valem das frustrações e dores de parto provocadas pela transição para uma economia livre. A prova empírica no entanto aí está: o liberalismo estimula o desenvolvimento das nações que lhe acataram os princípios de redução do poder do Estado, enxugamento de sua burocracia, privatização dos meios de produção e serviços públicos, respeito às teorias monetaristas que devem conduzir as finanças públicas e abertura ao mercado mundial”.
Vinte e um anos depois deste trecho ter sido escrito, não há como negar que, por mais que Meira Penna saiba das nuances da existência de uma ideologia política, infelizmente ele também foi pego na mesma arapuca, ao acreditar, como mostra essa profissão de fé misturada com um diagnóstico certeiro de uma situação ainda premente, que o liberalismo será a finalidade completa de todo o desenvolvimento econômico e social. É claro que, em si, a ideologia liberal é menos nociva que a socialista ou a nazista, sem dúvida, mas ainda assim trata-se de uma ideologia — em outras palavras, de um véu que deforma a percepção da realidade e reduz a complexidade da ação humana. Mas, justamente por ser benevolente em suas intenções e eficaz na sua prosperidade econômica, ela atua de modo mais insidioso quando resolve explicar o comportamento humano, em especial por brincar, como todas as ideologias fazem, com as suas “meias-verdades”.
6.
Sobre esse fenômeno inexplicável, é Roger Kimball quem argumenta, no seu livro Experimentos Contra a Realidade, que o liberalismo “assume” essa “aura de inevitabilidade, e parece apresentar não tanto um modo de encarar o mundo, mas o próprio mundo”. E quem discorda disso, passa a ser tratado não como o representante de um “desafio” e sim como o de uma “perversão”. Neste sentido, o liberalismo defendido por Meira Penna — e por outras pessoas importantes que atualmente fazem parte do “círculo dos sábios” da Nova Direita Brasileira — é similar às mesmas “religiões políticas” questionadas em A Ideologia do Século XX. Desse modo, Kimball prossegue com seu raciocínio:
“O liberalismo, em sua definição mais ampla, tem ocupado essa posição invejável [de aura de inevitabilidade] por muito tempo. Ele determina não apenas os termos do debate, mas também a atmosfera retórica na qual qualquer debate deve ocorrer. Muitas das suas principais doutrinas — sobretudo, talvez, sua celebração indiscriminada da inovação em questões sociais, políticas e morais — são artigos de fé tomados por certos. Não se deixem iludir por qualquer grau de atenção renovada que, de tempos em tempos, possa ser dada à reforma da previdência, ao corte de impostos, aos valores familiares, à lei e à ordem, à civilidade ou à prontidão militar. Embora sejam louváveis e muitas vezes necessárias, essas e outras iniciativas corretivas identificadas como conservadoras ocorrem hoje em um contexto saturado por hipóteses liberais. Para o bem ou para o mal - sem dúvida de que para o bem e para o mal –, hoje todos nós somos liberais: por meio de contágio, se não por convicção. Como poderia ser de outro modo? Tal como o historiador inglês Maurice Cowling observou em seu livro Mill and Liberalism (1963; 1990), já há muito tempo ‘usar a linguagem liberal é sinônimo de inteligência; e rejeitá-la, evidência de estupidez’. Há muito tal convicção foi elevada a pressuposto fundamental da vida intelectual: um pressuposto tácito que caracteriza todos os aspectos do debate político e moral”.
Entre o Integralismo das redes sociais e o liberalismo praticado em fóruns da liberdade e congressos sobre escolas econômicas esotéricas, não há diferença alguma na intensidade de estupidez de todas elas — e é uma pena que a obra de Meira Penna não tenha percebido essa encruzilhada, quando ainda se encontrava incubada no seu “ovo de serpente” - e que resultou, direta ou indiretamente, no levante bolsonarista do dia 8 de janeiro de 2023. Contudo, não é disso que uma masterwork é feita? Do remanescente dos corpos e dos anti-corpos, dos vícios e das virtudes, dos íncubos e súcubos que formam o organismo da sociedade onde foi concebida? Neste ponto, José Osvaldo de Meira Penna nos mostra, de maneira admirável, quais são as consequências de ser um possuído pela “pederastia intelectual” — ao mesmo tempo que, graças a um livro como A Ideologia do Século XX, nos dá o antídoto sem o saber, infelizmente, se aplicaria em si mesmo — e a todos nós.
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Obviamente, nem coloco a obra de Paulo Mercadante nesta disputa, uma vez que o autor de A Consciência Conservadora no Brasil, Militares e Civis e A Coerência das Incertezas — livros que são infinitamente superiores a qualquer linha escrita por um Sergio Buarque de Holanda, só para dar um exemplo — está, como diriam os franceses, hors concours [fora da competição].